Fiz amigos nestas décadas que levo nas costas de envolvimento com o mercado editorial. Muitos conhecidos, colegas de trabalho, e alguns amigos. Categoria na qual não classifico alguém à ligeira. Pessoas com as quais se pode contar e que se respeita.
Hoje perdi um deles. Depois de quinze anos batalhando contra um câncer, uma leucemia galopante levou Raul Wassermann.
Raul foi um grande editor. Quando fundou a Summus, abriu uma editora eclética com publicações em várias áreas. Ainda tenho hoje um exemplar do “Alice no País das Maravilhas” editada por ele. Tive também uma coletânea de cinco contos que retrabalhavam “A Missa do Galo”, do Machado de Assis. Um dos contos foi escrito pela Lygia Fagundes Telles. Esse se perdeu em alguma mudança (ou empréstimo, quem sabe…). Mais tarde a Summus focou muito em publicações nas áreas de psicologia, embora o desejo do Raul de explorar outras áreas nunca tenha cedido. Criou selos temáticos, como o Selo Negro e Edições GLS, foi dos primeiros a se propor editar de forma extensa e aprofundada livros sobre as questões de raça e gênero. Outros selos publicavam mais extensamente sobre áreas específicas do fazer terapêutico. Publicou também livros sobre cinema (foi um cinéfilo militante e algumas das primeiras publicações sobre formatos hoje em desuso, como Super 8, foram editadas pela Summus), gastronomia (quatro livros escritos por José Albano Amarante – “Segredos do Vinho para Iniciantes e Iniciados”, “Segredos do Gim”, “Queijos do Brasil e do Mundo para Iniciantes e Apreciadores” e “Vinhos do Brasil e do Mundo para Conhecer e Beber”) estão entre os melhores escritos por autores brasileiros sobre o tema. A “Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana” do Nei Lopes é um trabalho pioneiro e extenso sobre a presença africana no Brasil, e “A África na Sala de Aula”, da Leila Hernández, é uma resposta integrada à iniciativa de ensino da História da África no currículo das escolas brasileiras.
A lista é extensa, e os livros estão aí como testemunho de uma visão editorial ampla, diversificada e respeitosa da intelectualidade brasileira e internacional.
Uma das áreas mais notáveis de atuação do Raul foi como dirigente da Câmara Brasileira do Livro, quando demonstrou uma visão moderna e abrangente dos problemas e questões do mercado editorial brasileiro, da defesa do direito autoral e da busca de soluções para que fosse ampliado o acesso ao livro em nosso país. Raul Wassermann compreendia – e agia de acordo – que a questão da leitura não se resumia às questões do preço dos livros e dos problemas de distribuição, gravíssimos por si só. Tinha uma visão clara de que o acesso aos livros por parte da população era fundamental. Para isso as bibliotecas públicas eram fundamentais, já que acesso não é sinônimo de compra. Tinha uma visão clara de que as feiras regionais, menores e mais dinâmicas que as Bienais, poderiam e teriam que ter um papel de destaque. O apoio da CBL à Feira de Ribeirão Preto e, depois, a iniciativa do Circuito Paulista do Livro (com o apoio da Imprensa Oficial, na época presidida pelo Sérgio Kobayashi) deram dinamismo ao uso de “cheques-livros” para estudantes e professores, abriram espaço para editoras locais e autores.
Outra área de atuação do Raul Wassermann que foi, e é, de imensa importância na defesa dos direitos autorais no Brasil foi a primeira iniciativa de organizar sistemas de licenciamento de trechos de obras. Hoje é coisa do passado, mas a praga do xerox nas “pastas dos professores” nas universidades era algo terrível. As péssimas bibliotecas universitárias, defasadas e com acervo reduzido, não tinham os livros necessários para os estudantes. Os professores então emprestavam seus livros para que fossem feitas cópias reprográficas de capítulos. E cada faculdade e universidade tinha sua biboca xeroqueira (a Xerox odiava a apropriação da marca para isso), um dreno de recursos dos livreiros e editores. E quantos alunos se graduavam sem nunca haver lido um livro completo? Só os pedaços das tais pastas.
O Petra Belas Artes irá apresentar uma retrospectiva de
filmes do grande Luis Buñuel. Todos devem ser assistidos.
Além de assistir os filmes, podem ler também um romance
inspirado pelo grande anarco-surrealista espanhol: O FANTASMA DE LUÍS BUÑUEL,
de Maria José Silveira.
O romance parte de uma confissão do Buñuel em sua
autobiografia (escrita pelo Carrière…). Diz ele, já no final, que não se
importa em morrer, mas que gostaria de, a cada dez anos, sair do túmulo, i até
a banca de jornais mais próxima para tomar conhecimento de como andava a
miséria do mundo.
Pois bem, um grupo de cinco alunos da Universidade de
Brasília, em 1968, amavam a Revolução e o cinema de Buñuel. Assim, o romance se
estrutura em torno dos encontros dessem jovens, a cada dez anos, que narram,
expõem seus dilemas e desentranham suas vidas nos dez anos passados. Até que,
em um final buñuelesco, tudo explode no final, como em seu último filme.
E aproveitem para comprar e ler também o último romance da autora, “Maria Altamira”, que narra duas tragédias na natureza. A primeira, “natural”, começa com um terremoto que destruiu uma cidade de 22.000 habitantes noa Andes Peruanos; a segunda, provocada pelos humanos, que ameaça destruir o Xingu com a construção da Usina de Belo Monte.
E mais…
“Pauliceia de Mil Dentes”, um “romance de multidão” sobre a metrópole.
“Felizes Poucos” – coletânea de contos sobre a militância contra a ditadura.
“A Mãe da Mãe de Sua Mãe e Suas Filhas”, a saga de uma genealogia feminina pela história do Brasil, já traduzida para o inglês, francês e italiano.
A CBL
anunciou recentemente a assinatura de convênio com a Fundação Biblioteca
Nacional e a Agência Internacional do ISBN, para assumir o papel de Agência
Nacional do ISBN – International Standard Boook Number, o identificador unívoco
de cada edição comercial de livros.
O que
deveria ser visto e entendido como um aperfeiçoamento do processo de
comercialização de livros – pois é disso que trata o ISBN – foi entendido por
alguns como uma “perda financeira” para a FBN, que teria abdicado de uma fonte
importante de renda para seu funcionamento.
Devo dizer
que há anos, quando trabalhei na CBL (entre o final dos anos 1980 e 2002), sempre
defendi e busquei achar modo de que a CBL (ou o SNEL, ou uma associação entre
as duas entidades) passasse a ser a Agência Nacional do ISBN, o que sempre foi
recusado, inclusive com a justificativa dos ganhos financeiros que a emissão do
registro proporcionava.
A questão
de fundo, porém, nunca foi exatamente essa. A posição dos então dirigentes da
FBN se encorava, no meu entender, em um equívoco básico. Percebiam o ISBN como
um instrumento anexo à catalogação e ao depósito legal. Ou seja, como informação
bibliográfica. Como responsáveis legais pela publicação do catálogo
bibliográfico – o que não é feito há décadas, aliás – e pelo depósito legal,
consideravam o ISBN, no fundo, como um suplemento para suprir as deficiências
na execução dessas duas funções. Infelizmente existem editoras (de vários
portes, aliás) que não cumprem a exigência do Depósito Legal, e ainda assim,
pelo que transpira, a catalogação dos livros recebidos esteve muitas vezes em
descompasso com os livros amontoados sem catalogação e registro. Do mesmo modo,
o repasse de informações sobre o acervo bibliográfico para instituições
internacionais esteve quase sempre em atraso.
Um dos
fatos que testemunhei foi o atraso no envio de informações sobre obras
traduzidas para o português, que deveriam ser anualmente enviadas à UNESCO,
para consolidação do Index Translationum. Em 2015, quando estive em Paris para
o Salon du Livre e pretendia visitar a UNESCO, verifiquei que o envio de
informações pela BN estava atrasado vários anos, e pedi que atualizassem os
dados, o que fizeram. Infelizmente a UNESCO, em crise financeira, descontinuou
esse projeto que ocupava três pessoas e era um inestimável mapa do movimento
internacional de traduções.
Mas esses
são detalhes.
Para
chegar às raízes do ISBN, vale um pouco de história, inclusive de como a BN
virou Agência Brasileira do ISBN.
Há décadas
se constatava um problema radicado basicamente no comércio de livros. A
identificação unívoca de uma determinada edição se tornava cada vez problemática.
Cada editora, importadora, distribuidora e livraria usava códigos próprios,
totalmente arbitrários, para identificar os livros em seus estoques ou de sua
edição. Em 1965, um grupo de livreiros e distribuidores da Grã-Bretanha,
liderados pela rede WHSmith encomendou a elaboração de um sistema comum. O
professor de estatística Gordon Foster bolou então um sistema de nove dígitos,
o SBN – Standard Book Number que, no ano seguinte, evoluiu para ISBN por
iniciativa do editor, importador e distribuidor David Whitaker, o “pai do
ISBN”. No ano seguinte a R.R. Bowker, dos EUA, adotou o sistema. Em 1970, a
International Standard Organization (ISO), também adotou o sistema e organizou a
Agência Internacional do ISBN (assumida pela Alemanha), que passou a atribuir
os prefixos para as Agências Nacionais. Em 2007 o ISBN passou a ter 13 dígitos
para se adaptar à estrutura do código de barras da AEAN.
A difusão
do ISBN, impulsionada pelos mercados do EUA e da Grã-Bretanha, se expandiu de
forma rápida pela Europa, mas demorou muito a ser adotada nos demais
continentes. No final dos anos 1970, o CERLALC – Centro Regional para o Livro
na América Latina e Caribe -, órgão da UNESCO, tomou a iniciativa da difusão e
usou como tática convencer as bibliotecas nacionais dos respectivos países a se
tornarem Agências Nacionais.
Foi assim
que, de iniciativa nascida e destinada ao âmbito da comercialização de livros o
ISBN acabou parando nas mãos da BN no Brasil e em outras bibliotecas nacionais
dos países da região.
O ISBN, como identificador das edições comerciais é atribuído a cada edição e variação de um título (salvo reimpressões). Assim, edições de capa dura, capa mole, livros de bolso, edições eletrônicas, etc, recebem diferentes ISBNs.
ENTRAM OS METADADOS
Os livros têm outras informações que facilitam sua
identificação, como o título, o nome do autor e os dados da catalogação feitos
pelas bibliotecas nacionais. Mas o conceito de Metadado, que se desenvolve com
mais vigor a partir da ampliação do comércio eletrônico, sistematiza e amplia
os processos de identificação e busca dos livros em um número que cresce
geometricamente, inclusive com o surgimento e crescimento das auto publicações.
É o caso dos códigos BISAC e os padrões de identificação estabelecidos com o ONIX
e, mais recentemente, com o THEMA.
A
integração desses dados – que dependem, aliás, dos editores entenderem sua
importância e desenvolverem identificadores amplos e corretos – sempre foi e
continua sendo um empreendimento diretamente vinculado ao COMÉRCIO de livros. Preso
dentro de uma estrutura burocrática como a da Biblioteca Nacional, sempre foi
difícil ter a agilidade necessária para que essas informações prestem serviços
a editores, livreiros e, em última instância, aos leitores.
Isso tudo
tem custo, e não é pequeno. Dizer que a BN perdeu “x” milhões de reais é uma
falácia. Aliás, muito comum quando se fala em orçamentos e gastos de órgãos
públicos. O “bolso” da entrada é considerado e se esquecem dos vários “bolsos”
de saída, que vão desde os salários até os sistemas, passando pelas
atualizações tecnológicas, protocolos de integração, etc. Com dizer que a BN
até hoje não tem sistemas que permitam o diálogo da catalogação com outras
bibliotecas, nacionais e universitárias, que possibilitem sistemas de catalogação
cooperativa é uma boa síntese do problema.
Por isso mesmo, a transferência das responsabilidades do ISBN para a CBL e para o braço operacional Metabooks é uma excelente notícia para editores, livreiros, distribuidores e leitores e também para a BN, quer deixa de estar obrigada a uma tarefa que não era a sua. Esperemos que cumpram essa expectativa. E que, em algum momento, a administração pública proporcione não apenas à Biblioteca Nacional como aos demais órgãos da cultura em nosso país os recursos para que cumpram com as respectivas missões. O que, diante da política de desmonte, terraplanismo, ignorância e obscurantismo que estamos sofrendo, vai depender de muito esforço de todos os setores culturais.
Já tratei desse tipo de questões várias vezes aqui neste blog. Para ilustram, os links de dois posts aqui e aqui . Além de outros posts sobre metadados em geral.
Rodrigo Montoya é um dos mais importantes antropólogos peruanos. Mais que isso, é um pensados, à esquerda, que procura unir a tradições indígenas andinas e da Amazônia à luta pela democracia e pelo socialismo.
Tivemos, eu e a Maria José Slveira, a grande oportunidade de estudar Antropologia na Universidad Nacional Mayor de San Marcos – a mais antiga das Américas – entre 1976 e 1979. E mais, a pesquisa que fizemos sob orientação do Rodrigo Montoya em Puquio, no Departamento de Andahuaylas, se transformou e um livro publicado pela editora Mosca Azul, em Lima, assinado pelos três.
Desde o momento do golpe boliviano entrei em contato com Rodrigo Montoya para saber da sua interpretação dos fatos e as perspectivas que se abriam (ou fechavam), para o povo boliviano.
Logo depois do golpe boliviano publiquei também um post no FB, reproduzindo um pequeno trecho do romance “Com esse Ódio e com Esse Amor”, da maria José Silveira, que transcrevo aqui novamente:
LOS AYMARA No romance “Com esse ódio e esse amor”, Maria José Silveira conta uma história dupla. Uma engenheira brasileira viaja para a Colômbia para trabalhar na construção de uma ponte e acaba prisioneira das FARC. A história paralela é o roteiro de um filme que conta a rebelião de Túpac Amaru, a grande revolta dos povos andinos contra a dominação espanhola, ainda no Século XVIII. Na região que hoje está na Bolívia, a rebelião é liderada por Tupac Catari, que tem uma irmã, Gregória, conhecida como La Carnicera. Um trecho do romance: “Naquele momento único em que se dão conta que venceram, que os inimigos fugiram ou tombaram, o momento esfuziante em que a euforia da adrenalina dá lugar à sensação e um alívio extraordinário e ao cansaço extenuante da luta vencida contra a morte. Andrés, em seu cavalo, passa lento entre os mortos. É então que vê Gregória caminhando por cima dos corpos estendidos no chão, pisando-os, uma figura como que possessa, chicoteando de um lado para o outro. O ziiip de seu chicote andino fustiga o ar e os corpos tombados entre a lama, os restos, o sangue. Andrés pula de seu cavalo e segura seu pulso no alto: – Basta! Eles estão mortos. Gregória se vira para avançar sobre quem teve a ousadia de deter sua mão. Ao ver quem é, vacila. A força de Andrés controle seu pulso; com um arranco, ela o solta e se afasta. – Agora entendo por que os espanhóis te chamam de Carniceira – ele diz. Ela vira para ele os olhos incendiados, para e cospe no corpo morto do realista a seu lado.” São os Aymara. Para vocês sentirem como pode ser a reação dos que descem do El Alto para La Paz, onde a usurpadora disse que eles não cabem.
Espero que lhes seja útil como informação e reflexão sobre os acontecimentos na Bolívia.
A Colômbia publicou anúncio na Publishing Perspectives convocando interessados em se candidatar a bolsas de apoio à tradução de autores colombianos.
O programa é administrado conjuntamente pelo Ministério da Cultura
(lá continua existindo), através de seu “Grupo de Emprendimento”, a Biblioteca
Nacional e a Câmara Colombiana do Livro. O anúncio não especifica o quanto será
outorgado para a tradução de cada livro.
Uma novidade não muito comum em programas de apoio à
tradução é a seleção prévia dos títulos que serão apoiados. Foram selecionados
50 títulos, feita por uma comissão es de especialistas, entre 240 títulos
apresentados por mais de 40 editoras colombianas, que incluiu desde grandes
casas, como PenguinRandomHouse Colombia, Panamericana e Planeta a editoras
menores.
Segundo o anúncio, a primeira edição do programa, em 2018, distribuiu
doze bolsas para apoiar a tradução em seis idiomas nos mercados do Canadá, Dinamarca,
Egito, Estados Unidos e Turquia. Para esta segunda edição não foi especificada
q quantidade de bolsas disponíveis e o edital também não especifica idiomas
alvos específicos.
O programa de apoio à tradução de livros brasileiros
continua ativo na Biblioteca Nacional, com verba cada vez menor, e não
seleciona antecipadamente os títulos que serão apoiados.
A tragédia (uma de tantas, infelizmente), completa um ano.
Na segunda-feira, dia 2 de setembro, completa um ano do incêndio do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista. Já muito se comentou sobre a perda de coleções, incluindo aí os frágeis artefatos de arte plumária. E o esforço para recuperação do que sobreviveu às chamas está sendo feito com muito rigor e dedicação pela equipe do Museu e funcionários da empresa encarregada de limpar o sítio e criar as condições para o restauro do prédio.
Pouco se tem dito, porém, de outro tipo de perda
fundamental: a das bibliotecas instaladas no Museu Nacional. A Biblioteca
Histórica e o Centro de Línguas Indígenas foram destruídas. E destaco a perda da
Biblioteca Francisca Keller, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, e do material de pesquisa acumulado nas salas dos professores.
Ressalto, particularmente, os espaços ocupados pelo NuAP – Núcleo de
Antropologia Política.
Fui aluno do PPGAS no final da década de 70 e começo dos
anos 80. Lá fiz meu mestrado, orientado por Afrânio Garcia, e participei de
várias atividades do que então era informalmente uma espécie de núcleo de
estudos de economia camponesa, coordenado pelo Moacir Palmeira, com a
participação da Lygia Sigaud e dos já doutore e professores do PPGAS – Afrânio
Garcia, José Sérgio Leite Lopes, Beatriz Herédia, Rosilene Alvim e outros
mestres em Antropologia Social que já desenvolviam atividades profissionais
fora do MN. Outros grupos também desenvolviam linhas de pesquisa em várias
áreas. Otávio Velho também estudava sociedades camponesas; João Pacheco,
sociedades indígenas. Roberto da Matta, Luiz de Castro Farias e muitos outros
integraram o grupo discente do PPGAS e fiz cursos com vários deles.
Na época, os cursos do PPGAS se estruturavam principalmente
como seminários temáticos, com uma severa carga de leitura e participação nas
discussões. As leituras eram muito variadas, desde os clássicos da Antropologia
Social até pesquisas recém terminadas, além de textos ainda não publicados de
professores e colegas antropólogos.
Esse regime de estudos impunha o uso extensivo e intensivo
da Biblioteca do PPGAS, naqueles anos ainda relativamente modesta (e, ouso
dizer, com muitas cópias reprográficas de textos inacessíveis), mas muito
significativa na área. Foi crescendo, e antes do incêndio já contava com mais
de 37.000 itens. Os cursos realmente exigiam uma carga intensa de leituras.
Embora não houvesse uma cobrança explícita, coitado de quem era alvo de um dos
olhares da Lygia Sigaud, por exemplo, quando percebia que alguém não havia lido
– e refletido a respeito – do texto em discussão.
A vida nos levou – a mim e à Maria José Silveira, que fez o Mestrado em Ciências Políticas na USP e vários cursos no PPGAS – para outros caminhos. Mas a ligação com o Museu Nacional, por tão profunda, marcou a ambos. Quando vou ao Rio de Janeiro, procuro meios de encontrar antigos colegas e professores. Fui até membro de uma banca de mestrado, convidado pelo Moacir Palmeira, na discussão da dissertação de uma aluna peruana que trabalhou sobre o movimento sindical camponês daquele país. Quando exilados – por conta da ditadura que, segundo o sujeito que está lá no Planalto, nunca existiu – havíamos feito a graduação em Antropologia Social na Universidad Nacional Mayor de San Marcos. Fizemos um estudo em comunidades andina e fomos coautores, com o prof. Rodrigo Montoya, do livro com a pesquisa em uma dessas comunidades.
O espaço do NuAP, em um rincão do terceiro andar, era cheio
de arquivos com materiais de pesquisa – cadernos de campo, fotografias,
gravações, textos em andamento – tudo, enfim, que resultava de um trabalho
cientifico, coletivo e individual, do mais alto nível, com diversas
publicações, livros, coletâneas e artigos nas revistas especializadas.
Confesso que, quando aluno, ao passar pelas salas de
exibição e às vezes vagar pelo Museu Nacional, sempre ficava receoso ao
constatar a precariedade das instalações, principalmente em relação a
incêndios. Os alunos sabiam das demandas constantes, de todas as áreas do
Museu, por recursos para reforma e manutenção das instalações, assim como do
teto e de outros aspectos da edificação, visivelmente deterioradas. Com as
janelas fechadas quando não era horário de visita – às vezes tinha uma
impressão fantasmagórica, ao passar pelas múmias, pelo esqueleto do dinossauro
e outras salas de exposição.
Além da Biblioteca do PPGAS, a Biblioteca principal do MN
era um monumento. A enorme coleção de materiais bibliográficos, que incluía
relatórios de viagem de naturalistas e outros cientistas que vieram ao Brasil,
principalmente na segunda metade do Século XIX, fotografias e documentos
cruciais para o estudo do Brasil, estava lá. Com o passar dos anos e o
crescimento da coleção, o piso do terceiro andar ameaçava colapsar e,
felizmente, uma boa parte da Biblioteca do MN foi transferida para o prédio
anexo no Horto. Mas o Arquivo Histórico e o material de estudos de línguas
indígenas (CELIN) permaneceram no prédio principal.
Há alguns anos, quando nossa biblioteca particular exigia
uma seleção de descarte (brinco sempre que, para quem trabalha na área
editorial, livros se reproduzem em ninhadas…), o natural foi selecionar as
obras de Antropologia e Ciências Sociais, fazer uma lista e perguntar para a
Biblioteca do PPGAS o que lhes interessava. Quase tudo, menos os livros mais
comuns, editados no Brasil, dos quais havia várias cópias no acervo. E mandaram
uma Kombi que levou várias caixas de livros para o Rio de Janeiro.
Dito seja que sou contra políticas de acervo de bibliotecas que dependem de doações. Já vi muito lixo retirado de casas e deixado na porta de bibliotecas, onde bibliotecários não dispõem nem de luvas e máscaras para manusear e separar o lixo do que ainda pode ser aproveitado. Nossos livros, entretanto, eram – e são – muito bem cuidados, e as eventuais doações geralmente são antecedidas pelo envio de lista, de modo que os responsáveis possam escolher o que desejam. O mesmo já fizemos aqui em S. Paulo algumas vezes com o Sistema Municipal de Bibliotecas Públicas.
A perda desse acervo bibliográfico e documental das
bibliotecas do MN não tem sido muito comentada. Alguns podem pensar que, diante
da tragédia do incêndio dos artefatos e do prédio, essa seria uma parte
secundária.
Só que não é.
As bibliotecas, particularmente as acadêmicas, são vivas. Os
livros e documentos são constantemente revisitados, reestudados e reelaborados.
Os documentos de campo do Malinowski, um dos pioneiros da Antropologia
Cultural, por exemplo, já foram reexaminados tanto para verificação da acuidade
dos registros como para rediscussão de métodos de pesquisa e registro, assim
como os de muitos outros antropólogos. É também assim que a ciência progride
No caso da Biblioteca do PPGAS, o incêndio do acervo do prof. Luis de Castro Farias, incorporado na Biblioteca do PPGAS, foi uma perda enorme. Castro Farias acompanhou a expedição do Lévi-Strauss no Brasil Central, além de outras empreendidas por sertanistas e antropólogos, e todo o material havia sido doado à biblioteca.
E nem falemos da extensa documentação de viajantes,
naturalistas, que faziam parte do Arquivo Histórico.
Logo depois do incêndio ainda pensei que pelo menos parte da
documentação de pesquisa do NuAP, guardada em arquivos de aço, pudesse ter sido
salva. Essa ilusão foi dissipada em conversa com o prof. Moacir Palmeira. O
teto daquele segmento do terceiro andar havia sido parcialmente reformado, com laje
(a continuação desse trabalho, aliás, foi interditada pelo IPHAN), mas o piso
cedeu no incêndio e tudo aquilo desabou por dois andares, além de ter sido
incendiada, possivelmente pelo calor, se não diretamente pelas chamas. Moacir
tinha manuscritos e anotações não digitalizadas que estavam em sua mesa para
servir em uma reunião de trabalho que aconteceria na terça-feira. Domingo, 2 de
setembro de 2018, a tragédia bateu.
Quero destacar também, para os estudiosos e interessados em
Antropologia, que o PPGAS edita, desde 2002, uma importante revista com
trabalhos de alunos, ex-alunos e pesquisadores, a MANA https://www.revistamana.org/ com conceito
1A do Qualis Capes e indexação no ISI Web of Science. Não é para qualquer um.
Aliás, o PPGAS, desde seu o início, recebe a nota máxima na avaliação que a
CAPES faz dos programas de pós-graduação.
Dulce Paes de Carvalho, a biblioteca-chefe da BFK, explica
que a meta é recompor e ampliar o acervo até alcançar 40.000 exemplares. Já
foram recebidos aproximadamente 10.500 livros, com mais 8.000 exemplares a
caminho. De todo o mundo. De outras bibliotecas científicas, que enviam
duplicatas, editoras acadêmicas e instituições variadas.
Nós mesmo, outra vez, ao mudar de casa, selecionamos tudo o
que não tinha um valor emocional ou pessoal, encaixotamos e mandamos para a
recuperação do acervo da Biblioteca Francisca Keller, do PPGAS.
É pouquíssimo, comparado com a perda e até mesmo com a
quantidade que havíamos enviado antes, mas é a contribuição mínima que pudemos
fazer.
A Biblioteca Francisca Keller foi reinstalada no prédio do Horto para onde já havia sido transferida parte da Biblioteca do Museu Nacional. As instalações ainda são provisórias e a equipe se dedica hoje a receber e processar as doações recebidas, além de atender, na medida do possível, às demandas de professores e alunos do PPGAS, altamente prejudicadas, como se pode imaginar. A Biblioteca Francisca Keller estava digitalizando teses e trabalhos anteriores a 2006, ano em que passou a receber esse material em PDF e que estão a salvo, digitalizados. Os anteriores, entretanto, foram em grande parte perdidos no incêndio. A BFK está fazendo um chamamento a fim de recuperar esses trabalhos, anteriores a 2006, com a ajuda de todos os pesquisadores que já passaram pelo Programa, solicitando que enviem os arquivos que não aparecem em texto completo na Base Minerva (banco de dados do sistema de bibliotecas da UFRJ). O PPGAS tem uma página no FaceBook, noticiando as várias campanhas para o reerguimento da Biblioteca. Veja aqui .
O antigo site da Biblioteca Francisca Keller, acessível aqui ainda dá informações sobre as antigas instalações e o acervo da biblioteca.
O novo projeto arquitetônico já foi elaborado por professores e alunos da FAU/UFRJ, que pode ser visto aqui.
O mais importante, entretanto, é que todos podemos ajudar. Biblioteca Francisca Keller tem aberta uma campanha na Benfeitoria, com meta de arrecadar R$ 129.000,00 para compra de móveis, computadores e outros equipamentos. Já recolheu R$ 105.990,00 até hoje, e as doações podem ser feitas a partir de R$ 20,00. Mas, apressem-se, pois a campanha será encerrada no dia 12 de setembro próximo. Contribua aqui.
O Museu Nacional é um centro de resistência, democracia e
ciência. Não pode e não vai morrer.
Professora Rita Olivieri-Godet recebu o prêmio Blaise Cendrars da ABRALIC
A Associação Brasileira de Literatura Comparada – ABRALIC,
instituiu desde 2016 o “Prêmio Blaise Cendrars”, oferecido a um pesquisador que
trabalhe no exterior a literatura brasileira em chave comparada. A ganhadora
deste ano foi a professora Rita Olivieri-Godet, da Universidade de Rennes, na França,
e mapeada do Conexões Itaú Cultural.
Em sua carta de agradecimento à diretoria da ABRALIC, a
prof. Rita Olivieri-Godet lembrou que sua carreira inclui “vinte e quatro anos
dedicados ao ensino, à pesquisa e à difusão da literatura brasileira, através
de publicações em francês e em português e da organização de colóquios, na
França ou em universidades brasileiras e quebequenses, em parceria com colegas.
Uma longa travessia que me possibilitou construir muitas pontes e, sobretudo,
muitas amizades. Amigos e cúmplices das letras que nos permitem resistir,
existir. No momento atual em que as universidades brasileiras sofrem um ataque
inusitado por parte do governo, o prêmio Blaise Cendrars, que muito me orgulha,
também me confere mais responsabilidade para continuar produzindo e mais
legitimidade para me associar à luta em defesa do ensino, da pesquisa e da
extensão nas instituições federais brasileiras”.
Os dois primeiros premiados pela ABRALIC com o Blaise
Cendrars também são mapeados do Conexões Itaú Cultural. O primeiro agraciado
foi o prof. Pierre Rivas, e o segundo o prof. Berthold Zilly.
Blaise Cendrars foi importante poeta franco-suíço da
primeira metade do Século XX e teve uma importância singular na literatura
brasileira. Visitou o Brasil nos anos 1920, conheceu e ficou muito
impressionado com Oswald de Andrade – que reconheceu ter influenciado sua obra
posterior. Um dos pontos altos da visita do poeta foi a famosa viagem a Minas
Gerais com o trio modernista, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e a pintora
Tarsila do Amaral, que o acompanharam a algumas das cidades históricas. A
valorização da obra do Aleijadinho e do barroco mineiro se consolidou nessa
viagem de 1924, a segunda que Mário de Andrade fez a Minas Gerais, que os
modernistas apelidaram de “Viagem da Descoberta do Brasil”, dando novo tom à
aventura modernista, muito calcada em influências europeias.
O papel de Cendrars foi importante na percepção comparativa
da literatura brasileira, e certamente influenciou as obras posteriores dos
modernistas acrescentando mais uma camada na percepção da literatura brasileira
vis-à-vis a literatura internacional. A influência de Cendrars na literatura
brasileira (e vice-versa) foi o tema do discurso de recepção do prêmio
proferido pelo prof. Pierre Rivas, seu primeiro ganhador, e também mapeado.
Berthold Zilly, que ganhou o prêmio em 2017, grato e feliz por recebe-lo, destacou a importância em sua formação acadêmica dos seus estudos de literatura brasileira, tanto no tom comparativo como em suas pesquisas tradutórias. Zilly é tradutor de Euclides da Cunha e Raduan Nassar para o alemão, e trabalha em uma nova tradução de Grande Sertão: Veredas.
Luciano Gonçalves e Mariângela Ribeiro, donos de sebo Gregas e Troianas
Na última semana, o abaixo-assinado que conseguiu impedir a
ida de Míriam Leitão e Sérgio Abranches a uma feira de livros, uma das mais
recentes entre as atitudes chocantes e antidemocráticas dos partidários do
indivíduo que ocupa a Presidência da República, chamou atenção da mídia e de
quem se importa com o livro e a leitura. Os curadores do evento explicaram
detalhadamente como um sujeito que mora na cidade conseguiu assinaturas de mais
de três mil pessoas “repudiando” a presença do casal de autores.
O acontecido teve sua repercussão amplificada por serem os
dois autores quem são: a colunista do principal veículo porta-voz da
orquestração do golpe de 2016 e seu marido, sociólogo, conhecido no âmbito
acadêmico, e que, nesse episódio, foi rejeitado explicitamente por ser casado
com quem é.
Miriam Leitão nem iria participar de eventos por conta de
suas coletâneas de artigos econômicos, e sim por seus livros infantis. Sérgio
Abranches, pelo livro que revisa o conceito de “presidencialismo de
coalização”, aventado há vários anos.
Independentemente da qualidade dos livros (não os li),
certamente pesou no convite a repercussão – que se esperava positiva – da presença
da colunista d’O Globo. Deu o contrário.
A tentativa de perturbar o evento com a presença do
jornalista Glen Greenwald, em programação paralela à Flip, em Parati, foi outro
exemplo dessa intolerância. Felizmente, apesar da perturbação, não conseguiram impedir
a mesa e o debate.
A indignação é justa. Qualquer tentativa de sufocar o
debate, proibir livros e autores precisa ser veemente combatida.
Qualquer tentativa?
Infelizmente não tem sido assim.
Há pouco mais de um mês um casal de livreiros, vendedores de livros usados em Rezende, no Rio de Janeiro, sofreu uma brutal investida judiciária (como está na moda), do autonomeado bispo Edir Macedo. Luciano Gonçalves e Mariana Ribeiro, donos do sebo Gregos e Troianos estão sendo processados pelo autor-bispo, que pede vultosa indenização – pequena para a riqueza do dono da Record e pastor da Universal, mas potencialmente desastrosa para os livreiros.
A base do processo?
Os donos do sebo haviam colocado um banner na vitrina da loja, convidando racistas, machistas e homofóbicos a entrar, pois ali havia uma casa que prezava a cultura e a inteligência. Era, portanto, um espaço disposto a oferecer ajuda a quem estivesse disposto a se livrar dos preconceitos. O texto do banner também expandia o convite a “pessoas que não consideram a obra de Jair Bolsonaro, Silas Malafaia e Edir Macedo uma vergonha para a humanidade”, como diz o abaixo-assinado que circula em apoio ao casal.
O poster que provocou a ira do bispo…
Edir Macedo sabe muito bem da importância dos livros, e se
deu ao trabalho de escrever vários, inclusive extensa autobiografia em três
volumes, cada um dos quais entrou nas listas dos mais vendidos no ano do
lançamento. Edir Macedo também personagem muito assíduo nas crônicas judiciais
do país, como autor e como réu. Os processos em que Edir Macedo se envolve são
variados: vão de injúria a charlatanismo e lavagem de dinheiro. Seus seguidores
costumam replicar os processos em vários estados, obrigando quem se defende a
despender vultosos recursos com advogados e a presença nos variados processos.
O que importa aqui é que esse processo em específico representa um atentado à liberdade de expressão tão grave quanto o veto a Míriam Leitão e Sérgio Abranches, ou as ameaças a Glen Greenwald.
Mas, ao contrário dos dois famosos, os livreiros sofrem com
a ocultação do calvário judicial que ameaça seu ganha pão e, sobretudo, ameaça
uma livraria.
Mesmo nas lutas contra ações atrabiliárias, o caso dos
sebistas Luciano Gonçalves e Mariana Ribeiro mostra a terrível desigualdade que
se esconde por trás de alguns combates pela democracia e pela liberdade de
expressão.
O manifesto em defesa dos dois livreiros, encabeçado por Haroldo Ceravolo, Aldo Bocchini Neto, Daniel Louzada e outros (eu assinei logo no começo), está com 1.574 assinaturas. É pouco. Vamos mostrar que não apenas os autores famosos contam com a solidariedade do mundo do livro. Assine também aqui.
Há alguns dias li, na New York Review of Books/uma resenha escrita por Sue Halpern sobre um tema que me é muito caro, o das bibliotecas. Já havia visto o documentário Ex Libris, sobre a biblioteca pública de Nova York, dirigido por Frederick Wiseman em projeção no Instituto Moreira Salles, e depois encomendei o DVD. Só está disponível na loja da Amazon nos EUA ou na produtora ExLibris Films – One Richdale Av., Unit 4, Cambridge, MA 02140 – EUA.
O título do primeiro livro resenhado foi o que me enganchou: Palaces for the People: How Social Infraestructure Can Help Fight Inequality, Polarization and the Decline of Civic Life (Palácios para o Povo: Como a Infraestrutura Social pode Contribuir para a Luta contra a Desigualdade, Polarização e o Declínio da Vida Pública), por Eric Klinenberg. O título descreve sucintamente a minha percepção sobre o papel das bibliotecas públicas, centros culturais e outros locais nos quais o público tem acesso (na maioria das vezes gratuito) à informação, à cultura e ao divertimento. R$ 82,76 no formato Kindle na Amazon, em inglês.
O último título resenhado, The Library Book, por Susan Orlean, é uma história sucinta da Biblioteca Pública de Los Angeles que sofreu um enorme incêndio em 1976, o qual destruiu mais de 400.000 mil livros e danificou outros 600.000. A biblioteca foi reconstruída, boa parte dos livros danificados foi recuperada e as acomodações ampliadas, tornando-a novamente uma das maiores bibliotecas públicas dos EUA. Pode ser adquirido em inglês e em e-book na Amazon.
Escrevi para Sue Halpern, que gentilmente autorizou a tradução e a publicação da resenha.
EM LOUVOR ÀS BIBLIOTECAS PÚBLICAS – Sue Halpern
Anos atrás morei em uma remota cidade montanhosa que jamais
havia tido uma biblioteca pública. O município tinha uma das maiores áreas do
Estado de Nova York, mas a população era pequena, alguns milhares de habitantes
espalhados em mais de quinhentos quilômetros quadrados. Na época em que eu e
meu marido nos mudamos para lá, a cidade havia perdido boa parte de sua base
econômica – no século XIX foi sede de vários curtumes e moinhos – e nossos
vizinhos em sua maioria tinham empregos sazonais, se tivessem. Quando a
biblioteca móvel do sistema regional foi descontinuada, a cidade não tinha
acesso fácil a livros. O conselho municipal propôs um pequeno aumento de
impostos para financiar uma biblioteca, algo em torno de dez dólares por
família. A proposta foi rotundamente rejeitada. O sentimento dominante parecia
ser “deixe as coisas como estão” e “quem precisa de livros?”. E um sujeito
declarou que “bibliotecas são comunistas”.
Mas o conselho municipal armou algumas maquinações e conseguiu extrair quinze mil dólares do orçamento geral e nomeou a mim e dois professores aposentados – para, de alguma maneira – transformar esses recursos em uma biblioteca de empréstimo. Tínhamos cerca de três mil livros emprestadas pelo sistema regional de bibliotecas, que estavam enfiados em uma sala nos fundos da prefeitura. Fomos informados pelas bibliotecárias do sistema que, se conseguíssemos quinhentos associados em um ano, podíamos prosseguir. Levamos três semanas para conseguir isso. Nosso bibliotecário, cujo trabalho anterior era cuidar de um sebo, revelou-se um mestre em convencimentos, até mesmo junto aos lenhadores e trabalhadores de manutenção das estradas, que traziam seus filhos para a hora de contação de histórias e saiam com romances que ele escolhia para eles, que depois voltavam sozinhos para retirar outros. Os livros estavam sendo retirados aos montes e havia filas no balcão de atendimento. As crianças especialmente, mas também os adultos, não acreditavam que tudo era grátis.
A Biblioteca Central de os Angeles incendiou em 1986
No final do ano já tínhamos cerca de 1.500 inscritos, e
havia um clube de livros, uma hora de contação de histórias para a pré-escola, filmes
à noite e um grupo de leitura de peças teatrais. Alunos da escola pública,
muitos dos quais não tinham Internet em casa, vinham à tarde para fazer as
tarefas escolares. As pessoas entregavam livros nas mãos de estranhos, que não
permaneciam estranhos por muito tempo. Um sábado, quando eu observava tecelãs
de cobertores trocando padrões em uma mesa e crianças esvaziando as prateleiras
dos livros da série Magic School Bus,
e correndo para o balcão de empréstimos, me ocorreu que o sujeito que disse que
as bibliotecas eram comunistas tinha razão. Uma biblioteca pública é dedicada
aos ethos do compartilhamento e da igualdade. Não julga. E desse modo se
contrapõe ao materialismo e individualismo que, por outro lado, define nossa
cultura. Ela é desafiadora, orgulhosamente comunitária. Até mesmo nossa pequena
sala com estantes e mobília desencontrada e tapete gasto era, como nos lembra o
sociólogo Eric Klinenberg, palácios para o povo, como uma vez as bibliotecas
foram chamadas.
Klinenberg está interessado nas maneiras como espaços
comunitários podem corrigir nossa vida cívica turbulenta e polarizada. E ainda
que argumente em seu novo livro, Palaces
for the People, que playgrounds, clubes esportivos, botecos, parques,
feiras de produtores e igrejas – qualquer coisa, na verdade, que coloque as
pessoas em contato próximo umas com as outras – têm a capacidade de fortalecer
aquilo que Tocqueville chamou de linhas cruzadas que nos ligam com aqueles que
muitas vezes e de várias maneiras são diferentes de nós, ele sugere que as
bibliotecas talvez sejam as mais eficientes. “Bibliotecas são lugares onde pessoas
comuns, com formações, paixões e interesses distintos podem fazer parte de uma
cultura democrática viva”, escreve. No entanto, como observa Susan Orlean em
seu encômio às bibliotecas de todos os lugares, e que é adequadamente
intitulado The Library Book, o “caráter
público da biblioteca pública é uma característica cada vez mais rara. Cada vez
é mais difícil pensar em lugares que dão boas vindas a todos e nada cobram por
esse cálido abraço”.
Como assinala Klinenberg:
“Infraestrutura” não é um termo convencionalmente usado para descrever o que é subjacente na vida social…
[mas]
se os estados e as sociedades não reconhecerem a infraestrutura social e como esta funciona, fracassarão em perceber um modo poderoso de promover o engajamento cívico e a interação social, tanto dentro das comunidades como acima das afinidades grupais”.
Para vislumbrar o que ele quer dizer, só é preciso mergulhar nas três horas e dezessete minutos do documentário épico e inspirador de Frederick Wiseman, Ex Libris, um pitoresco percurso no maior de todos os palácios do povo: o sistema de Bibliotecas Públicas de Nova York, uma coleção de noventa e dois ramais com dezessete milhões de frequentadores por ano (e milhões a mais online).
Wiseman aponta suas lentes para o quotidiano (pessoas fazendo fila para entrar no edifício central ou folheando livros), o obscuro (a voz de um ator gravando um livro para cegos), e o singular (Khalil Muhammad[1] discutindo o Centro Schomburg de Pesquisa da Cultura Negra, um dos ramais do sistema), e sem dizer explicitamente (o filme não tem narração), mostra como a BPNY é um caso exemplar do que é uma biblioteca e o que esta pode fazer. Vemos bibliotecários ajudando estudantes com tarefas de matemática, apresentando feiras de empregos, ensinando braile, dando aulas de alfabetização e cidadania e patrocinando conferências. Vemos pessoas usando computadores, pontos de WiFi e, é claro, livros. São brancos, negros, morenos, asiáticos, jovens, sem teto, não tão jovens, surdos, mudos, cegos; eles são todos, o que simplesmente é a questão. Se você quiser entender a razão pela qual o governo Trump eliminou as verbas para bibliotecas nas propostas orçamentárias de 2018, 2019 e 2020, isso é mostrado nesse filme: as bibliotecas públicas derrubam os muros que existem entre nós.
E isso é de propósito. Uma declaração feita pela Associação de
Bibliotecas Públicas em 1982, intitulada “A Biblioteca Pública: Um Recurso da
Democracia”
A biblioteca pública é uma de nossas instituições singulares. Apenas a biblioteca pública proporciona um ambiente aberto e sem preconceitos no qual os indivíduos e seus interesses se encontram com o universo das ideias e da informação… O uso que se faz dessas ideias e informações é tão variado quanto os indivíduos que as procuram. As bibliotecas públicas oferecem acesso livre às suas coleções e serviços para todos os membros da comunidade sem distinção de raça, cidadania, idade, educação, situação econômica, ou qualquer outra qualificação ou condição.
Acesso livre às ideias e
informações, um pré-requisito à existência de uma cidadania responsável, é tão
fundamental para os Estados Unidos quanto os princípios de liberdade, igualdade
e direitos individuais.
O público ama a biblioteca pública. Klinenberg cita um
estudo de 2016 do Pew Research Center mostrando que mais de 90 por cento dos
americanos considera a biblioteca ser “muito” ou “de algum modo” importante para
suas comunidades. Os pesquisadores da Pew descobriram também que metade de
todos os americanos com mais de dezesseis anos de idade usaram as bibliotecas
no ano anterior. Mesmo assim, as bibliotecas são frequentemente alvos
convenientes para os cortes orçamentários. Depois da crise financeira, nos anos
2008-2013 por exemplo, a cidade de Nova York eliminou 68 milhões de dólares do
orçamento operacional da Biblioteca Pública de Nova York, o que resultou numa
diminuição dramática das horas de trabalho dos funcionários e no orçamento de
aquisições. (Uma boa parte do Ex Libris
é dedicada à filmagem de intensas discussões sobre orçamentos). Mas não foi
apenas a Biblioteca Pública de Nova York que sofreu. Um estudo da American
Library Association (Associação dos Bibliotecários) por volta da mesma época,
constatou que houve cortes no financiamento de bibliotecas em vinte e um
estados.
Isso já aconteceu antes, e acontece agora: bibliotecas, que são sustentadas por recursos locais, estaduais e federais, assim como por doações particulares, são cronicamente subfinanciadas e sujeitas aos caprichos de políticos e filantropos. Em uma carta de 1972 publicada nesta revista, um grupo de acadêmicos e escritores que incluíam Hannah Arendt, William Buckley, Ralph Ellison e Betty Friedan, entre muitos outros, denunciou os cortes no orçamento que prejudicavam os serviços na sede da Biblioteca Pública de Nova York:
O Ramal Central da Biblioteca Pública de Nova York
Houve um momento em que as portas da biblioteca estavam abertas ao público durante treze horas por dia, nos 365 dias do ano; assim o trabalhador, os que não tinham capacitação os pesquisadores sem afiliação acadêmica podiam usar amplamente e de forma anônima, sem nenhum custo, as riquezas das coleções de obras de referência. Há um ano, entretanto, a crise financeira da Biblioteca forçou o fechamento da divisão de referência às seis da tarde, e o fechamento completo nos fins de semana e feriados.
Os signatários pediam aos leitores que contribuíssem para as
coleções de pesquisa e referência. A carta saiu sob o título “Crise na
Biblioteca Pública de NY”. (A sede atualmente abre durante quatro horas aos
domingos; a maioria dos ramais menores é fechada nesse dia).
Em 2008, o bilionário de fundos de investimento Stephen Schwartzman doou 100 milhões de dólares para as estranguladas finanças da biblioteca. O edifício estilo Beaux Arts, o primeiro e principal da biblioteca, localizado na esquina da Quinta Avenida com a rua 42, que abriu em 1911 e levou dezesseis anos para ser terminado, a um custo de 9 milhões de dólares (mais 20 milhões pelo terreno), agora leva seu nome. Cem milhões de dólares é um monte de dinheiro, mas se apequena em comparação com a filantropia de Andrew Carnegie, o santo padroeiro das bibliotecas (e um dos barões da industrialização dos EUA), cuja generosidade de 55 milhões de dólares – equivalentes a 1.6 bilhões de dólares de hoje – financiou 2.509 bibliotecas pelo mundo a fora, das quais 1.679 bibliotecas públicas nos Estados Unidos, entre 1886 e 1919. Sessenta e sete destas estavam na cidade de Nova York, dezesseis das quais ainda abertas.
Rose Reading Room, o principal salão de leitura da BPNY
A devoção de Carnegie pelas bibliotecas era antiga. Seu pai ajudou a fundar a Tradesmen`s Subscription Library em Dunfermline, Escócia, onde era tecelão e membro do derrotado movimento Cartista[1]. Quando a industrialização liquidou com seu emprego, a família emigrou para a área de Pittsburg e, aos treze anos, depois de apenas cinco anos de escolarização formal, Carnegie começou a trabalhar, inicialmente como carregador de bobinas em uma fábrica de algodão e depois como mensageiro para uma companhia de telégrafo. Os jovens trabalhadores tinham permissão para retirar um livro por semana da biblioteca particular do Coronel James Anderson, um bem-sucedido fabricante local de ferro e veterano da Guerra de 1812. Carnegie escreveu em sua autobiografia:
Foi a partir de minhas primeiras experiências que decidi que não havia dinheiro mais bem empregado e produtivo para moços e moças que tivessem o bem dentro de si, habilidade e ambição para desenvolvê-lo, que o financiamento de uma biblioteca pública em uma comunidade que estivesse disposta a mantê-la como instituição municipal. Tenho certeza que o futuro das bibliotecas que tive o privilégio de financiar provará a correção dessa opinião.
A primeira biblioteca de Carnegie em Braddock, Pennsylvania, foi construída cerca de cem anos depois da fundação da primeira biblioteca pública do que mais tarde seriam os Estados Unidos. Em 1790, os residentes de Franklin, Massachusetts, escolheram permitir a circulação gratuita entre seus residentes de uma coleção de livros doadas à cidade pelo seu xará, Benjamin Franklin. Ao fazer isso, escolheram não seguir o exemplo de Franklin: em 1731 ele fundou uma biblioteca de subscrições na Filadélfia. Massachusettes também foi o local do primeiro grande sistema de bibliotecas públicas, o de Boston, fundado em 1854. A biblioteca que Carnegie fundou em Braddock era diferente dessas, já que tinha um teatro de 964 poltronas, com cortina de veludo, uma quadra de basquete e uma piscina. Sua missão era exercitar tanto o corpo quanto a mente. Nos dias de hoje, a biblioteca de Braddock, um edifício imponente, com torreão, construída no alto de uma colina acima da siderúrgica fechada de Carnegie, está danificada, e um grupo está tentando levantar 10 milhões de dólares para reformá-la – não de uma pessoa de grande riqueza, mas com um bilhão de centavos doados pelo público. (Até agora conseguiram 40 mil dólares).
A primeira biblioteca construída por Carnegie – hoje deteriorada.
As bibliotecas de Carnegie se estendem por todo o país, e as
106 do Estado de Nova York são eclipsadas por 142 na Califórnia. Seis dessas
estavam em Los Angeles, uma cidade com pouco mais de cem mil habitantes no
começo do Século XX, quando Carnegie fez suas doações; três ainda estão
funcionando. Nenhum dinheiro de Carnegie contribuiu para o que se tornou a
Biblioteca Central da cidade. Fundada em 1872 como organização financiada pela
anualidade de cinco dólares paga por seus membros, o que era inacessível para a
maior parte dos cidadãos, mas que em 1933 já circulava mais livros que qualquer
outra biblioteca do país.
Orlean documenta com agilidade esse crescimento fenomenal,
voltando para trás desde o estrépito do incêndio da Biblioteca Central em 1986,
enquanto percorre a biblioteca como ela é hoje, “uma máquina intrincada, uma
engenhoca de rolamentos que zumbem”. Ao fazer isso, consegue no papel o que
Wiseman faz no filme: familiarizar o leitor com a verdadeira infraestrutura da
biblioteca – o departamento de circulação que envia 32.000 livros diariamente
para todos os cantos da cidade; as coleções de fotografia e mapas; os
bibliotecários da área de referências disponíveis para responder perguntas, por
exemplo, sobre Pussy Riot, etiqueta de obituário e o tempo de vida dos
papagaios; os membros da equipe que ensinam crianças a codificar e ligam
usuários sem-teto com serviços muito necessários – e revela assim a extensão
desse valioso recurso comunitário e um exemplo perfeito do que Klinenberg está
falando quando louva os benefícios da infraestrutura social.
Quando a Biblioteca Central de Los Angeles incendiou, o prédio ardeu a mais de 1.000 0C durante sete horas. Mais de quatrocentos mil livros foram destruídos, entre os quais toda a coleção de peças americanas e inglesas da biblioteca, todos os livros sobre a Bíblia e a história da igreja; 45.000 obras de literatura, 18.000 livros de ciências sociais, 12.000 livros de culinária, todos os livros sobre pássaros, 5,5 milhões de patentes registradas que datavam desde 1799, e muito mais, nada disso coberto por seguro. Orlean busca, de modo ligeiro, revelar o mistério de quem – se foi alguém – começou o incêndio, e por que razão. Queimar livros, do seu ponto de vista, é um tipo de genocídio, um modo de apagar a memória coletiva de um povo: Mao (ele mesmo bibliotecário), os nazistas, os frequentadores dos festivais de queima de livros durante a Inquisição espanhola, e no ano passado um fanático religioso que queimou uma quantidade de livros LGBTQ infantis que havia retirado de uma biblioteca pública de Iowa – todos envolvidos em “libricídio” para incinerar ideias e apagar grandes trechos da história. Se o incêndio na Biblioteca Central foi deliberado, com que objetivo?
Como outros que investigaram o incêndio, Orlean mira
principalmente em um ator desempregado e vagabundo chamado Harry Peak, que pode
ou não ter estado no edifício na manhã do incêndio, deu um encontrão em uma
pessoa correndo para fora do prédio, sendo o jovem colocado para fora da sala
dos bibliotecários onde havia se servido de um copo de café, ou ser o mesmo
jovem que foi mandado para fora de áreas restritas da biblioteca, e ser o jovem
louro do desenho feito por um artista da polícia depois de ouvir descrições da
pessoa que havia feito tais coisas. Incêndio proposital é algo difícil de
determinar, especialmente em um edifício já antigo, conhecido por ter problemas
de fiação, e Peak, que morreu em 1993, resultou ser um narrador definitivamente
não confiável. Alegou mais de uma vez que esteve na biblioteca naquela manhã, e
em outras ocasiões afirmou que nem chegou perto dali. Seus álibis mudavam e
mudavam novamente, o que provocou pouca surpresa em quem o conhecia (sua irmã
disse que ele era “o maior mentiroso do mundo”), mas desconcertaram os
investigadores policiais, que fracassaram espetacularmente na acusação, prendendo-o,
mas tendo que soltá-lo por falta de provas.
A despeito de seus melhores esforços, Orlean, também, foi incapaz de solucionar o caso. “O incêndio da Biblioteca Central me confundiu”, escreve. “Por mais que tentasse, não consegui me convencer totalmente de que Harry iniciou o incêndio”. Para os leitores entretidos com as peregrinações de Peak, isso tem pouca consequência. A história dele é apenas um adendo a um mistério maior e mais fascinante: como uma biblioteca cresceu a partir de quase nada para se tornar, como sugere seu nome, central para os residentes da segunda mais populosa cidade do país, emprestando mais de 900.000 livros por ano, respondendo a seis milhões de consultas de referência, e dando boas-vindas a 700.000 usuários. Essa noz é deliciosamente quebrada por Orlean.
Saguão central da Biblioteca Central de Los Angeles, reconstruída depois do incêndio.
O crescimento da Biblioteca Central espelha o crescimento de
Los Angeles. Em 1873, quando a biblioteca por assinatura foi aberta, Califórnia
tinha menos de vinte e cinco anos como estado e Los Angeles uma população de
menos de 11.000 pessoas. Em 1904, a população havia se multiplicado por dez e a
biblioteca circulava aproximadamente 800.000 livros por ano. Pouco mais de
vinte anos depois, quando o número de residentes ultrapassou meio milhão, mil
livros eram retirados a cada hora, cerca de três milhões por ano. Realmente, representadas
em conjunto em um gráfico, os números do crescimento demográfico e os da
circulação de livros são praticamente paralelos. Se isso parece óbvio, é apenas
porque agora assumimos a importância das bibliotecas e seus serviços para todos
os membros da comunidade.
O que torna única a Biblioteca Central e sua história tão
interessante, são as pessoas que a conduziram através de sua metamorfose.
Muitas foram mulheres, muito antes que a profissão de bibliotecária se tornasse
predominantemente feminina. Orlean apresenta os leitores à Mary Foy que, em
1880, com dezoito anos de idade, assumiu a direção da antecessora da Biblioteca
Central, a biblioteca por assinaturas que na época não permitia que mulheres
tirassem livros emprestados e as relegava a uma separada “Sala de Senhoras”.
Duas bibliotecárias a sucederam e depois uma terceira: uma repórter de Ohio
chamada Tessa Kelson, uma mulher de cabelos curtos, fumante, que na época foi
descrita como “fora dos padrões”.
Kelso teve a visão de antecipar a biblioteca tal como agora
a conhecemos, imaginando-a não apenas como o repositório de livros, como também
de material esportivo, jogos de mesa e “toda a parafernália para uma diversão
saudável… que está fora do alcance da média dos rapazes ou moças”. Antes que
ela pudesse tornar realidade sua visão, foi demiti por acrescentar à coleção o
romance Le Cadet, do autor francês
Jean Richepin, considerada maliciosa por alguns dos árbitros da moralidade da
cidade. Ela processou um deles por calúnia, um ministro metodista chamado J. W.
Campbell, e apesar de ter vencido (a igreja fez acordo), ainda assim perdeu o
emprego.
Depois veio Mary Jones, que foi sumariamente demitida em 1905,
quando o conselho da biblioteca subitamente decidiu que preferia um homem
dirigindo a biblioteca. Jones contestou a decisão, mobilizando mais de mil
mulheres para assinar uma petição de apoio a ela dirigida ao prefeito e ao
conselho da biblioteca e, quando não obteve resposta a ir às ruas. No final ela
desistiu, mudou-se para a costa leste, e foi bibliotecária chefe em Bryn Mawr.
Orlean se diverte muito descrevendo as desventuras e pecados
do sucessor de Jones, um bon vivant
chamado Charles Lummis. Este era um poeta cujo primeiro livro, Birch Bark Poems (Poemas na Casca de
Bétula), foi realmente publicado em cascas de bétulas, que ele mesmo descascou
e costurou, e que ganhou fama nacional quando ele fez o relato de sua caminhada
desde a costa leste, onde renunciou a Harvard, para ir a Califórnia, onde iria
assumir uma posição no Los Angeles Times.
Sua propensão para desaparecer durante semanas para vagabundear ou presidir
bacanais orgiásticos finalmente lhe custou o emprego no jornal, e não diminuiu
quando ele assumiu a biblioteca. Ainda assim, Orlean lhe dá o crédito de
transformar a biblioteca na “instituição que é hoje… [pressionando] para que
se transformasse em um centro sério de pesquisas acadêmicas”, e estabelecendo a
coleção de fotografias, assim como coleções de História da Espanha e da Califórnia.
“Sua ambição era tornar a biblioteca completamente acessível – “uma oficina
para acadêmicos, incluindo todos os aprendizes de pintores ou jovens
trabalhadores ou condutores de bondes, tanto quanto inclua professores de grego
ou o artista amador”, escreve Orlean, citando Lummis. “Sua atitude de inclusão
era incomum na época. Fez campanhas para atrair usuários que antes não haviam
considerado usar a biblioteca”. Essa é a essência e a missão da biblioteca
pública de hoje.
Julho passado um professor da Universidade de Long Island
publicou um artigo na Forbes
argumentando que as bibliotecas públicas deviam ser fechadas, porque estavam
ultrapassadas, agora que a Netflix faz streaming de filmes, Starbuks oferece
wi-fi grátis e, o que seria mais conveniente, livros eletrônicos ficam instantaneamente
disponíveis na Amazon. Fechar bibliotecas em favor da Amazon seria então algo
proveitoso para todos, disse ele, porque os impostos diminuiriam, enquanto o
preço das ações da Amazon subiria. O professor estava especialmente enamorado
das lojas sem caixas de pagamento da Amazon, as quais, na sua avaliação,
“basicamente combinam uma biblioteca com uma Starbucks”. A “biblioteca” a qual
ele se refere é um empreendimento comercial que vende livros.
A reação ao artigo, quando os leitores se deram conta que
ele não era uma sátira, foi de ultraje e ridículo, e Forbes removeu-o de seu website cerca de setenta e duas horas
depois da publicação. Mas o engraçado foi que o autor, inadvertidamente,
apresentou fortes argumentos em favor do valor e da existência continuada das
bibliotecas públicas:
Houve épocas em que as
bibliotecas ofereciam à comunidade local muitos serviços em troca do dinheiro
dos impostos. Traziam livros, revistas e publicações acadêmicas para as massas
através de um sistema de empréstimos… Também proporcionavam à população um
local confortável no qual podiam desfrutar dos livros. Proporcionavam às
pessoas um lugar onde podiam fazer suas pesquisas em paz com a ajuda de
bibliotecários amigáveis…
As bibliotecas pouco a pouco
começaram a prestar mais serviços à comunidade. As bibliotecas introduziram empréstimo
de vídeos e acesso livre à Internet. A moderna biblioteca local ainda
proporciona esses serviços, mas não são gratuitos. [Na verdade são] financiados
pelos contribuintes [na] forma de um “imposto de livraria”.
As bibliotecas, na verdade, jamais foram “gratuitas”, não
mais que as escolas públicas, estradas ou serviços públicos de saúde são
“gratuitos”. Era de se esperar que um professor de economia soubesse disso. Ou
pelo menos que soubesse fazer as contas: o “imposto per capita da biblioteca” (a parte alíquota do orçamento público
que financia a biblioteca) do sistema de bibliotecas de Los Angeles, por
exemplo, é de apenas US$ 32,77 – ou seja o valor de cerca de nove
café-com-leite médios no Starbuck. Existem nove lojas Amazon Go nos Estados
Unidos, e 16.568 bibliotecas públicas, muitas em lugares onde nem a Amazon ou
Starbucks jamais se aventurarão, como os ramais no extremo do Bronx e Los
Angeles, onde Wiseman e Orlean nos levam, ou nos lugarejos rurais como o da
biblioteca que ajudei a fundar está localizado.
Essa biblioteca tem agora cerca de 40.000 itens em suas
prateleiras, incluindo jogos, quebra-cabeças e equipamentos esportivos, tal
como Tessa Kelson imaginou há mais de um século. Ainda que pequena e sem alguns
dos confortos de uma comunidade com mais recursos, é uma sucessora valiosa das
bibliotecas financiadas por Carnegie. Essas, isso deve ser assinalado, também
não eram “gratuitas”: antes de fazer a doação, Carnegie exigia que cada cidade se
comprometesse a alocar recursos que cobrissem pelo menos dez por cento do custo
anual da biblioteca, assim como proporcionar o terreno para sua construção. E esses
beneficiários se comprometiam também a fornecer os serviços sem custos para os
frequentadores.
Talvez a refutação mais definitiva da ideia de trocar
bibliotecas pela Amazon e por cafés seja a de um antigo empregado da Starbucks,
que Klinenberg conheceu em um dos ramais da Biblioteca Pública de Nova York,
onde ele é agora “especialista em informação”: “No Starbucks, e na maior parte
dos negócios, realmente, a suposição é de que você, freguês, é melhor por ter
comprado tal coisa, certo? – disse ele. – Na biblioteca, a suposição é de que você
é melhor. Você já é isso… A biblioteca supõe sempre o melhor das pessoas”.
[1] Movimento
operário inglês, particularmente ativo entre 1838 e 1848, que lutava por
direitos políticos para os trabalhadores (o voto era censitário na época)
[1] Professor
da Harvard Kennedy School e do Instituto Radcliffe, militante do movimento
negro.
O Projeto Mapeamento Internacional da Literatura Brasileira busca levantar sistematicamente a expansão dos estudos e pesquisas sobre nossa literatura no exterior. Já temos 347 professores, pesquisadores e tradutores no banco de dados, espalhados por 42 países e vinculados a 166 instituições. Já deu para que se pense em várias questões a partir desses dados.
Alguns dos obstáculos para que a nossa literatura seja melhor
difundida já foram constatados. A distribuição é um deles. O Brazilian
Publishers, programa promovido pela APEX/CBL, tem focado mais na venda de
direitos autorais, com apoio na participação em feiras internacionais. A
exportação de livros é relegada a um segundo plano e as possibilidades de
aproveitamento dos formatos digitais são pouco exploradas. O resultado é que as
poucas livrarias que vendem livros em português no resto do mundo têm mais
facilidades – principalmente na Europa – de conseguir livros importados de
Portugal. O frete encarece demais o livro brasileiro.
Outra questão importante são as comunidades de brasileiros
que vivem no exterior. O Itamaraty calcula que cerca de três milhões de
brasileiros vivem fora do país, e as maiores colônias são nos EUA, no Paraguai
e no Japão, onde aproximadamente moram 170.000 brasileiros.
Os dados são precários, já que não existe controle efetivo
disso e, principalmente nos EUA, existem muitos clandestinos submergidos nos
dados tanto dos EUA quanto dos consulados brasileiros.
Além dos brasileiros – nascidos aqui e emigrados – as
colônias obviamente têm filhos nascidos no exterior. O estatuto dessas crianças
depende de cada país (se a nacionalidade é outorgada pelo local de nascimento
ou pela origem étnica, ou pelos dois casos). Os filhos de brasileiros que
nascem no exterior, por exemplo, podem ser registrados nos consulados e
considerados como brasileiros natos, mesmo que mantenham outra nacionalidade.
Isso é possível desde que foi outorgada a Constituição de 1988.
De qualquer forma, esse mercado potencial é muito pouco
explorado, principalmente no que diz respeito ao ensino do Português como
língua de herança, seja com o apoio à formação bilingue ou com a
disponibilização de livros para essa multidão de expatriados. O Itamaraty
mantém um programa de certificação de livros para o ensino do português como
língua estrangeira, e existe uma articulação das comunidades de brasileiros no
exterior, embora seja débil.
Existem igualmente algumas articulações de escritores brasileiros
no exterior, inclusive com a organização de encontros. São escritores
emigrados, ou emigrados que se tornaram escritores quando no exílio, que
publicam blogs e às vezes livros auto-publicados.
Por isso mesmo, quando se tem notícia da inauguração de uma
biblioteca infanto-juvenil em Osaka, no Japão, há motivo para comemorar.
Luzia Tanaka é formada em Educação Artística e Pedagogia
aqui no Brasil, pelo convênio firmado entre Brasil e Japão em 2008, com a
Federal do Mato Grosso e a Universidade Tokai. Há dez anos, ela fundou a ARTEL
– Oficina de Arte Educação e Letramento, para ensinar português como língua de
herança, para crianças de cinco aos dezoito anos. Embora o Japão tenha o maior
número de escolas brasileiras no exterior, segundo Luzia, não há nenhuma em
Osaka.
Segundo ela, são duas as motivações que estimulam as ações
de ensino do português como língua de herança. “Os pais têm esperança de um dia
voltar ao Brasil. Já os educadores e intérpretes de língua japonesa em escolas
japonesa entendem que trabalhar o português como língua de herança é
fundamental na formação e fortalecimento das crianças e jovens para que possam
se tornar pessoas capazes de serem o que desejam em qualquer lugar do mundo em
que vivam.”
Além das aulas, a iniciativa da ARTEL mantém uma pequena
biblioteca de livros infantis, e pretendia estabelecer um serviço de difusão,
com o envio de livros pelo correio. Entretanto, o pequeno acervo de
aproximadamente 400 títulos não permitia isso. Luzia, então, conheceu a
professora e autora de livros infantis, Susana Ventura, através do IIEC –
International Institute of Education and Culture, entidade japonesa que apoia
as crianças estrangeiras que estudam em escolas japonesas e têm dificuldades no
acompanhamento escolar. Apoia também o ensino do Português, e organiza
Simpósios do Português como Língua de Herança em Hamamatsu, com apoio do
Consulado Brasileiro. Hamamatsu, é a província com maior número de brasileiros
no Japão. A duas se conheceram por ocasião do III Simpósio, que aconteceu em
Nova Iorque em 2016. Luzia participou via teleconferência e Suzana estava
presente.
De volta ao Brasil, Suzana Ventura usou seus contatos com
escritores e editores da área, para ajudar no projeto de Luzia Tanaka: “Em 2017
e 2018 realizei curadoria para ampliação do acervo. Não tínhamos dinheiro
e, portanto, o acervo atual, que conta com 1500 livros (há 600 viajando neste
momento para Osaka) – foi montado com doações motivadas por cartas minhas a
autores, ilustradores, editores. Também recebemos uma doação do Pró-Saber
(Paraisópolis), que nos deu duplicatas, e outra do Colégio Hugo Sarmento (que
contribuiu com livros mais antigos, já usados, mas importantes para documentar
a literatura brasileira para crianças e jovens)”.
Luzia Tanaka resolveu homenagear Suzana pelo apoio, dando
seu nome à biblioteca, que foi inaugurada recentemente, no dia 21 de março.
Os livros foram transportados ao Japão gratuitamente pela
empresa Susan Mudanças, com apoio do Consulado do Brasil em Nagoya.
Portugal, através do Instituto Camões e de articulações com
instituições como a Caritas e o Conselho Mundial de Igrejas, têm ações
sistemáticas de ensino do português como língua de origem e apoio aos
emigrados, principalmente na Europa.
Políticas públicas para o livro e o mercado editorial