A polêmica suscitada pelo artigo do Paulo Tedesco continua, e isso é muito bom. A última contribuição foi do Haroldo Ceravalo, que procura evitar maniqueísmos.
Mas merece alguns reparos.
1- A questão do capital das editoras pequenas e médias. Sinto dizer, mas o problema não é de agora e está longe de se referir ao livro eletrônico. No meu livro “O Brasil pode ser um país de leitores”, que é de 2004, já assinalava que dois grandes problemas da nossa indústria editorial (entre outros, certamente) eram a falta de capital e a capacitação profissional dos editores. Quem quiser acompanhar o raciocínio completo pode comprar o livro e buscar o trecho em questão – afinal, a Summus e eu vivemos de vender livros. Aliás, o Gabriel Zaid, no seu “Livros Demais”(também editado pela Summus, com minha tradução) assinalava isso: “entrar” no mercado editorial é mais fácil que montar uma quitanda. O problema é o capital para aguentar o tranco. Acrescente-se a isso o fato de que os mecanismos tradicionais do mercado fazem as editoras financiarem as livrarias. Está lá no livro também.
2- Nenhum desses dois problemas foi equacionado até hoje. Portanto, continuam existindo. Ou alguém acredita que a maioria das editoras pequenas e médias dispõe de pessoal capacitado tanto do ponto de vista editorial como de marketing, administração e quejandos? Nem nas grandes a capacitação profissional é generalizada… Quanto à questão da capitalização, quem leu o livro do Schiffrin sabe bem do que falo.
3- Ler um PDF na tela é um saco. Para imprimir, haja papel e toner. Mesmo as versões mais atuais da Adobe não têm nem fração das facilidades de navegação que o ePub mais chinfrim tem. Para ler com algum conforto é preciso imprimir. Se é para rabiscar e fazer anotações, devo dizer que faço isso com a maior facilidade no Kindle ou no Kobo, e posso arquivar minhas marcações sem precisar ficar folheando a papelada. Sinceramente, para mim o PDF não serve mais nem para garantir a integridade dos textos, já que atualmente é totalmente editável, e acho que o PDF é que é carroça. Mas de gosto não se discute.
4- A Amazon e a Kobo realmente só aceitam arquivos de editoras comerciais em ePub (os auto publicados podem ir em Word). Mas a Saraiva e o Google, o Wook (português) aceitam o envio de arquivos em PDF e eles mesmo os transformam (a Árvore de Livros também). Ou seja, existe preguiça até mesmo de experimentar…
5- É verdade que os leitores de livros eletrônicos são caros. Só que, segundo o Retratos da Leitura no Brasil, a maioria dos que leem livros eletrônicos o faz em tablets e celulares, e todas as lojas divulgam os respectivos apps.
6- Acho que o DRM é um problema muito maior. Especialmente para quem não tem familiaridade com os truques. Da minha parte, quebro tudo e guardo na minha máquina, que dessa história de arquivar na “nuvem” é que não sou lá muito fã.
7- Já escrevi tantas vezes sobre a impressão sob demanda que me abstenho de comentar mais, por enquanto. Tanto no PublishNews quanto aqui no O Xis do Problema deve ter bem uns vinte posts sobre o assunto, quantidade que só perde para os posts sobre metadados.
De qualquer maneira, o artigo do Haroldo é bem ponderado e revela algumas das preocupações mais urgentes dos pequenos e médios editores.
Só para finalizar. Hoje leio tudo que posso no formato eletrônico. Mesmo livros complexos, como a série do Gaspari, a Cindy Leopoldo provou que o ePub 3 aguenta o tranco muitíssimo bem, e valorizou os livros com o material adicional. Livros de arte e infantis sim, não ficam bem (os infantis estão virando apps, e são muitas vezes bem ruinzinhos).
Mas continuo lendo e comprando livros em papel, e ninguém tasca a mão na minha edição da Pléyade da Comedie Humaine, ou na do Don Quijote da Alfaguara. Mas essa polêmica de se o eletrônico vai “acabar” com o impresso é das coisas mais ociosas que já apareceram.
Um dos blogs que costumo seguir é o do catalão Bernat Ruiz, Verba Volant, Scripta Manent (nada a ver com a epístola do usurpador). O post desta semana, Libros que nunca lo fueron, coincidentemente, saiu no mesmo dia em que o PublishNews publicou post do Paulo Tedesco, Um e-book de fracasso, no qual se dedica a desvalorizar os e-books (a polêmica prossegue com a resposta do André Palme e uma intensa discussão no Facebook).
Na verdade, os dois artigos tangenciam o tema que marca este texto. O do Bernat Ruiz está muito mais focado na questão de se os livros de colorir para adultos podem ou não ser considerados livros.
Mas vamos, lá, começando pelo Ruiz.
Ele anuncia que a HMRC britânica, mais ou menos equivalente à nossa Receita Federal, enviou correspondência às editoras do Reino Unido exigindo o pagamento de IVA para “los cuadernos de colorear para adultos”. Nossos populares (no ano passado) livros de colorir.
O Reino Unido não cobra IVA de livros, livros infantis de pinturas e gravuras, mapas e cartas geográficas, revistas, Jornais, música impressa ou copiada (partituras) e publicações (alguns tipos de publicações, como livros de exercícios e cartazes, pagam a taxa padrão). Existe uma discussão pendente (na União Europeia em conjunto e em cada país, e também por aqui, sobre os livros eletrônicos).
E Sua Majestade anunciou que vai cobrar o imposto dos livros de colorir para adultos. Esse o tema do post do Bernat Ruiz.
Livros de colorir são livros?
Uma polêmica que existiu aqui também, e se esvaneceu. Os livros para colorir foram aceitos como livros e, portanto, imunes à tributação.
Barnat, entretanto, esmiúça a polêmica. Cita a definição de livro da UNESCO (a famosa que define livro como publicação de pelo menos quarenta e nove páginas fora a capa), a Lei do Livro Espanhola; cita a Wikipédia e outros quetais. No final, lamenta que sejam as autoridades fiscais que definam o que é livro e aí, sim, entra na seara do livro digital.
A nova livraria da PUF – Presses Universitaires de France, ocupa um espaço de menos de 80m2. Não está longe do local onde existiu entre 1921 e 2006, na Place da la Sorbonne, e que era um ponto de encontro dos estudantes e da intelectualidade francesa. No entanto, a nova livraria disponibiliza aos clientes todos os 5.000 títulos da editora (mais 2.000 títulos anteriormente fora do catálogo nos próximos meses) e três milhões de outros títulos, que incluem os publicados pelas maiores editoras dos EUA, e um crescente número de títulos franceses.
E ainda tem um café, onde os clientes esperam a impressão do livro.
Tudo isso é possível porque a livraria usa a Expresso Book Machine, que imprime e faz o acabamento de um livro a cada cinco minutos, em média. Veja detalhes sobre a inauguração, acontecida no último dia 12 de março aqui e aqui.
Publiquei anteriormente três posts sobre a Expresso Book Machine. O primeiro, em setembro de 2012, contava como a máquina foi desenvolvida a partir de uma ideia de Jason Epstein, lendário editor de Nova York, um dos fundadores da New York Book Review e visionário da indústria editorial. A máquina de livros é fabricada pela On Demand Books.
No meu segundo post sobre a Expresso Book Machine tratei do avanço na solução de um dos gargalos para o sucesso da máquina, que é a disponibilização, pelas editoras, dos arquivos para que a EBM possa produzir seus livros sob demanda em cada máquina licenciada. Em janeiro de 2013, a Penguin USA (antes da fusão com a Random House), anunciou que faria isso.
Em 2015, quando estive no Salon du Livre de Paris, na edição em que o Brasil foi homenageado, vi pela primeira vez duas dessas máquinas operando, e publiquei mais um post sobre o assunto. Uma no estande da On Demand Books, onde entrevistei Jason Beatty, Vice-Presidente Senior de vendas e desenvolvimento de negócios, e outra precisamente no estande da PUF. Na ocasião, fiz questão de levar aos dois estandes o então presidente da FBN, Renato Lessa, o Presidente da CBL, Luís Antonio Torelli e o então presidente da Editora da Unesp e Secretário Executivo do PNLL, prof. José Castilho.
Minha esperança era que algum deles (ou os três em conjunto), encontrassem um meio de trazer uma dessas máquinas para a Bienal do Livro de S. Paulo, este ano. Fiquei na esperança, pelo visto.
Não seria um empreendimento fácil. A máquina custa caro (cerca de cem mil dólares). Segundo Beatty, isso não impede que mais de trezentas já estejam instaladas nos EUA, várias das quais em livrarias independentes. Na Europa, o país que mais as importou é precisamente a França.
Na França, a Espresso Book Machine é explorada por um consórcio constituído pelo IRENÉO, um programa de pesquisas sobre a impressão de livros sob demanda, que faz parte do IDEP (Institut de développement et d’expertise plurimédia) e pela UNIIC (Union nationale des industries de l’impression et de la communication), que seria mais ou menos o equivalente da ABIGRAF brasileira. Esse consórcio adquiriu seis máquinas para uso em escolas e universidades. Uma delas está alugada pela PUF por dois anos, o que reduz substancialmente o investimento fixo inicial. A editora, que é essencialmente uma casa de publicações universitárias (inclusive a famosa coleção “Que sais-je?”), qualificou-se assim para receber uma das máquinas importadas.
Essas informações deixam claro que a implantação desse tipo de máquina exigiria um esforço combinado de entidades públicas e privadas que estivesse voltada para o desenvolvimento da indústria editorial e livreira. Certamente isso se enquadraria em uma política de promoção do livro e da leitura, com os benefícios adicionais de melhorar substancialmente o lado logístico da distribuição de livros no Brasil.
Hélas¸ diriam os franceses, essa é uma tarefa particularmente difícil no Brasil de hoje: crise econômica, políticas de “salve-se quem puder” também na área editorial, e uma crônica incapacidade dos segmentos de editores, livreiros e gráficos para pensar e atuar coordenadamente em benefício comum, tudo se compõe para aumentar as dificuldades.
Certamente a Expresso Book Machine não é uma solução mágica para a indústria editorial e muito menos para as livrarias. Mas certamente é um esforço em busca de construir um conjunto de soluções para os problemas do setor, e que interferem diretamente nos índices de leitura dos brasileiros. As dificuldades de logística, o preço dos livros, a situação vergonhosa dos sistemas de bibliotecas públicas são componentes dos baixos índices de leitura.
Com o abandono muito provável pelos próximos dois anos dos programas de aquisição de livros de literatura para as escolas públicas (e oxalá o do livro didáticos também não seja reduzido), agravando uma situação que já se desenhava como ruim desde o ano passado, pensar na Expresso Book Machine por aqui é, como diria o Millor Fernandes, apenas um exercício de livre pensar. Que é só pensar e como tal não custa nada.
O que ainda dá um sopro de esperança nesse caso é que eu soube da livraria da PUF pela notícia publicada na edição do dia 13 de junho do New York Times. E lembrei da época do Henfil nos EUA, e o bordão que ele usava nos “Diários de um Cucaracha” no Pasquim (depois virou livro, hoje só em sebos, já que não temos uma Expresso Book Machine por aqui…), dizendo que uma coisa só ficava importante quando era publicada no jornalão da Grande Maçã. Como isso aconteceu, quem sabe… (apesar do NYT ser financiado pelo PT, segundo o Fiúza, colunista de O Globo e da revista Época).
No Seminário sobre a experiência francesa de aplicação do sistema de preço fixo, no último dia 3 de maio, no auditório da Livraria Martins Fontes Paulista, os presidentes das entidades ligadas ao livro – Bernardo Gurbanov (ANL), Marcos Pereira (SNEL) e Luis Antonio Torelli expressaram uma posição comum, mencionando a necessidade de “um pacto” das entidades para que, mesmo antes da eventual aprovação do projeto da senadora Fátima Bezerra, essa medida de defesa da cadeia produtiva entrasse em vigor.
Não é a primeira vez que se fala no tal pacto. Mas, até agora, que se saiba, tudo não passou de vento quente. Não há nenhuma proposta concreta na mesa. E pactos se fazem a partir de propostas, colocadas preto no branco, em torno das quais as partes possam chegar a um consenso.
Minha surpresa, no decorrer do encontro, foi verificar que os franceses, além da legislação, já avançaram muito para que as práticas comerciais entre os membros da cadeia do livro ocorram de forma mais harmônica e tendo como parâmetro – para além da imprescindível necessidade de cada setor ganhar dinheiro – o desenvolvimento do mercado e a promoção do livro e da leitura junto ao grande público.
O evento foi realizado pelo Escritório Internacional da Edição Francesa (BIEF) e pelo Escritório do Livro da Embaixada da França no Brasil, com patrocínio das três entidades.
Dados seus recados, antes do intervalo para almoço, os três dirigentes foram cuidar da vida, enquanto o seminário continuava com uma plateia menos concorrida.
A sessão matutina já havia destacado alguns pontos importantes na experiência de aplicação da chamada Loi Lang. Jean-Guy Boin, do BIEF (Bureau International de l’Édition Française), assinalou que “em um mercado maduro, como o francês”, ao contrário do que diziam os detratores da lei, os preços subiram menos que a inflação em todo o período de vigência da legislação. Esse, evidentemente, é um ponto importante a ser sempre destacado. Entretanto, assinalou M. Boin, a necessidade de explicar isso para o público é permanente. Até hoje (e particularmente depois do crescimento da Amazon) aparecem clientes que perguntam aos livreiros porque não existem descontos, como em outros países.
Quando a lei foi aprovada (1981), tanto o Ministério da Cultura francês quanto as entidades de editores e livreiros desenvolveram campanhas explicando a medida, com a presença de formadores de opinião, não apenas escritores, como personalidades de várias áreas. Foi muito enfatizada a importância da lei para a garantia de bibliodiversidade e para uma oferta mais ampla de títulos, que escapassem da lógica imediata dos best-sellers. A concorrência se transferiu para a qualidade do serviço prestado pelas livrarias.
Semana passada, em ótima iniciativa, o PublishNews publicou duas opiniões sobre o recente manifesto “Escritores e profissionais do livro pela democracia” que, pela contagem que acabei de fazer, já tem quase nove mil assinaturas. Luís Maffei defende a necessidade do manifesto, e Henrique Farinha escreve que “a luta política não pode contaminar as pautas profissionais”.
Com o devido – e sincero – respeito às posições pessoais do Henrique Farinha, não posso deixar passar a oportunidade de comentar o assunto.
Para deixar claro: assinei o manifesto, votei na Dilma em 2014 – e votaria novamente, apesar das inúmeras e imensas críticas que tenho ao seu governo. Trabalhei pela legalização do PT, lá pelos anos 1980, mas não sou afiliado ao partido e nem tenho nenhuma militância partidária estrictu senso.
Mas me considero um homo politicus, inclusive no sentido aristotélico da palavra. Eu não sou fora da polis onde vivo. E minha relação com a polis (ou com a societas, como queiram), é que me conforma como cidadão, como profissional. Como ser humano, em suma.
É esse o cerne da questão.
Não vivo em Marte nem em etéreos mundos isolados dessa polis. Vivo neste Brasil de 2016, com sessenta e seis anos. Vivi a ditadura em sua integridade. Combati-a como pude, fui preso, torturado, e tive que me exilar. Meu primeiro filho nasceu no exterior.
Assim, além do mais, é minha história que me define.
Mas isso é genérico.
O fato é que ser editor hoje, e ter sido editor nos estertores da ditadura me ensinou uma diferença fundamental: a importância da legalidade democrática. Que não se expressa tão somente nas formalidades. O ambiente político social em que vivemos marca indelevelmente nossa atividade profissional. Ter a garantia de que um tira não pode me prender pela minha cara ou pelo que faço que não seja criminalmente definido por lei é algo inestimável para quem viveu os anos sombrios. Por isso, não bastam os formalismos, mas a forma é também fundamental.
Pensam que é fácil?
Uma anedota ilustrativa.
Na Marco Zero, a editora que Maria José Silveira, Márcio Souza e eu tivemos entre os anos 1980 e 1990, fomos os primeiros a publicar no Brasil um certo autor português, então muito jovem. Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes, foi publicado por nós nos anos oitenta. Pois bem, um belo dia vimos uma resenha do livro ocupando quase uma página no então prestigiadíssimo Caderno B. Só com um pequeno detalhe: o título não era mais o original. Para o JB passara a ser “Os Cafundós do Judas”.
Não havia mais censura explícita. Mas o ambiente da ditadura ainda perpassava tudo. Cu, nem no singular nem no plural, podia ser impresso em um jornal de circulação nacional. Hoje virou imprecação de estádio na Copa do Mundo….
E o ambiente que vivemos hoje me evoca isso – com dor no coração.
A deterioração do ambiente político do país é simplesmente assustadora. Quando as pessoas têm que pensar qual a cor da roupa que vestem, porque isso pode provocar uma agressão, é uma tragédia. E isso aconteceu muito rapidamente.
Apesar da dureza da campanha de 2014, ainda se mantinha um nível de civilidade que, de lá para cá, perdeu-se completamente. Nas eleições de 2014 saí de casa para votar no Colégio São Luís, na Paulista (onde o Aécio deve ter tido uns 80% dos votos), com uma camiseta vermelha, comprada em Leningrado, em homenagem à Revolução de Outubro na Rússia. Depois, fiquei observando o movimento e uma senhora me pediu ajuda para saber como votar no Aécio. Ensino o beabá para ela, que saiu toda pimpona para votar no seu candidato.
Isso, há pouco mais de dois anos. Hoje seria, literalmente, impensável. Se eu aparecer para votar com camiseta vermelha, no Colégio São Luís, a possibilidade de ser agredido é altíssima, como se tem visto. E que haja alguém que me pergunte como votar em candidato que não seja o meu… sem palavras.
É a ruptura da liberdade vestir de qualquer cor, de dizer o que quero, publicar o que desejo e que os leitores leiam o que lhes dê na gana que vejo ameaçada nessa quadra de proposição de métodos ilegais para depor a Presidenta Dilma Roussef, eleita com a maioria absoluta dos votos em 2014.
Juízes e outras cabeças falantes arrotam declarações na imprensa dizendo que o “impeachment é legal”. Ora, até nosso prezado Conselheiro Acácio iria se ruborizar com tal platitude. O pedido em tramitação foi feito com base na acusação de que a Presidenta fez “pedaladas” fiscais – adiantou recursos para pagar as contas. Ou seja, usou o cheque especial. Está na companhia de mais dezessete governadores, de todo o espectro partidário, que fizeram a mesma coisa. Vários dos quais, lépidos e fagueiros, engrossam o coro da deposição. Só que nem se fala mais nas tais “pedaladas”, e se imputa à Presidenta acusações que nunca foram nem mesmo mencionadas, sequer dentro desse sistema inquisitorial de prender para delatar, inaugurado quinhentos anos atrás por Torquemada e colegas.
A justiça funciona, a polícia investiga – ainda que muito seletivamente – e já houve condenações também correndo a membros de todos os partidos. Todos.
Só que a solução para os imensos e profundos problemas que afetam nosso país não é apelar para pesquisas de opinião para “decidir” o que a “maioria” deseja. A maioria decide na hora de votar. Quatro anos depois isso é julgado pelos eleitores, e ponto parágrafo.
Tudo isso afeta, sim, nosso trabalho profissional. Não apenas como cidadãos, como também como membros dessa comunidade que vive do intercâmbio de ideias, do contraditório de opiniões. Quem acha que é possível dar uma de avestruz e enfiar a cabeça no seu mundinho supostamente profissional pode, mais tarde, se arrepender. Como alguns órgãos de imprensa que apoiaram o golpe de 1964, “contra a corrupção”, e pagaram caro por isso.
Evidentemente, todo o direito é devido a quem acha o contrário. Mas considero que, quem está no mercado editorial, editor, escritor, ilustrador – enfim, toda a gama de ofícios – e for favorável à deposição da Presidenta deve dizê-lo com todas as letras, e não se escudar em uma irreal neutralidade profissional, que não existe. Podem (devem) ir à luta e arregimentar assinaturas para suas posições, sem desqualificar os demais. E, diga-se de passagem, defender o mandato e a democracia não significa nem ser conivente com crimes e muito menos apoiar as políticas aplicadas.
A expressão de posições não prejudica – necessariamente – relações pessoais nem profissionais. Meu quadro de relacionamentos, e acredito que o de muita gente – inclui pessoas (parentes, inclusive), de todos os quadrantes políticos. Com firmeza, mas sem argumentos ad hominem e destemperos, não só podemos, como temos obrigação de nos colocarmos no mundo. E convivermos.
A frase é de Michael Cader, o organizador da Digital Book World Conference que recém terminou. Cader, que é um dos mais renomados especialistas em análise de dados do mercado editorial, marcou vários pontos nos últimos dias.
O primeiro é o reconhecimento da complexidade do mercado e, principalmente, das sérias inconsistências dos dados disponíveis para análise de seu desempenho (em geral e de cada livro, ou editora, em particular). E isso, vindo de alguém que é dos mais dedicados defensores da importância dos metadados, não é pouca coisa.
Cader estava falando dos dados sobre o mercado dos Estados Unidos. Se olhasse os daqui, teria um faniquito.
A razão, explicou ele, é que o mercado é tão complicado “que é quase impossível ter uma apreciação clara dele”. E as razões enumeradas se resumem ao fato de que “as três fontes primárias de dados sobre vendas não pintam nada que se assemelhe a uma visão geral”.
Quais são essas três fontes? A Association of American Publishers (AAP) monitora vendas de livros impressos e digitais a partir de números fornecidos pelos editores. Só que, como a AAP registra basicamente as vendas de editoras grandes e médias, é impossível saber “o desenho total da paisagem” que esses números representam. (Existe outro fator complicador, tratado mais adiante).
A outra fonte é o Nielsen Bookscan, que monitora as vendas de livros impressos. Mas essa, como sabemos, lá e aqui, só monitora a venda de grandes clientes: redes de livrarias (e nem todas), a parte do segmento de “linha branca” que vende também livros (Americanas, Ponto Frio e congêneres). Lá, como aqui, o Bookscan é preciso nesse registro no que diz respeito a unidades vendidas e o preço de venda de cada unidade. Mas não tem condições de informar sobre o faturamento total da indústria editorial. Acompanha com precisão – como aliás temos visto nos relatórios divulgados aqui pelo SNEL – aquilo que é vendido nos pontos de venda que eles acompanham. Quem não está ligado ao sistema da Nielsen está fora. E isso inclui não apenas todas as livrarias independentes, como também a segmentação de vendas que é feita através das distribuidoras. Das vendas ao poder público, então, nem falar.
Finalmente, a PubTrack, que cobre apenas ebooks. Originalmente fundada pelo Bowker, hoje é controlada também pela Nielsen, e divulga seus dados a cada três meses.
Entretanto, o problema é ainda maior. Os grandes varejistas eletrônicos não fornecem nenhum dado agregado. Amazon, Apple, Google e Kobo informam as editoras sobre suas vendas, é claro. E essas informam o PubTrack, na periodicidade acertada.
Mas a discrepância continua: qual a parcela das vendas das grandes editoras no conjunto do mercado editorial dos EUA?
O grupo Author Earnings que congrega especialmente os autores independentes, ou seja, os auto-publicados, já há muito contesta furiosamente os dados apresentados por essas três fontes. Sustenta que o segmento da auto-publicação é muito maior do que as editoras estabelecidas pensam, e que esses dados estão simplesmente errados.
No dia 16 passado, aqui no PublishNews, Eduardo Cunha (o da BookPartners, não o outro), publicou um excelente post, Mudar as atitudes, estabelecer padrões: um bem para toda a cadeia livreira no qual abordava, com a perspectiva de distribuidor, alguns temas que venho tratando em várias ocasiões por aqui.
O ponto mais importante para mim, é que foi a primeira vez, em minha memória, que alguém diretamente envolvido na cadeia produtiva do livro trata do assunto, mostrando a urgência do estabelecimento de padrões e o aperfeiçoamento dos metadados usados pela indústria editorial e livreira do nosso país.
O post do Eduardo motivou algumas reflexões que gostaria de compartilhar com vocês.
O que primeiro chamou minha atenção foi a constatação de que “infelizmente não vejo nenhum esforço das nossas entidades de classes em criar padrões melhores para indústria”.
De fato, para criar padrões, é preciso haver alguma instituição normativa para isso, que consolide exigências de vários tipos, de modo a que sistematicamente possam ser aplicados em toda a cadeia de produção e venda de livros. As entidades do livro passam ao largo disso.
Exigem exigências de ordem fiscal – e ele chama atenção para vários problemas decorrentes da nossa estrutura tributária – de produção e de comercialização a serem obedecidas.
Muitas dessas normas (que são metadados), já estão codificados e existentes. As regras fiscais, por exemplo, são estabelecidas pela legislação e pelas normas da Receita Federal. Infelizmente, porém, nem todas as editoras seguem as normas. E ficam vulneráveis à eventual fiscalização. O Eduardo Cunha dá o exemplo do manejo das consignações.
E cita várias questões de produção e de identificação dos livros. Um exemplo hilário é o da “liberdade” que capistas tomam (com a conivência, e aplauso, dos editores), de colocar fundos por baixo da identificação do ISBN, dificultando a leitura do código de barras. E outros exemplos que tais.
Bom, a questão começa pelo seguinte: muitos dos padrões existem. Só que são completamente ignorados pelos editores e pelos capistas, diagramadores e outros envolvidos na produção desse objeto físico ou virtual que é o livro.
No grande universo dos livros, um dos campos pelo qual sempre fui fascinado é o da sua fabricação. Sou da época em que se compunha com linotipo, recebia-se as provas feitas com tira-prova e depois das correções o livro ia para as impressoras e depois para o acabamento. Atravessei a época dos fotolitos (ainda com composição a quente), pela composição com uma espécie de máquina de datilografia aperfeiçoada da IBM, que produzia textos justificados e já com uma boa variedade de tipos (as “bolinhas” eram trocadas). Esse material ia para uma mesa de paste-up e depois era fotolitado. Hoje todo mundo usa editoração eletrônica e o resultado é enviado por e-mail e já vai direto para a impressora, pelo sistema computer-to-plate.
Mas antes dos livros, ainda adolescente, trabalhei em jornal, em Manaus, que ainda usava composição a quente (linotipo, monotipo e clichês) e impressão em máquinas planas. Uma coisa! Uma vez vi uma página mal amarrada estourar e espalhar colunas de linotipo e blocos de clichês para todo lado, com risco de ferir um gráfico. Aliás, essa exigência técnica de produzir uma página completamente “amarrada” da tipografia perdeu-se na etapa seguinte do paste-up, e o que se viu de colunas tortas e fotos mal ajustadas… Só a editoração eletrônica recuperou a beleza de uma página bem montada.
Cada uma dessas etapas vividas só aumentava minha admiração pelo sujeito que inventou o básico: a impressão com tipos móveis. Sim, o famoso Johann Gutenberg.
Nunca fui a Mainz, sua cidade e sede de um museu e de um centro de estudos sobre tipografia, embora a cidade esteja bem perto de Frankfurt, tantas vezes visitada nas feiras. Mas sempre vou ao estande do Museu na feira, brinco de impressor e há muito tenho minha cópia tipográfica de uma página da famosa Bíblia de 42 linhas.
Recentemente li uma das poucas biografias sérias de Gutenberg existentes em tradução. Os trabalhos sobre a descoberta e vida dele são quase todos em alemão. É “Johann Gutenberg – The Man and his Invention”, de Albert Kapr. Achar o livro foi difícil. Encomendei através da Amazon mas o livro nunca chegou. Achei em um sebo por aqui e consegui comprar e ler.
É certamente um livro fascinante, com uma sólida abordagem do contexto da vida do inventor. Mainz estava feudalmente submetida a um Bispo Eleitor do Sacro Império Alemão, personagem político de primeira grandeza. Mas a cidade vivia às turras com os bispos, principalmente no período de vida de Gutenberg, quando o crescimento da burguesia já era evidente e entrava em choque com aquelas instituições feudais.
A família de Gutenberg (as explicações sobre os sobrenomes na época são deliciosas) fazia parte da nobreza, e em vários momentos, por conta das disputas, teve que se exilar para a cidade-sede do bispado, Eltville (onde também estão alguns dos principais vinhedos do Reno). Essa origem social perpassa muitos aspectos da vida de Gutenberg, inclusive a disputa com o sócio Fust, episódio muito importante no desenvolvimento da imprensa.
Não se conhece a data exata de seu nascimento (entre 1400 e 1403). Estudou em Efurt e sabe-se que se aperfeiçoou em ourivesaria e em técnicas de estampagem, que seriam fundamentais para o desenvolvimento da tipografia.
Alguns detalhes que ressaltei da biografia.
– O processo de “invenção” da tipografia foi extremamente complicado. Gutenberg foi o primeiro – e aí está a raiz de tudo – a conceber um processo viável e simples de fundição de tipos. As tentativas anteriores de impressão incluíam tipos de madeira, cerâmica e a impressão em blocos de madeira, como xilogravuras, com os textos desenhados. O tipo móvel é a primeira e a mais fundamental das descobertas de Gutenberg. Ele inventou uma espécie de portador dos moldes que permitiu a fabricação rápida dos tipos de impressão a partir de uma patriz (escultura das letras em punções com instrumentos de ourives). Essas punções eram aplicadas em uma barra de cobre, criando as matrizes. Como o golpe deformava a matriz, era necessário retificá-las (outra habilidade de ourives) e daí se tinha uma matriz final. Essa, usando o tal fundidor de tipos, gerava os caracteres necessários para a impressão. Só para a impressão da B-42, Gutenberg fundiu cerca de dois milhões de tipos, de 290 formatos. Esse processo necessariamente tinha que ter muita precisão, para que os tipos pudessem se alinhar e se ajustar entre si. Para isso, também se fundiram ligaduras (combinações de letras, como o Æ), sinais de pontuação, etc.
– A impressora foi construída a partir de modelos de prensas de vinho, com adaptações importantes: uma bandeja deslizante para se colocar a composição. Essa bandeja tinha que deslizar de modo bem preciso, para que a mancha ficasse sempre no mesmo lugar, e depois para que impressões de cores não perdessem o registro. A impressão propriamente dita se dava quando uma prancha de madeira descia por uma alavanca manejada pelo impressor e “carimbava” o papel colocado (também ajustado) sobre a composição.
– Finalmente, Gutenberg teve que desenvolver uma tinta que não borrasse e permitisse a impressão com clareza. A tinta usada por Gutenberg era feita a partir da fuligem de candeeiros, verniz, albume e urina humana como prováveis aditivos. A qualidade da tinta de Gutenberg até hoje impressiona quem vê um exemplar da B-42.
– O primeiro impresso atribuído a Gutenberg, em Estrasburgo, é um trecho intitulado “Fragmento do Weltgerich”.
Mas os primeiros livros, já impressos em Mainz (com tipos fabricados em Estrasburgo) foram os chamados Donatus. Eram simplesmente livros didáticos, um manual escolar de latim.
Gutenberg regressa a Mainz por volta de 1448, e estabelece a oficina na casa de sua família, a Gurtenberghof. Lá imprimiu várias tiragens do Donatus, mas o local e as condições eram insuficientes para desenvolver seu grande projeto, a impressão da Bíblia.
É aí que entra em cena Fust, comerciante (também livreiro, de manuscritos), e ligado às corporações da cidade. Fust investe pesadamente no empreendimento e também coloca lá Peter Schoeffer, seu filho adotivo. Schoeffer era escriba, e provavelmente também recebeu formação de ourives. Há quem diga que o desenho da letra da B-42 teve sua participação. Para compor e imprimir a B-42, novas instalações foram montadas na Humbrechthof, uma casa muito maior, alugada por Fust. Provavelmente todos os artesãos envolvidos na empreitada moravam ali, como geralmente acontecia nas oficinas dos mestres medievais.
A B-42 foi impressa entre 1452 e 1455, e o impacto da qualidade do trabalho, como sabemos, repercute até hoje.
As relações entre Gutenberg e Fust se deterioraram, por conta de dinheiro, é claro, e o assunto foi parar nos tribunais. Fust ganhou a causa e ficou com a imprensa e os tipos que estavam na Humbrechthof. Mas Gutenberg, segundo Kapr, continuou com a oficina na Gutenberghof, até que foi obrigado a se exilar de Mainz em mais um confronto entre as corporações e o bispo-eleitor. Gutenberg mudou-se para Eltville, continuou imprimindo (embora sem a qualidade da B-42) e recebeu honrarias do bispo.
Fust e Schoeffer também continuaram imprimindo e produziram alguns dos incunábulos mais preciosos da primeira idade da impressão, como uma edição dos Salmos e outra da Bíblia, em 1562.
Já no século XVI, um dos filhos de Schoeffer tentou atribuir ao pai a invenção dos tipos móveis, movido evidentemente por interesses comerciais.
Todo o desenvolvimento da impressão deu-se no meio das tensões religiosas que já prenunciavam a reforma e a cisão do cristianismo, e não é à toa que, além dos Donatus, o que se imprimiu mais foram livros religiosos, inclusive missais, e indulgências que, vendidas, podiam não garantir a salvação eterna para os compradores, mas rendiam grandes recursos para os emitentes, bispos, mosteiros e o papa.
Uma curiosidade que está no livro de Kapr é que a primeira tradução da Bíblia para o vernáculo não foi a de Lutero, em 1522. Dois dos impressores de Colônia, Bartholomäus von Unkel e Heinrich Quentell imprimiram versões nos dialetos baixo-alemão
e saxão, entre os mais de 400 itens bibliográficos que produziram, entre 1479 e 1500. Evidentemente os eruditos sabem disso, mas eu achava que Lutero era o pioneiro. E me refiro aqui a traduções impressas, porque outros manuscritos traduzidos e “editados” da Bíblia já haviam sido feitos, como se pode ler aqui.
No final da leitura eu me perguntava se o conceito de tipos móveis, como o elemento central da invenção da imprensa, ainda persistia. Não se tratava da discussão de McLuhann sobre o fim da “Galáxia de Gutenberg”, uma bobagem que a continuada produção de livros (ou superprodução) já desmentiu. O que eu me perguntava era se a ideia dos tipos móveis permanecia vigente na era da editoração eletrônica.
Acho que sim.
A comunicação entre os homens, depois que deixou de ser puramente oral, passou por várias formas de escrita. Mas nenhuma com a complexidade e flexibilidade do alfabeto. Um pequeno conjunto de sinais combinados permite expressar… tudo. Depois da escrita, que permitiu esse registro, a composição com tipos móveis é que foi o motor da multiplicação da palavra. Desde a composição manual, até hoje, é a combinação de letras formando palavras, frases, livros, expressando o pensamento e as sensações da humanidade e a sua infinita reprodutibilidade.
Afinal, o que é a composição digital senão o uso de impulsos eletrônicos para emendar uma letra após a outra? O livro não deve “ser convertido em algum tipo de aparelho tecnológico ou outro”, como diz Kapr. O fundamental da comunicação e reprodutibilidade da palavra escrita é essa combinação, primeiro mecânica e hoje eletrônica, que permite a leitura de todas as expressões do pensamento humano por bilhões de pessoas.
É por isso é que Gutenberg permanece ainda hoje como uma figura viva: porque estabeleceu esse ideal para o futuro, quaisquer que sejam as metamorfoses que seus tipos de chumbo e antimônio tenham passado, ou venham a passar.
O sistema de preço fixo existe na Espanha há muito tempo. E, como em outros lugares, sempre foi considerado como algo que protege as livrarias independentes dos grandes descontos oferecidos pelas cadeias.
Por ocasião da última FLIP, quando a Senadora Fátima Bezerra expôs as linhas gerais de seu projeto de preço fixo, já chamei atenção aqui para o fato disso não ser nenhuma panaceia, e muito menos constituir uma política nacional do livro.
Um dos contrastes que citei naquele post era o das medidas de proteção do comércio adotadas nos Estados Unidos – Lei Robinson-Patman – que regula as relações dos fabricantes (no nosso caso, os editores) com os vários canais de distribuição. Essa lei exige que as condições de comercialização (descontos, prazos, etc.) sejam idênticas para todos os que fazem parte do mesmo segmento. Ou seja, distribuidores, atacadistas e livreiros devem ter, cada um em seu segmento, as mesmas condições de venda que os demais. Descontos para o consumidor final, portanto, se dão a partir da melhor rentabilidade, administração e condução dos negócios de cada um (chamei atenção também sobre como outros mecanismos continuam favorecendo as grandes redes).
Enfim, o preço fixo não é uma panaceia, mesmo.
Pois bem, nos últimos dias achei, através da newsletter da Revista Textura dois posts publicados em um site da Catalunha chamado Verba volant, scripta manent (não acredito que o autor seja amigo do vice-presidente, nem de seu ghost-writer. Apenas faz questão de deixar suas opiniões por escrito, segundo o mote latino: “As palavras voam, a escrita permanece”). Os dois tratam da questão do preço fixo, desde a perspetiva de editores independentes (e livrarias idem), na Espanha. São curiosos, por abordar uma perspectiva que é contrária ao preço fixo, que foi pensado exatamente para defender as pequenas livrarias.
O autor, Bernat Ruiz Domènech, é um catalão, designer e publicitário, que já foi editor e professor de edições digitais, e atualmente assessora o Grémio de Libreros de Catalunya.
Vamos dar uma olhadinha nos argumentos do Bernat Ruiz.
A principal queixa dele no primeiro artigo é precisamente sobre as condições de comercialização dos editores para os livreiros. A minha ideia de que, com o preço fixo, haveria uma tendência para a equalização dos descontos parece ser, pelo menos na Espanha, falsa. As grandes cadeias continuam recebendo condições melhores das editoras grandes, e aumentam sua margem. As grandes editoras, que publicam os bestsellers da vida, têm condições de aguentar o rojão. O outro aspecto nocivo, diz ele, é que o preço fixo “trouxe junto” a consignação, por conta da “inelasticidade de preços”, e que isso prejudica muito exatamente os pequenos editores. Pode ser que na Espanha a consignação (que ele chama de “sistema de depósito”) tenha surgido como consequência da lei do preço fixo. Aqui, como sabemos, a consignação (ou direito à devolução) existe há tempos, e as vendas fixas são cada vez mais raras.
Acho a argumentação complicada. De fato, as editoras há muito financiam as livrarias, com os prazos e os descontos. E tem que ter capital de giro para pagar as contas – que não esperam – enquanto os livros não vendem. A consignação aumentou o grau de incerteza do negócio, mas não criou o problema.
De qualquer maneira, o problema da gestão de estoques se complica ainda mais com a consignação. Os livros podem estar “colocados” – entregues às livrarias – mas isso não significa nem que estejam expostos e muito menos que sejam vendidos.
Resumindo o tango: tudo isso resulta em um excesso de oferta (títulos) e inelasticidade de preços. O resultado, segundo ele, é que as grandes (editoras e livrarias) continuam crescendo, mas o mercado em seu conjunto caminha para uma situação cada vez mais precária.
Segundo Ruiz Domènech, o problema é que o mercado de livros mudou substancialmente nos quarenta anos de vigência do preço fixo. “Há quarenta anos se caracterizava por uma taxa de inflação alta, uma produção moderada, uma rotação de estoques discreta, preços relativamente baixos e um mercado interno protegido por custos industriais muito competitivos em comparação com os países vizinhos”. E, na época, por estar fora da Comunidade Econômica Europeia.
E compara com a situação atual: “Quatro décadas mais tarde a inflação está baixa, a produção está exagerada já há a um par de lustros, o faturamento do setor caiu um bilhão de euros desde o início da crise, os preços dos livros não baixaram apesar da mesma crise, os custos industriais são altos se comparados com os chineses – a grande impressora da Europa – e, põe que a Espanha faz parte da União Europeia, não pode mais haver manejo das taxas de importação, e o livros (de papel) enfrentam a concorrência de outros suportes de conteúdos”.
Tudo isso resulta em um mercado disfuncional e sem estímulos para aumentar a demanda. E isso é o resultado do esgotamento de um modelo: o de preço fixo.
Domènech elabora, no segundo post, algumas alternativas a essa situação.
Emprega algumas analogias curiosas. A da Internet com a rede de abastecimento de águas, por exemplo. “Hoje já somos muitos [do primeiro mundo] a dispor de uma rede de abastecimento de águas da qual emana um volume inesgotável de água (ele não mora em S. Paulo, claro). Abrimos a torneira da Internet e recebemos conteúdos à mãos cheias. Há um par de décadas, o único modo de ter acesso a quantidades apreciáveis de informação era ir à livraria ou à biblioteca”.
Ora, prossegue, se há disponibilidade de água tratada nas torneiras, por que alguém ainda compra água mineral nos supermercados? E responde: “Que você compra água não significa que lhe estejam vendendo água. Estão lhe vendendo uma soma de conceitos que podem se resumir em uma única palavra: saúde”.
Mais adiante afirma um pressuposto essencial para seu raciocínio. Ele não fala do mercado editorial em geral, que para ele (o das grandes editoras e redes), vai bem e feliz com o preço fixo, e sim dos “nuevos libreros”: os independentes, com estoque selecionado pela qualidade e especialização. E se pergunta: “Em que se parecem um ensaio de Carl Sagan e as memórias de Belén Esteban” (apresentadora de TV espanhola, de um programa qualificado como “telebasura”, e autora de um livro, “Ambiciones y Reflexiones”, publicado pela Planeta, com a qualidade que se pode imaginar). E responde: “No fato de estarem embalados usando o mesmo processo industrial. Nada mais. O mesmo acontece com um Marqués de Riscal e uma garrafa de Coca-Cola. Cada produto é adequado a seu contexto”.
Conclui: “Os novos livreiros (independentes) já não vendem livros, vendem cultura, e de outra maneira não poderiam competir com as grande cadeias e supermercados, nem com a venda de livros de papel pela Internet. […]. Centram sua ação nos catálogos de editoras médias e pequenas. Apenas as grandes cadeias continuam tratando os livros pela embalagem, e por isso apostam nas altas rotações, volumes e margens”.
Assinala que as livrarias tradicionais médias apostavam na mesma receita, e estão acabando. As cadeias vendem Coca-Cola (e às vezes até um bom vinho), mas as livrarias independentes vendem conteúdo, e a questão do preço “será determinada pela sensibilidade do público à qualidade do produto”.
Ou seja, a alternativa para as livrarias pequenas e independentes não seria depender do “preço fixo”, pois isso as levaria a concorrer em desigualdade com as grandes cadeias, e sim apostar na curadoria de seus acervos, nos serviços culturais que acrescentam em seus espaços. Enfim, que vendam cultura.
Mas, para tanto, precisam de instrumentos comerciais para fidelizar seus clientes (o que entra um tanto em contradição com a premissa anterior…). Ou seja, que as livrarias independentes se libertem das cadeias de livrarias e dos supermercados e também tenham liberdade de preços… para fazer suas promoções.
Precisam se organizar de forma diferenciada para conseguir reformas no sistema de distribuição – incluindo as consignações e o direito à devolução – de modo a construir seus próprios públicos, com novas estratégias e ferramentas de venda.
E propõe um processo de eliminação do preço fixo, pelo qual, ano a ano, seriam permitidos descontos maiores, até a liberação completa.
O mote final é “Que cada livro encontre seu leitor e cada leitor seu livro”, que me lembra o ensaio do Gabriel Zaid, Livros Demais, que traduzi e foi editado pela
Summus.
Os dois posts constituem uma leitura interessante e intrigante (Domènech escreve muito bem), mas o raciocínio me parece subestimar a capacidade das grandes editoras (que não editam apenas as “Belén Esteban”, dito seja) e das grandes cadeias para se adaptar a uma nova situação como a que ele propõe. Aliás, me parece, teriam enorme capacidade de rapidamente incluir “livrarias de conteúdo” em seu esquema de negócios, tal como as redes de supermercado têm hipermercados, lojas de bairro e marcas diferenciadas.
Por enquanto, ainda acho o preço fixo uma solução melhor. Sem ser panaceia.
A Convenção Sobre a Proteção da Diversidade das Expressões Culturais completou, em 2015 seu décimo aniversário de promulgação. A Convenção foi o resultado de longas negociações, que se formalizaram no âmbito da Unesco em 2003, e resultaram em sua adoção na Assembleia de 2005. Atualmente, a Convenção já foi ratificada por 140 Estados Membros. O Brasil teve papel importante nas etapas finais da negociação, mas sem dúvida os países que mais se destacaram nesse processo foram a França e o Canadá. É de se anotar que os Estados Unidos até hoje não ratificaram a convenção – e buscam sabotar sua aplicação em todas as negociações comerciais, tratando de evitar a inclusão de várias cláusulas previstas nesse instrumento internacional.
Ao comemorar o décimo aniversário do estabelecimento da Convenção, a UNESCO encomendou a catorze especialistas internacionais, além do pessoal da administração da Convenção, um documento síntese de análise dessa etapa, intitulado “Repensar As Políticas Culturais”. Infelizmente só consegui acesso ao resumo executivo, disponível em espanhol (por iniciativa do governo sueco!) aqui. Os autores assinam cada uma das secções do documento. (Às vezes é bem difícil conseguir a íntegra desses documentos, a nossa representação na UNESCO não reproduz nem traduz nada. É nossa diplomacia cultural em ação…).
O documento da UNESCO está dividido em quatro secções:
➊ Apoiar sistemas de governança cultural sustentáveis;
➋ Conseguir alcançar um fluxo equilibrado de serviços e bens culturais, e incrementar a mobilidade dos artistas e dos profissionais culturais;
➌ Integrar a cultura em processos de desenvolvimento sustentável,
➍ Promover os direitos humanos e as liberdades fundamentais.
Cada uma dessas secções está dividida em vários capítulos, cada um deles abordando algum aspecto específico do tema. É importante lembrar que o documento da UNESCO pretende mapear as ações dos signatários da Convenção, destacando principalmente o “rumo” das modificações e sua implementação. Assinala, entretanto, que ainda falta muito para alcançar as metas da Convenção.
Esse é o tom de todas as secções. Assinala avanços, mas sempre destaca que falta muito para alcançar os objetivos do instrumento multilateral. Não vou abordar aqui todos os pontos do documento.
Quero destacar, entretanto, a descrição do fluxo de bens e serviços culturais a nível mundial.
Duas “mensagens-chave” dessa secção do documento chamam atenção: “A soma total das exportações de bens culturais a nível mundial em 2013 foi de 212,8 bilhões de dólares. A percentagem dos países em desenvolvimento é de 46,7%, o que representa um incremento marginal diante do ano 2004. Apenas a China e a Índia competiram significativamente com os países desenvolvidos no mercado global”.
A segunda mensagem é ainda mais significativa: “A soma total das exportações de serviços culturais a nível mundial em 2012 foi de 128,5 bilhões de dólares. A percentagem dos países em desenvolvimento representa apenas 1,6%. Os países desenvolvidos dominam este campo, com 98%. Isso se deve principalmente ao incremento de fluxos de serviços audiovisuais e artísticos transmitidos eletronicamente”.
Para além de uma terminologia econômica meio ultrapassada, o que o dado revela/esconde é o fato dos Estados Unidos não terem ratificado até hoje a Convenção da Diversidade Cultural. Mais ainda, eles procuram ativamente forçar, nas negociações comerciais com países e blocos de países, para que não se recorra aos mecanismos da Convenção para manter a autonomia desses países na formulação de políticas chamadas de “exceção cultural”. Na prática, exige de quem quiser exportar matéria-prima para o Big Brother do norte ter que aceitar o ingresso livre de barreiras de filmes, música, apps e etcéteras vindos de lá.
A indústria cinematográfica dos Estados Unidos é, depois do comércio de armas, o mais valioso item de exportação daquele país. “Serviços culturais” incluem, hoje, não apenas o download de música e cinema, como também o de livros. Lembremos que a Amazon não vende “a propriedade” do que é descarregado na Internet. Apenas licencia o uso. Daí ser um serviço e não exportação de bens.
Apesar de não haver retificado a Convenção, os EUA voltaram a fazer parte da UNESCO há pouco mais de dez anos atrás, justamente antes da negociação final desse instrumento. Atuaram – principalmente em dobradinha com Israel – de forma dura para tentar impedir o acordo final. Felizmente foram derrotados, mas não ratificaram a convenção. Cabe lembrar que a delegação brasileira na Conferência (Gilberto Gil era o Ministro da Cultura) teve um papel importante nas articulações para a aprovação do instrumento.
Ora, o país que não a ratifica fica praticamente fora dos mecanismos de controle, mediação e resolução de conflitos previstos na Convenção, que incluem aspetos relacionados com a OMC – Organização Mundial do Comércio.
A linguagem diplomática do documento da UNESCO encobre esse grande problema, que continua em aberto, e diminui consideravelmente o impacto do instrumento multilateral.
O então assessor internacional do Ministério da Cultura, Ministro Conselheiro (na época Conselheiro) Marcelo Dantas da Costa, teve um importante papel nessas negociações. Hoje é o delegado alterno da Delegação Permanente do Brasil na UNESCO (a titular é a Embaixadora Eliana Zugaib). No entanto, infelizmente, a página da representação, cujo link está aqui e as notícias que se consegue captar pela imprensa e pela Internet não têm mostrado uma atuação muito vibrante. Ano passado, por ocasião do Salon du Livre de Paris (quando o Brasil foi homenageado), estive na UNESCO em busca de informações sobre o Index Translationum, e soube que o programa estava desativado “por razões orçamentárias”. Escrevi para a Delegação Permanente sobre o assunto. Espero até hoje uma resposta.
Acredito que seja importante que o Ministério da Cultura, e o Itamaraty, aproveitem o ensejo da publicação desse documento da UNESCO para promover uma revisão do que foi feito por aqui dentro das propostas da Convenção sobre a Diversidade Cultural, e quais as dificuldades, entraves e qual a ação diplomática brasileira para avançar internacionalmente na aplicação desse importantíssimo instrumento multilateral. Que, não custa lembrar sempre, pode também ter impactos significativos nas negociações comerciais
Políticas públicas para o livro e o mercado editorial