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SUICÍDIO DE EDITORES?

A velha piada de que os editores se suicidam pulando do alto das pontas de estoque, também conhecido como “estoque regulador”, como gozava o então presidente da CBL, Altair Brasil, ficou ultrapassada.

Ficou substituída pelo salto pró-censura que alguns estão se preparando para dar, votando no candidato que defende a censura, o expurgo da variedade de alternativas nos livros escolares e o amordaçamento dos professores.

A diversidade das opções políticas e ideológicas do mercado editorial é um fato. Mais que isso, é uma necessidade. Triste do país, dos leitores, dos estudantes e de todos ligados ao mundo dos livros se houvesse alguma espécie de pensamento único nas nossas publicações. Seja lá de que lado fosse no espectro das opções políticas.

E, só para lembrar, a censura afeta um dos órgãos mais sensíveis do corpo humano, particularmente dos editores e livreiros: o bolso.

Acho que ninguém é insano a ponto de pensar que as centenas de professores, de todas as áreas do saber humano, que avaliam os livros adotados pelas escolas – escolhidos, em última instância, pelos professores – aceitará trabalhar fora dos parâmetros estabelecidos pela Constituição Federal de liberdade de expressão e de ensino. Padrões que devem respeitar dois critérios básicos: não conter mentiras e deturpações e, explicitamente, não aceitar formulações que impliquem em racismo, discriminação por cor, idade e opção sexual.

Ora, mudar esses critérios seria extremamente complicado. Mas é factível, sem dúvida. João Batista de Oliveira, que foi o primeiro secretário executivo do Paulo Renato “experimentou” um programa de livro único, aproveitando recursos do Banco Mundial para um “reforço” na educação do Nordeste, e publicou edital pedindo propostas de livro único.

Se os livros apresentados fossem aprovados pela comissão, o que valia era o preço. Ganhou o projeto apresentado por uma grande editora (hoje em recuperação judicial), que recortou seus livros e montou um pastiche que apresentou como “livro único” que passou raspando pela avaliação. Mas era o de menor preço. E lá foi um livro vagabundo adquirido precisamente para as escolas com os alunos mais carentes. O resultado foi tão ruim que no ano seguinte voltou-se ao formato original. É o tipo de comportamento de quem espera fazer mais pastiches para vender ao MEC. Atualmente João Batista de Oliveira está no Instituto Millenium.

Uma iniciativa destas é mais difícil, pois existem mecanismos legais reforçando a qualidade e a diversidade dos livros adquiridos pelo PNLD, como os Parâmetros Curriculares e a própria LDB, além do PNE – Plano Nacional de Educação. Sem falar na Constituição Federal.

De qualquer modo, mudanças provocadas pela ideologia da “escola sem partido” – ou do pensamento único – exigirão das editoras vultosos investimentos para a substituição dos livros existentes, revisados anualmente e sempre avaliados por professores recrutados em várias universidades, e independentes do MEC.

Como isso é extremamente difícil, a probabilidade é a reinstituição das “Comissões”, que existiram até 1985, eliminadas pelo então Ministro da Educação Marco Maciel. Como se sabe, essas “comissões” foram, por décadas, um dos maiores focos de corrupção na aquisição dos livros pelo MEC, favorecendo inclusive editoras fajutas que só existiam para produzir esses livros que nenhum professor conseguia usar.

Quem esqueceu dos esforços continuados para avaliação e melhoria dos livros usados nas escolas – que começou, aliás, ainda na administração Murilio Hingel, no governo Itamar Franco – e foi progressivamente aperfeiçoada por todas as administrações seguintes, pode vir se defrontar com a volta do arbítrio, politicagem e favorecimentos anteriores a esse processo.

Isso certamente prejudicará as editoras sérias, que verão seus investimentos e seus esforços jogados na lixeira. Talvez com o ressurgimento de produtoras – não se pode nem chamar de editoras – picaretas que façam pastiches para atender à moda autoritária eventualmente implantada pelo MEC.

Na área da literatura para crianças e jovens, pode-se imaginar a fúria censória sobre livros de altíssima qualidade que tornam hoje as obras dos autores brasileiros reconhecidas mundialmente por sua qualidade. Se já temos exemplos de livros censurados na prática por ignorantes e preconceituosos, que acusam até a Ana Maria Machado de não sei o quê, o que poderemos esperar?

As editoras de obras gerais também sofrerão, pois, mesmo que não seja reinstituída a censura oficial de livros, a fúria retrógrada certamente intimidará autores e editores. Os exemplos da ditadura civil-militar instaurada em 1964 estão ainda presentes. Obras como a do Deonísio da Silva sobre as tristes façanhas da censura esperarão quantos anos para ser revistas?

Um dos grandes problemas das políticas públicas – em todas as áreas, não somente na educação – é a falta de continuidade, avaliação e aperfeiçoamento. Desde o começo da década de 90 do século passado esse processo de avaliação e aperfeiçoamento felizmente vem acontecendo com a educação em nosso país. E corre o risco de ser jogado fora se o autoritarismo vencer.

Políticas públicas que tiveram continuidade e aperfeiçoamento em administrações de vários partidos, desde o governo Itamar Franco, serão desprezadas em favor de uma ideia retrógrada do que seja a educação e o papel dos professores e dos livros escolares.

Isso é, efetivamente, a abertura de uma nova forma de suicídio para os editores: o esmagamento da concorrência pela melhor qualidade dos livros entregues aos jovens em favor de coisas (não se pode seriamente dizer que são livros escolares) fabricadas por oportunistas, que desrespeitam a liberdade de expressão, o confronto de ideias e a formação dos alunos como seres pensantes e não como robôs de pensamento único.

No entanto existem editores que apoiam isso, a pretexto de detestarem o PT.

Quem me conhece sabe que sempre votei no PT, ainda que também manifestasse com frequência minhas críticas a coisas que aconteciam. Mas também sabe que, enquanto profissional e quando trabalhava na CBL sempre estive muito confortável defendendo a posição dos editores e livreiros junto ao MEC, MinC e outras instituições estaduais, federais e municipais seja lá de que partido fosse o governo.

E fazia isso por uma razão muito simples: nunca, durante o período em que lá trabalhei ou militei como associado, a CBL defendeu medidas autoritárias ou antidemocráticas. Ainda que nenhum dos presidentes junto aos quais colaborei fosse petista e nem mesmo simpático ao PT.

Agora, com imensa tristeza, vejo editores defendendo o candidato que diz que vai fazer precisamente o contrário do que interessa aos editores corretos, e jogar fora anos e batalha pela democratização e ampliação do acesso ao livro e à leitura por toda a população.

Uma pulsão de morte como essa, sinceramente, nunca vi. Mais além de ser uma nova forma de suicídio, torna esses editores e livreiros cúmplices da intolerância e do desrespeito aos demais.

É triste e lamentável.

SOBRE ADAPTAÇÕES, INCENTIVOS FISCAIS, DEBATE E CENSURA

Nos últimos dias uma polêmica correu na Internet acerca da publicação de uma “versão simplificada” de O Alienista, do Machado de Assis, pela escritora Patrícia Secco, e patrocinada pelo Instituto Brasil Leitor. O projeto foi incentivado pela Lei Rouanet, e terá uma edição de 600.000 exemplares, a ser distribuída por essa instituição em seus vários programas.

Já escrevi no FaceBook e repito aqui. Acho esse tipo de “simplificação” uma bobagem. Se fosse reconto, ou recriação em outro gênero (peça de teatro, roteiro, série televisiva, história em quadrinho), nada a objetar. Ou, como fizeram os Lamb com Shakespeare – escrevendo versões em prosa das peças, em um trabalho autoral, que não pretendia “simplificar” o Bardo – também tudo bem.

Mas as “simplificações” já têm uma história complicada. A mais notória foi a que um professor dos EUA fez com o Mark Twain. Tirou do “Tom Sawyer” e do “Huckleberry Finn”, por que considerava ofensivo para os negros americanos do Século XXI ler palavras típicas do vocabulário do Século XIX, como “nigger”, e resolveu fazer as versões politicamente corretas. Fez, vendeu e continua vendendo, já que encontra apoio em várias áreas da sociedade dos EUA para isso. O autor da proeza foi Alan Gribben, professor de inglês da Auburn University, que escreveu, em um artigo no New York Times, “que promoveu o projeto como meio de tornar o texto modificado mais acessível aos leitores mais jovens e ao público em geral”. Uma discussão sobre o assunto está no The Harvard Crimson.
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Um abril para não esquecer. A Ditadura e a indústria editorial

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O golpe civil-militar que instalou a ditadura no dia 1. de abril de 1964 teve profundas repercussões na indústria editorial brasileira. Em vários níveis.

A mais evidente e comentada foi a censura a livros, e os ataques a algumas editoras, com a prisão dos seus responsáveis. O mais conhecido desses é o caso da Civilização Brasileira.

Ênio Silveira era ligado ao PCB. Mas sempre atuou com uma independência intelectual admirável, e editou muitos livros que seriam abominados pelo partidão. Pagou caro por isso, com a bomba que foi jogada na sede da editora e da livraria, na Rua Sete de Setembro, no Rio de Janeiro, o incêndio do depósito e o estrangulamento do crédito. A Civilização Brasileira é um exemplo paradigmático da resistência dos editores. Não foi a única, mas a verdade é que a censura violenta contra a Civilização Brasileira deixou muitos e muitos editores em estado de “auto-censura”, com raras exceções.

É bom lembrar que o maior volume de livros censurados o foi por conta da “moral e dos bons costumes”. Nesse sentido, o caso do Rubem Fonseca é paradigmático. O autor fez parte do grupo civil que deu respaldo “intelectual” ao golpe de 1964, no IPES fundado e dirigido pelo general Golbery do Couto e Silva, o fundador do SNI. Era advogado da Light e suas credenciais de direitistas sempre foram impecáveis. Mas, excelente escritor que é, Rubem Fonseca mostrou um retrato cáustico da burguesia carioca, em particular em alguns contos do Feliz Ano Novo. A reação foi fulminante, e o livro foi fazer companhia aos escritos por Adelaide Carraro e Cassandra Rios.
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Livros contra a ditadura

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O ano de 2013 foi especialmente movimentado quanto à discussão da repressão política no período da ditadura civil-militar instaurada em 1964. O golpe que derrubou Jango, em 1964, ano que vem completará cinquenta anos, e passou por uma nova etapa de estudos e crítica. Foram instauradas Comissões da Verdade – não apenas a de âmbito nacional, como também em vários estados e mesmo em municípios, como é o caso de São Paulo.

A tortura, os assassinatos e desaparecimentos, a Operação Condor, que uniu as ditaduras do Cone Sul nas atividades de repressão, voltaram ao noticiário, às análises e à descoberta de novos documentos e articulações. Mesmo quando a ação da justiça tarde (e falhe), vimos jovens “esculachando” torturadores e outros agentes da repressão.

Houve também a publicação de estudos e análises de aspectos específicos da resistência à ditadura. No final do ano foi lançado o “Livros Contra a Ditadura. Editoras e Oposição no Brasil – 1974-1984”, escritor por Flamarion Maués e publicado pela Publisher.

Pelo tema, merece esta coluna de final de ano. Flamarion Maués é doutor e mestre em História pela USP e foi coordenador da Editora da Fundação Perseu Abramo por onze anos. Une, portanto, a formação acadêmica com a mão na massa da condução de uma editora eminentemente política (a Perseu Abramo é a Fundação de estudos do PT).

Cada vez mais se conhece hoje os múltiplos aspectos da luta contra a ditadura. As organizações que se empenharam na resistência armada, os movimentos de massa que foram surgindo e se estruturando em bairros e favelas, o movimento sindical e a resistência civil encarnada na frente política que foi o MDB/PMDB.

Maués estuda outra faceta dessa resistência, expressada por algumas dezenas de editoras, em sua maioria micro ou pequenas empresas, que ele caracteriza como “editoras de oposição”. Além de editoras já conhecidas e de maior porte que estiveram desde o início contra a ditadura, como é particularmente o caso da Civilização Brasileira sob a direção do Ênio Silveira, além da Brasiliense, da Vozes e da Paz e Terra (essa fundada nos primeiros anos depois do golpe), a partir do início da “distensão” do governo Geisel surgiram algumas dezenas de editoras de caráter eminentemente político, que representavam iniciativas de oposição.

“O que caracterizava o conjunto das editoras de oposição era seu perfil e sua linha editorial claramente oposicionistas, sem que isso implicasse que essas empresas tivessem necessariamente vinculados a políticas explícitas. O fundamental é que elas deram expressão a iniciativas de oposição. E houve e casos, inclusive, de editoras de oposição surgidas nos anos 1970 e 1980 que foram criadas por partidos e grupos políticos, alguns deles na clandestinidade e na semiclandestinidade”. A essas Maués caracteriza como um subcampo de editoras “engajadas” dentro do conjunto maior das editoras de oposição.

Flamarion Maués divide o livro em duas partes bem distintas. A primeira é de caráter mais geral e procura mostrar a situação em seu conjunto. A segunda parte estuda três casos específicos, o das editoras Ciências Humanas, Kairós Livraria e Editora, e a Editora Brasil Debates. Todas do grupo das engajadas e fundadas por militantes respectivamente do PCB, dos trotskistas da Libelu (Organização Socialista Internacionalista – OSI, braço de uma das frações da Quarta Internacional) e do PCdoB. Esses três “estudos de caso” são reveladores também de táticas diferenciadas e de formas de vinculação também distintas dos três grupos políticos com seus “braços editoriais”.

Maués levanta a existência de cerca de quarenta editoras de oposição que surgiram ou aturam no período estudado. Destaca que, como usou o “parâmetro temporal [d]a década de 1970 e parte da de 1980, ou seja, o período já posterior ao AI-5, algumas editoras que tiveram importante atuação na edição de obras políticas nos anos 1960 não aparecem no meu levantamento, tais como as editoras Saga, Fulgor, Felman-Rego, José Álvaro Editor, Laemmert, GRD, entre outras”. Noto eu que algumas dessas e outras não citadas, como a Vitória, eram também vinculadas organicamente a partidos de esquerda, especialmente o PCB.

O livro também foca exclusivamente em quatro estados, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Se existiram ou não editoras com esse perfil em outros estados (desconfio que pelo menos em Pernambuco e Bahia isso pode ter acontecido) o seu estudo se torna difícil também pelo fato das bibliotecas brasileiras, e em especial a Biblioteca Nacional, não terem um trabalho de catalogação de editoras e estudo da bibliografia presente em seus acervos por temas. Aliás, quando existe essa separação, geralmente esta se dá na constituição dos famosos “Infernos”, as seções de livros de acesso restrito, principalmente por serem classificados como pornográficos, embora haja também a inclusão de livros políticos.

As desventuras dessas editoras com a censura é abordada no livro. Analisando a lista dos 434 livros proibidos durante a ditadura, levantada por Deonisio da Silva já em 1984, o autor constata que a maior parte das obras censuradas se enquadra no critério de “afronta à moral e aos bons costumes”, embora 16% dos livros proibidos o fossem por razões políticas. O autor cita também um dado do levantamento feito por funcionários do Arquivo Nacional de Brasília, apresentados no livro de Sandra Reimão (Repressão e Resistência, Edusp/Fapesp, 2011) no qual se mencionam 492 livros submetidos à análise do DCDP, o órgão oficial da censura do Ministério de Justiça, dos quais 313 foram vetados, na sua maioria obras “eróticas/pornográficas”. Mais uma vez se nota o problema da desorganização dos arquivos primários brasileiros.

Maués considera que “a censura aos livros políticos parece ter sido mais seletiva do que a feita aos livros considerados “imorais” ou “indecentes””. A impressão que eu tenho é que a censura aos livros era decorrente principalmente a partir de denúncias, e as “senhoras de Santana” estavam mais preocupadas com a indecência. A censura a músicas e ao teatro, ao contrário, foi muito mais atenta à questão política.

O livro de Maués, aqui brevemente recenseado, tem a virtude de mostrar um lado importante da resistência à ditadura no campo da cultura. Feita principalmente a partir de micro e pequenas empresas, com editores que entendiam sua tarefa como missão política e cultural. Embora tivessem consciência da importância de manter a lucratividade das empresas, esses editores entendiam sua missão de um modo muito mais amplo e especificamente político.

Um bom livro para encerrar o ano. Que o próximo nos traga mais e melhores notícias sobre a política cultural, são meus votos.

Censura e Liberdade de Publicação – A Turquia Censura e Prende. E no Brasil?

A liberdade de expressão é uma das mais importantes conquistas na luta pelos direitos humanos. Apesar de inscrita na Declaração de Direitos Humanos, a instituição sofre constantes desafios. Governos, religiões, grupos de pressão, tem sempre um monte de gente atuando no sentido de restringir essa nossa liberdade. Às vezes agem até de forma sutil. Um amigo meu dizia que para os religiosos, por exemplo, só cabem nessa categoria os livros da sua religião. Os que defendem outras crenças passam a ser considerados como “esotéricos”.

Mas essa sutileza é a exceção. Geralmente apelam mesmo é para a truculência, seja através de mecanismos oficiais de censura amparados por lei, seja através da ação de grupos de pressão que acabam por “banir” livros dos mais diferentes ambientes. John Tebbel, autor do excelente “Between Covers” (Oxford University Press, 1987), que é uma história da edição nos EUA, chega a afirmar que a luta contra a censura é um dos fenômenos mais constantes na vida editorial nos EUA. A American Library Association, que reúne os bibliotecários de lá, tem uma lista de 97 clássicos da literatura americana que sofrem constante pressão de censura por parte das entidades que controlam as bibliotecas.

A Associação Internacional dos Editores mantem uma comissão permanente para acompanhar os casos de dificuldades para a liberdade de publicação. Até alguns anos atrás a CBL mantinha um comitê semelhante, atenta às tentativas variadas de ameaças à liberdade de publicação. Não sei se tal comitê ainda está instituído. De qualquer forma, não se ouviu falar de manifestações das entidades de classe, por exemplo, na proibição da biografia de Roberto Carlos.

Mas a bola do momento – e não pela primeira vez – é a Turquia. Como sabemos, a Turquia é um país multiétnico. Mas, ao contrário de outros, teima em reprimir as manifestações de etnias e povos que não a própria etnia turca. O genocídio armênio no começo do Século XX foi a primeira das grandes demonstrações de violência do estado turco contra as minorias nacionais e lá, até hoje, é crime reconhecer que isso aconteceu. Mais recentemente, além dos armênios, os curdos também vem sofrendo intensa perseguição, e recém foi iniciado o julgamento do processo do Koma Civaken Kurdistan (KCK), ou Congresso pela Sociedade Democrática, a ala de ação civil e política do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, declarado ilegal na Turquia.

Nesse julgamento, resultado de uma operação iniciada em 2009, dezenas de prisões foram efetuadas. No dia 28 de outubro de 2011 foi preso, com mais 28 pessoas, o editor e autor Ragip Zarakolu, que mais tarde foi indicado como candidato a receber o Prêmio Nobel da Paz. Juntamente com Zarakolu foram presos o editor Deniz Zarakou e o acadêmico Büşra Ersanli. Todos estão sujeitos a penas que vão até quinze anos de prisão.

A IPA enviou uma delegação de observadores a esse julgamento, encabeçada precisamente pelo chefe do Comitê de Liberdade de Publicação, Brjørn Smith-Simonsen.

No seu 29º. Congresso, reunido na África do Sul, a IPA aprovou uma resolução “rejeitando o abuso de definições amplas de termos tais como difamação, segurança do estado, segredo de estado, ou terrorismo, por abrirem amplo caminho para a censura, hostilização da mídia e influência antidemocrática”.

É bom lembrar que Orham Pamuk, o escritor turco ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, também sofreu hostilidades por criticar alguns aspectos da sociedade de seu país. O secretário geral do Conselho da Europa, Thorbjørn Jagland, declarou recentemente que havia mil casos em exame no Tribunal Europeu de Direitos Humanos relacionados com o direito de expressão na Turquia.

A legislação turca de controle à liberdade de expressão abrange uma quantidade de temas absolutamente estranhos. Não se pode falar mal de Kemal Ataturk, o fundador da moderna Turquia: dá cadeia. Não se pode falar dos direitos de minorias étnicas dento do território turco: dá cadeia. Não se pode reconhecer que houve o genocídio armênio: isso é ofender a “turquicidade” – seja lá o que isso signifique – e dá cadeia. Um relatório mais extenso sobre os problemas na Turquia pode ser lido aqui.

Os partidos políticos que defendem o reconhecimento dos direitos específicos dessas nacionalidades, particularmente armênios e curdos, são postos na ilegalidade e quem publica qualquer coisa sobre o assunto pode passar quinze anos ou mais na prisão. E mais, as gráficas que imprimem os livros são declaradas também responsáveis pelo conteúdo e sujeitas às mesmas penalidades.

A liberdade de expressão, como vemos, não é algo que diga respeito somente aos autores. Os editores, através dos quais as palavras daqueles chegam ao grande público, também estão sujeitos a punições, ao recolhimento de livros. E, como vimos, isso pode ser feito através da força bruta de regimes ditatoriais e também através do uso da “censura judiciária”, como é o caso da Turquia e, infelizmente, também do Brasil.

Triste é ver que algumas iniciativas de remediar pelo menos parte do problema aqui em nosso país, como é o caso da proposta de lei que modifica o código civil para ampliar a liberdade de elaboração de publicação de biografias deram em nada. Em vez de servir de polo de aglutinação das entidades de autores, editores e livreiros, serviu também de pretexto para ações diversionistas, como a criação de uma nova entidade de editores apenas para tentar medidas judiciais acerca do assunto, quando se sabe que o projeto de lei que resolve o problema está em etapa de tramitação terminativa nas Comissões da Câmara dos Deputados, esperando tão somente o parecer do Deputado Alessandro Molon para ser aprovada e seguir para o Senado.

Leis e legisladores – o que interessa ao livro

Semana passada a coluna tratou do projeto de Lei do Deputado Eliene Lima – PP-MT, que pretende resolver os problemas do meio ambiente com o passe de mágica de imprimir os livros didáticos com papel reciclado. E tentei mostrar como alguns projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional ou são inúteis ou estão destinados a “não pegar”.

Entretanto, a quantidade de projetos e iniciativas parlamentares em tramitação no Congresso Nacional vai além disso. Época houve em que profissionalmente eu acompanhava o que era apresentado nas duas casas do Congresso, procurando detectar eventuais problemas para a liberdade de expressão, e particularmente a liberdade de publicação. Isso quando trabalhava na Câmara Brasileira do livro, até o começo do ano 2003. De lá para cá, apenas ocasionalmente vou ao site da Câmara e do Senado para ver o que há de novo, mas não acompanho com regularidade o assunto. Isso é tarefa para as associações profissionais.

Na época, o que mais me impressionava era as recorrentes tentativas de modificação dos artigos 150 e 220 da Constituição Federal. O Art. 150 é o que trata da imunidade fiscal para o livro e para o papel usado em sua fabricação. O Art. 220 é o que trata da Liberdade de Expressão. Impressionante como volta e meia apareciam tentativas de restringir de alguma maneira os efeitos desses dois artigos.
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O adeus ao bom senso

“O bom senso é a coisa do mundo mais bem distribuída: todos pensamos tê-lo em tal medida que até os mais difíceis de contentar nas outras coisas não costumam desejar mais bom senso do que aquele que têm.”
René Descartes – Século XVIII

Até já concordei com o filósofo iluminista. Mas, nos últimos tempos, nestes tempos de “politicamente correto” e quejandos, passei a considerar o pobre René um otimista exagerado. A coisa mais bem distribuída no mundo é a estupidez.

No Natal passado, quando os bancos “enfeitavam” a Av. Paulista com papais noeis, florestas encantadas, bimbalhos vários, a multidão extravasava das calçadas de modo impressionante. Sou testemunha, não apenas por morar perto da avenida e passar por ali a diário, como por ter cedido à tentação e ter levado minha neta, no colo, para ver os coloridos bimbalhantes.

A CET – Companhia de Engenharia do Trânsito de São Paulo percebeu que a movimentação de gente saindo das calçadas para o meio da rua provocava sérios riscos de atropelamento. E, em algumas noites, interditou trechos da avenida para automóveis, deixando-a entregue aos pedestres. Simples questão de bom senso e de cumprimento do dever. A questão não é simplesmente fazer os carros passar, mas proteger os pedestres.

Pois não é que um cidadão, imbuído do título de Procurador, membro do famoso Ministério Público, ameaçou processar o presidente da CET por estar descumprindo um “termo de ajuste de conduta” que autorizava o fechamento da Paulista apenas “x” vezes por ano e que aquela medida descumpria isso?

Depois que esse indivíduo (por favor, leitor, acrescente o adjetivo que achar mais conveniente) conseguiu seus cinco minutos (quinze já é demais) de fama na TV e nos jornais, alguém de bom senso deve ter lhe dado uns cascudos e o assunto foi esquecido.

E ontem lemos nos jornais que o Senhor Doutor Procurador do Ministério Público Federal de Uberlândia decidiu notificar a Editora Objetiva, que publica o Dicionário Houaiss por “conter expressões pejorativas e preconceituosas” em uma das acepções da palavra cigano.

Dizem duas acepções do Houaiss:

“5 (1899) Uso: pejorativo.
que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador
6 Uso: pejorativo.
que ou aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina”

Ou seja, o indivíduo (por favor, leitor, continue usando o termo que melhor lhe parecer) demonstrou que não sabe o que é dicionário, o que é acepção.

Antes de notificar a editora, o indivíduo “enviou recomendações” para que o texto fosse modificado. Ou seja, do alto da sua (escolha aqui outro adjetivo) decidiu censurar uma obra de referência. Suposto guardião da lei, o elemento jogou de cambulhada no lixo várias das setenta e oito alíneas do Art. 5º. Da Constituição Federal, o que trata dos Direitos individuais.

O que leva à questão da reação das editoras.

A Objetiva, segundo a imprensa, alega que não recebeu a notificação. E diz que na nova edição do Houaiss (a edição mais compacta com a nova ortografia), essa acepção não existe. E, ademais, que a responsabilidade editorial pelo dicionário é do Instituto Antonio Houaiss.

Ora, estamos diante de um problema grave. Além do atentado ao senso comum e a demonstração de ignorância, pois não foi ao dicionário ver a acepção de acepção (“2 – Rubrica: lexicologia, linguística. Em lexicografia, cada um dos vários sentidos que palavras ou frases apresentam de acordo com cada contexto (ex.: ponto em pontuação, costura, geografia, geometria, jogos, rotina escolar etc.” – Dicionário Houaiss), o Dotô Procurador tenta praticar um ato de censura, atentando contra a liberdade de expressão. A Constituição Federal abriu um espaço desmedido para o arbítrio dos membros do Ministério Público aos lhes atribuir a tarefa de “II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”.

Na aparência, isso daria aos membros do MP o poder de dar ordens, mas os direitos individuais e a exigência do processo legal obrigam a que isso seja feito por medidas judiciais, e não por “recomendações” dos promotores.

O fato é que a Objetiva agiu como se fosse algo absolutamente “normal” o MPF “mandar” fazer isso ou aquilo. Não é normal nem legal. E, no caso, é um atentado, como já disse, à liberdade de expressão e um ato de censura.

Não se ouviu nenhuma palavra tampouco das associações de editores. Nem a CBL nem o SNEL se manifestaram a respeito. E Roberto Feith, o executivo da Objetiva, é Vice-Presidente do Sindicato.

Nos anos 90 e até 2002 havia, na Câmara Brasileira do Livro, uma Comissão de Defesa da Liberdade de Publicação. Havia sido instituída seguindo uma diretiva da IPA – International Publishers Association. A Comissão se reunia apenas quando situações como essa se apresentavam. Para, pelo menos, protestar veementemente contra os abusos que se tentavam praticar.

Parece que, atualmente, nenhuma das entidades acha o assunto relevante. Pelo menos até agora, boca chiusa.

Esse Senhor Procurador acha que a essência das coisas está no nome. A simples enunciação da palavra a transforma em coisa real. Portanto, capaz de produzir portentos, “ser” racista, progressista ou que adjetivo lhe seja aposto. Se isso verdade fosse, os dicionários estariam ferrados. São compêndios de acepções que, se tomadas como verdades em si, provocariam verdadeiras síncopes nas sinapses cerebrais de quem as lesse, como esses feitiços nos quais a escrita é o próprio objeto da feitiçaria.

Nessas horas, juro, me lembro do nosso querido Macunaíma e fico querendo dizer, “Ai, que preguiça!”

No mais, meus caros, para desopilar, leiam a coluna do Tutty Vasques no Caderno 2 do Estadão do dia 29 de fevereiro.

A definição do público alvo leitor: como dados também complicam

O ambiente editorial norte-americano vive imerso em uma enorme quantidade de dados sobre vendas, que definem quem compra, onde compra, quem indica, quais as bibliotecas e escolas que indicam livros, etc., como indiquei no post de ontem.
O New York Times Sunday Book Review, que recebo por e-mail nas sextas-feiras, trouxe hoje um interessante artigo de Robert Lypsite, intitulado Boys and Reading: Is There any Hope? que aborda dois problemas interessantes. O artigo é publicado nessa edição do NY Times Sunday Book Review porque na próxima semana se inicia o semestre letivo nos EUA.


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