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MARCELA NEUBLUM – JOVEM EDITORA, COM FUTURO

A editora Marcela Neublum, convidada pelo Publish News, fez sua primeira incursão à Feira de Frankfurt, com o compromisso de relatar suas impressões de neo-marinheira no maior evento editorial do mundo. Foram seis posts bem escritos e divertidos, nos quais ela conseguiu retratar bem tanto o gigantismo como a diversidade e os desafios de estar ali.

Em sua última coluna, publicada na segunda-feira 24, Marcela Neublum termina com algumas reflexões. Apesar da coluna estar no ar no site, transcrevo o que comentarei em seguida:

“E se, em 2017, você enviasse à Feira aquele seu editor que há anos faz os livros da sua editora acontecerem? E se, em 2017, você incluísse em sua agenda reuniões com editoras menores, não tão conhecidas pelo mercado? E se, em 2017, de cinco projetos com possibilidade de lucro, você aprovasse um pensando apenas em divulgar um ótimo novo escritor ou imaginando as consequências reais que aquele conteúdo poderá gerar no seu leitor?”

Marcela, essa foi uma observação bem pertinente.

Como ex-sócio de uma editora que sobreviveu dezoito anos até ser engolida no turbilhão, estive – juntamente com a Maria José Silveira e o Márcio Souza – várias vezes na Feira. Depois do falecimento da Marco Zero, ainda voltei muitas outras, como diretor da CBL, como curador do Conexões Itaú Cultural – Mapeamento Internacional da Literatura Brasileira e como editor da Machado de Assis Magazine – Literatura Brasileira em Tradução.

Sua última observação – “questionamento” – você diz que seria importante aprovar pelo menos um projeto “pensando apenas em divulgar um ótimo novo escritor, ou imaginando as consequências reais que aquele conteúdo poderá gerar no seu leitor”.

Pois bem, Marcela, quero dizer – e transmito também a experiência da Maria José e do Márcio -, que garimpar pelos corredores da Feira olhando com atenção os estandes menores pode render não apenas a “descoberta de novos autores”, como oportunidades de ótimos negócios.

As condições em que viajávamos para Frankfurt eram bem precárias. Geralmente ficávamos na casa de amigos, na maioria das vezes arranjados pelo Teo Mesquita, proprietário da única livraria que vendia livros brasileiros, portugueses e da África lusófona em Frankfurt. E nossa “verba” para aquisições era reduzidíssima.

O primeiro livro de Margareth Atwood traduzido.
O primeiro livro de Margareth Atwood traduzido.

Por isso mesmo, nada de entrar em leilões ou tentar comprar bestsellers. Íamos atrás precisamente do novo, do inusitado. Não apenas na Feira, é claro.

Nosso amigo Domingos Demasi apareceu um dia na editora com um paperback de “Lady Oracle”. Márcio Souza havia conhecido a Margaret Atwood em um festival literário em Toronto. Como resultado desse contato, Karin Schindler – sua agente, um ouro de pessoa – nos vendeu os direitos de “Madame Oráculo”, que é primeiro livro traduzido da autora que escreve em inglês e já tinha muito prestígio no Canadá, nos EUA e no Reino Unido. Desde então, até a morte da Marco Zero, Margaret Atwood ficou conosco. Ainda que Karin Schindler recebesse ofertas de outras editoras, ela preferia manter seus livros na Marco Zero, onde Maria José traduziu alguns de seus romances. Depois, foi para a Rocco.

dicionario-kazar054-2015_01_15-01_29_24-utc a_cor_1-2015_01_15-01_29_24-utc Anne Rice ainda era uma recém-lançada romancista de temas góticos quando publicamos “O Vampiro Lestat” – que também depois foi parar na Rocco.

“A Cor Púrpura”, lançado em 1982, em 1984 ainda não tinha o reconhecimento que teve depois. Maria José o localizou e comprou por uma bagatela que estava dentro do nosso orçamento. Nem sabíamos que o livro havia sido comprado pelo Spielberg para se transformar no famoso filme.

Outro caso emblemático foi o do “Dicionário Kazar”, de Milorad Pavic. Escritor da então Iugoslávia, não havia sido traduzido para nenhum idioma. Passando pelo estande, a Maria José conversou com o pessoal, achou a ideia do romance fantástica – inclusive o fato de ter duas versões, a “masculina” e a “feminina” – e fez uma oferta dentro das nossas possibilidades. O agente do Pavic vendeu os direitos para o idioma português dentro do nosso orçamento. Foi uma dureza para traduzir. Quando o livro foi lançado pela Knopf (que adquiriu os direitos mundiais – menos para o português), a editora portuguesa teve que comprar nossa tradução. E foi um dos romances de maior sucesso da Marco Zero.

Esses foram casos de sucesso. Poderia citar muitos outros casos em que as aquisições foram prestigiosas, mas não venderam tanto. Aliás, essa história das razões pelas quais bons livros não vendem tanto quanto o merecido foi o que levou a me empenhar no conhecimento do mercado editorial.

Essa situação que você reflete, da busca pelos livros em função do desempenho de vendas, etc., há anos vêm distorcendo o papel das editoras e do mercado editorial. Os departamentos de marketing cada vez mais assumem um papel preponderante na definição das linhas editorais, e a missão das editoras, de promover esse diálogo de vozes do mundo inteiro com os leitores, fica relegada a um segundo plano, obscurecida.

André Schiffrin, que foi editor da Pantheon (fundada por seu pai), mais tarde comprada – e vendida – pela Random House, mostra a regressão, diríamos assim, do modelo em que as editoras procuravam manter um equilíbrio com o conjunto dos lançamentos, procurando mesclar livros com maior possibilidade de sucesso com títulos considerados culturalmente importantes, de modo que havia uma espécie de “subsídio interno” para novos autores, etc. Esse modelo foi substituído por uma mentalidade corporativista na qual cada livro deveria sempre alcançar objetivos de vendas cada vez maiores. Isso levou, é claro, à diminuição da busca por novos autores, autores arriscados, novas propostas. Hoje, apenas editoras menores realmente ousam. O livro de Schiffrin ao qual me refiro, “The Business of Book”, foi traduzido. Vale a pena ler. É ilustrativo.

É claro que existem exceções. No Brasil, essa mentalidade ainda não está totalmente consolidada, e vemos até mesmo grandes editores publicando alguns – poucos – autores nacionais, mas raramente com os investimentos necessários para de marketing, promoção e comercialização para que alcancem o merecido sucesso. Mas a verdade é que os investimentos vão muito mais para eventuais autores, jovens ou não, publicados pelas editoras estrangeiras, que avaliam as condições de fazer ações de marketing significativas, e recuperam parte dos advances precisamente na venda dos direitos internacionais. E as nacionais aproveitam dessa repercussão global.

O resto são os blogueiros, vlogueiros e o escambau.

É muito importante que jovens editores percebam essa situação e os perigos decorrentes. Por isso, gostei muito do seu post.

Parabéns e boa sorte em sua carreira.

MARCO ZERO – APROPRIAÇÕES SEM RECONHECIMENTO

Perder o controle da Marco Zero, editora que fundamos – Maria José Silveira, Márcio Souza e eu – é um trauma de difícil recuperação. Fomos obrigados a sair da sociedade pelos sócios majoritários que conseguimos no meio do caminho e que, depois de sairmos, enterraram a editora. Hoje, o selo só existe para publicar alguns títulos de aluguel e alguns dos livros de cozinha que havíamos lançado.

É da vida. Paciência.

Mas quando alguém passa informações erradas sobre títulos que publicamos, aí eu fervo.

No PublishNews de hoje havia uma nota sobre o lançamento de um novo romance do Peter Schneider, “Berlim, agora – a cidade depois do muro”, dizendo que seu primeiro romance, “Os Saltadores do Muro”, nunca havia sido publicado em português.

Bem, mandei um e-mail para o PN, alertando para o equívoco, e o editor retirou essa última observação

Mas, no site da Rocco, a editora, é o que está:

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Dupla desinformação. O título original do romance, em alemão é Der Mauerspringer. Se é para colocar informações sobre o título original, é sempre bom ir além da edição em inglês da Wikipedia… Dizer que o original do romance é “The Wall Jumper” não é legal.

Mas o pior é que “Os Saltadores do Muro” já foi publicado aqui no Brasil, pela Marco Zero, ainda nos anos 1980. Só para informação:

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Até na Estante Virtual existem exemplares à venda:

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Para os que desejarem saber mais um pouco sobre a editora, já publiquei dois posts aqui no O Xis do Problema: Marco Zero – Ladeira da Memória  e Marco Zero – Ladeira da Memória II.

Um abril para não esquecer

Essa coisa dos anos “redondos” às vezes é muito chata. Mas há momentos em que se torna importantíssimo lembrar de coisas, principalmente por aqui na Pindorama, com essa história de que se esquece tudo.

Outro dia, na academia, meu instrutor, que é um jovem aí dos trinta e poucos anos, acabou puxando pelo assunto da Ditadura. Acontece que eu tenho a coluna detonada, já operei uma hérnia de disco e agora apareceu outra. Uma nutricionista iridóloga, Célia Mara Melo Garcia, depois de me examinar, perguntou se, aí pelos meus vinte anos, eu havia sofrido uma queda, um “trauma forte”. Respondi que sim, mas que não havia sido queda. Foi tortura, por eu ter sido preso político precisamente entre os 21 e os 23 anos. Isso aparece na minha íris, segundo ela, como um achatamento.

Bom, contei essa história para o instrutor, e comentei que achava que pelo menos uma parte dos problemas da minha postura e de má articulação corporal vinham dessa época. Para que ele entendesse o que, talvez, fosse parte do meu problema e das dores que eventualmente aparecem. Bom, a aula inteira seguiu nessa toada, ele querendo saber detalhes não sobre minha vida, mas sobre a Ditadura. Claro que falei o que pude naquele tempo, e tenho certeza de que o assunto vai voltar.

É um exemplo da importância da Comissão da Verdade e, a propósito, do tanto que o assunto apareceu na imprensa nesses dias. A maior parte da população do país não viveu aqueles anos, ou era criança na época. Ótimo para eles não terem passado pelo que minha geração sofreu.

Foi bom não terem passado pelos sofrimentos, pelo medo, pela alienação brutal do “milagre econômico” e as ilusões do Brasil Grande. Mas pena que também não tenham vivido a efervescência cultural, principalmente de 1968. Isso também merece ser lembrado, até para se entender o nojo que provocaram as atitudes de algumas pessoas que foram fantásticas naquela época, e ano passado se uniram ao obscurantismo lavignesco. Mas isso, deixa pra lá.
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MARCO ZERO – LADEIRA DA MEMÓRIA II

O fato de Lutas Camponesas no Brasil ter sido nosso primeiro livro editado é indicador de outro componente de nosso projeto. A Marco Zero foi fundada como uma editora da esquerda. Não como editora “de partido” (como na tipificação do livro do Flamarion Maués, que já comentei no final do ano passado), mas sim como uma que pretendia publicar livros que fossem também uma intervenção na vida política brasileira naquele momento.

Não vou aqui fazer autobiografia política, até porque acho isso cabotino. Mas éramos todos militantes. O Márcio já mais afastado, mas Maria José e eu tínhamos uma longa história com a Ala Vermelha, que me levou à prisão (e também o Márcio) e os dois ao exílio.

Isso se refletia não apenas na linha editorial. Também aparece na contratação de dois de nossos primeiros colaboradores. Daniel Aarão Reis e Vladimir Palmeira haviam recém-chegados do exílio e acabaram trabalhando conosco. Imaginem. Nenhum dos dois entendia coisa nenhuma de administração ou comércio, mas eram oficialmente encarregados disso na jovem Marco Zero. Meio período, que os dois estavam tratando de se encaminhar para o que sabiam mesmo fazer. Daniel para retomar uma carreira acadêmica e o Vladimir louco para fazer política, sempre. E era muito divertido e produtivo trabalharmos juntos, discutindo sobre os lançamentos, o que fazer e como lançar os livros.
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Uma ideia do Vladimir foi fazer o lançamento de O Papalagui na praia, com farta distribuição de caipirinhas. Esse livro relata as supostas memórias de um chefe de uma tribo da polinésia que visita a Europa e faz um relato antropológico do que viu ao relatar espantado para seu povo os estranhíssimos hábitos dos brancos, os papalagui. O livro foi um long-seller da editora, mas no lançamento, em plena praia de Ipanema, não vendeu nada. O povo liquidou em pouquíssimo tempo com a cachaça que levamos.
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MARCO ZERO – LADEIRA DA MEMÓRIA

No Caderno 2 do Estadão de sábado, (25/1/14), Sérgio Augusto publicou uma de suas belas crônicas sobre o cinema, citando amplamente um livro editado pela Marco Zero – Suspeitos, de David Thomson – trad. José Eduardo Mendonça – 1992. Não é a primeira vez que Sérgio Augusto escreve sobre o livro, que certamente é um dos que ele curte bastante.
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Diz o cronista que Suspeitos é “um misto de dicionário biográfico e ensaio ficcional (labirinticamente borgeano) sobre a realidade paralela do cinema”, e que o autor “inventou a metahistória do cinema”.

O texto do Sérgio Augusto me jogou na ladeira da memória, para a época em que vivemos um belo sonho de editora. A Marco Zero começou, lá pelo final dos anos 1970 com a Maria José Silveira, com quem sou casado. Acabamos reunindo alguns caraminguás, ajuda da família, muito especialmente do Otávio Silveira, irmão da Zezé, que generosamente fez uma contribuição fundamental para que o projeto pudesse existir.
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“A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico”

Oswald de Andrade sempre foi um dos meus heróis na literatura brasileira. Pela produção literária, pela militância na literatura e na política, por seu desassombro e atrevimento. Maria José Silveira, Márcio Souza e eu usamos essa frase como lema da Marco Zero, a editora que fundamos e mantivemos por dezoito anos.
Quando escrevi “O Brasil pode ser um país de leitores?”, mencionei na introdução: “A massa dificilmente comerá do biscoito fino se a ele não tiver acesso e ficar reduzida ao consumo da broa de milho […] O esforço aqui apresentado é o da discussão de como fazer o “biscoito fino” chegar à massa.” (p. 16).
Trata-se, portanto, de preocupação constante e recorrente, que abrange a discussão de impasses e dificuldades do mercado editorial e possíveis soluções. Afinal, o que me levou a estudar essas questões foi também certo grau de frustação pela massa não consumir em quantidade o “biscoito fino” que produzíamos na Marco Zero.
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Nossa elusiva matéria prima

Uma das coisas que aprendi nessa faina do mercado editorial é que o mundo dos livros é um reflexo do mundo real. Cabe tudo. Das coisas mais sublimes às calhordices mais inomináveis. Como papel (e agora, bits) aguenta tudo, é possível encontrar toda e qualquer coisa impressa e sendo vendida (ou empurrada, ou doada por conta de outros interesses) no mundo do livro.
Essa variedade me fascina.
Do lado positivo, há o aprendizado de uma lição de humildade: o que eu gosto, o que me satisfaz intelectual e esteticamente, não é nem (necessariamente) o melhor nem é o que o OUTRO precisa para satisfazer o mesmo tipo de necessidades. E isso não é uma rendição a um relativismo absoluto: o que acho uma porcaria tenho minhas razões para considerar assim e não pretendo mudar de opinião. Mas, quando analiso políticas públicas de acesso ao livro, devo reconhecer o direito do outro gostar (ou ter necessidade) do que eu não gosto ou até mesmo desprezo.
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