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Produção e vendas de livros. Perguntas – mais que reflexões – sobre a pesquisa

Vale a pena lembrar que a pesquisa de Produção e Vendas do Mercado Editorial nasceu de uma reunião de técnicos em informações e produções de dados estatísticos, organizada pelo CERLALC e feita na Bienal do Livro de S. Paulo de 1990. A iniciativa de propor a reunião no contexto da Bienal foi do Alfredo Weiszflog, ex-presidente da CBL e diretor da entidade na época. Para a reunião vieram colegas de vários países da América Latina, além do secretário geral do CERLALC na época (o nome me escapa) e um representante do Census Bureau dos EUA.

               Antes mesmo da reunião, Alfredo já havia me convocado para participar da equipe de dois (ele e eu), que deveria pensar modos de recolher informações do mercado editorial brasileira. Já havia consenso majoritário na diretoria da CBL (não unanimidade) de que informações confiáveis sobre o mercado eram componente essencial para duas áreas, além de acabar com o chutômetro até então imperante: 1) para detectar tendências; 2) para ter força em negociações com governo, outras entidades e o público em geral, mostrando o tamanho e a importância do mercado editorial.

               Foi uma trajetória longa que se iniciou ali, e bem que mal completa este ano sua trigésima edição. A CBL montou uma “Comissão de Pesquisa”, entre representantes de seus associados, que supervisionava e discutia perspectivas e resultados. Até quando permaneci na CBL, em 2002, a participação e interesse dos membros da Comissão de Pesquisa era intensa, e desde o início, dentre outros princípios, foi decidido que os dados seriam divulgados mesmo que apresentassem números desfavoráveis ao mercado. Era uma época também quando listas de bestsellers, divulgação do número de tiragens pelos editores, quantidade de pessoas presentes nas feiras e bienais costumava ser fantasmagórica. Tudo aumentava…

Desde o início da pesquisa havia a preparação de um relatório de divulgação para a imprensa e o público em geral, mas havia também um relatório bem mais detalhado dos dados, que era enviado aos sócios. Como não sou sócio nem da CBL nem do SNEL, há anos que não leio o relatório completo, que suponho continue sendo produzido.

               Assim, com base no divulgado e na apresentação feita hoje, meus pitacos (dúvidas e aplausos).

A coordenadora informou que a amostragem incluiu “61%” do mercado. Mais adiante qualificou o assunto explicitou que os livros digitais não entraram, e que estão sendo objeto de outra pesquisa.

               Mas eu me pergunto: como se chegou a essa porcentagem da amostra?

Explico. As empresas participantes são divididas em categorias pelo faturamento: grandes, médias, pequenas, além do setor ou subsetor. Para projetar a produção total e o faturamento, uma amostra que inclua, por exemplo, 90% das didáticas (bem possível), mais um tanto das grandes de livros em geral, é mais que suficiente. As editoras pequenas pouco contribuem para o cálculo do volume de produção, e isso pode ser projetado. Entretanto, as editoras pequenas e médias têm um papel importante para a detectar a bibliodiversidade da produção editorial. Autores novos (nacionais e estrangeiros), ou pouco conhecidos (mas de reconhecida qualidade) e eventualmente de prestígio (mas poucas vendas) são publicados principalmente pelas pequenas e médias, que arriscam mais, seja por princípio, seja por necessidade (os adiantamentos são menores, é claro).

Assim, dizer que a amostra abarca 61% do mercado suscita a pergunta: de produção de exemplares ou de títulos? Qual a diversidade e abrangência dos temas editados no Brasil? Pode-se desenhar uma tendência a partir da série histórica? A estrutura da amostra é crucial para se entender isso. Anteriormente os temas eram listados a partir de uma tabela do ISBN, simplificada. Provavelmente hoje seja mais fácil ampliar isso com outros códigos de metadados.

Pode ser que essa informação esteja no relatório completo. Quem só acompanha a divulgação está manco.

Preço médio. Logo no começo, a Mariana Bueno reconheceu que são muitos os fatores que condicionam o que se poderia chamar de preço médio: tamanho, acabamento, número de páginas. Certíssimo.

Mas, logo adiante, revelou: o cálculo é feito simplesmente pela divisão do faturamento – líquido, é claro – pela quantidade de exemplares vendidos. Assim, um livro para crianças que custe R$ 20,00 é somado com os livros CTP que podem custar mais de R$ 100,00. Qual a média disso? Sem mencionar como se descobre o desconto médio…

O Marcos da Veiga Pereira mencionou um fato real, e que a maioria dos livros tem o preço (de capa) fixado hoje por razões mercadológicas em categorias (geralmente com os famosos 90 centavos finais, porque não sei quem décadas atrás descobriu que era mais fácil vender qualquer coisa sem o número redondo…). E essa definição de preços está, em grande medida, influenciada por formatos. As editoras não informariam, qual o preço de capa de cada livro, mas se quisermos mesmo usar esse conceito de preço médio, dessa maneira é que não se chega a nada significativo. Já discuti esse assunto em 2011, e remeto para o post. O que não dá é somar o peso de laranja, mamão, morango e melancia e dividir pelo total das frutas para achar um ficcional e inútil “peso médio” da frutaria. Há que imaginar outras maneiras.

Além desse ponto dos formatos, o faturamento é influenciado também pelos diferentes níveis de desconto. As grandes redes têm mais poder de barganha e, portanto, descontos maiores. Há uma espécie de subproblema embutido nisso: para ter sua remuneração mínima, a editora deve calcular o preço considerando principalmente o maior nível de descontos para que o recebido por cada exemplar possa efetivamente recuperar o investimento, os direitos autorais e a margem da editora (inclusive a rotação do estoque, que é um problema à parte). A consequência: isso influi no preço de capa (que é nominal, mas é a base do pagamento de D.A.s) já que, para maior nível, de descontos maior tem que ser esse preço nominal. Os ingressos das vendas estão sempre em descompasso com as despesas correntes e os investimentos da editora.

 O resultado é que a bicicleta tem sempre que correr e planejar (ou torcer) para os best-sellers ou os livros da moda (felizes anos do pornô-chic dos “50 tons de cinza” e similares e dos livros de desenhar…) compensarem tudo isso.

Mariana Bueno tem toda razão ao afirmar que a metodologia da pesquisa não mudou, todos esses anos. Não mudou no essencial, o que é fundamental para as comparações (e houve uma quebra da série histórica quando se fez uma reavaliação do universo das editoras pesquisadas). Não mudou no essencial, mas foi sendo aperfeiçoada no decorrer doa anos, e acredito (sem ter acesso aos relatórios completos) que possa ser ainda mais.

Um último ponto no que diz respeito aos dados de produção e vendas. Acredito que seja urgente unificar o recolhimento dos dados das vendas de conteúdos digitais, incluindo os audiobooks (ainda poucos por aqui, mas melhor incluí-los enquanto são poucos), para que se tenha uma dimensão mais realista do mercado editorial brasileiro, sua dimensão e seus problemas.

Um aperfeiçoamento positivo, sem dúvida, foi a especificação da porcentagem de livros vendidos nas chamadas livrarias “exclusivamente digitais”. A Nielsen tem os dados de venda direto de algumas dessas livrarias (os magazines digitais como Submarino, Americanas e congêneres), mas depende das informações das editoras para ter os dados da Amazon, que é opaca e só divulga os dados de venda diretamente aos fornecedores. Só que a Amazon também vende de outras pequenas editoras, autores independentes e pelo KDP. Mas esse é um problema geral da varejista, que vem sendo enfrentado de várias maneiras no exterior.

Marcos da Veiga Pereira fez uma observação muito pertinente: os livros digitais não criam leitores, crescem na medida em que já exista uma grande base de leitores. Mas colocaria um pouco de sal nessa observação. Considerando os problemas de logística que enfrentamos (um livro pode levar um mês pelo correio para chegar no interior do Amazonas, por exemplo), explorar a potencialidade de entrega do livro digital é importante. O mesmo vale para os milhões de brasileiros que vivem no exterior. Possivelmente o índice de leitores entre eles seja ainda menor que o da população geral, mas nunca é desprezível.

A pesquisa detectou um ainda pequeno, mas significativo, sinal de recuperação das vendas das editoras em 2018. Foi o ano em que estourou de vez as crises da Saraiva e da Cultura, de modo que essa recuperação de fato revela uma resiliência do mercado editorial em diversificar os canais de venda. Mariana Bueno atribui a recuperação do valor total de faturamento a uma recuperação dos preços “médio”. Recuperação, de fato, houve. Duas interrogações ficam para este ano: foi o tal “preço médio” ou a diversificação? E será que essa recuperação deu fôlego suficiente para enfrentar a pandemia? Pelas informações jornalísticas mais recentes, inclusive o número de demissões, isso provoca dúvidas.

Só que esses problemas fogem da questão dos dados e do recolhimento de informações. Mas sempre tenho em mente um dos lemas que ouvi de um distribuidor de porta-a-porta: vamos buscar e entregar o livro donde quer que o cliente esteja…

CRISES

Acompanho há tempos a crise que foi crescendo e amadurecendo nas relações entre as editoras e as redes da Cultura e da Saraiva. Os atrasos, tergiversações – diria eu, pura e simplesmente má fé em vários momentos – levaram várias editoras de pequeno e médio porte à beira da falência, e também as grandes casas a dificuldades em seu fluxo de caixa. Finalmente, há alguns dias, Marcos Pereira, afirmando sua condição de liderança, declarou que as editoras – através do SNEL – não aceitariam a “proposta” sem-vergonha da Saraiva e esperavam o pedido de recuperação judicial da sociedade anônima. “Queremos saber da situação real da empresa e de como efetivamente pretende (ou pode, diria eu) pagar as dívidas”.

Parabéns, Marcos Pereira.

Mas é o caso de perguntar: essa crise era previsível e inesperada?

Era previsível, por vir se arrastando há muito tempo, e muito menos inesperada.

Uma análise fria e desapaixonada sobre o mercado editorial brasileiro mostra, facilmente, que as editoras, em especial os grandes grupos editoriais, foram criando e cultivando as raízes dessa crise, e que deveriam há tempo ter provocado medidas mais assertivas no que diz respeito à relação editoras/distribuidoras/livrarias.

Já em 1995, logo depois do Plano Real, a então rede Siciliano, na pessoa do seu então controlador e futuro presidente da CBL, lançou um verdadeiro ultimato às editoras: precisava de mais descontos e mais prazo para o pagamento, porque a estabilidade da moeda prejudicava a rentabilidade da empresa. Na verdade, essa “rentabilidade” se devia à especulação inflacionária que destruía a economia do país (hoje temos outras ameaças, até muito mais sérias, mas não é o caso aqui). As redes compravam com 50% de desconto e prazo de 90 dias. A duplicata emitida pela venda, com preço determinado, valia uma fração dos custos e da rentabilidade das editoras quando eram pagas.

A chantagem funcionou. Apesar da resistência temporária de algumas editoras grandes, o dito mercado cedeu e aumentou os descontos para as grandes redes. E daí em diante as diferenças de descontos e prazos entre as redes e as livrarias independentes só fez crescer, com as independentes comendo o pão que o diabo amassou (ou as famílias Hertz e Siciliano/Saraiva).

 

Para a rede Siciliano, um final melancólico. A má gestão e as brigas familiares (que chegaram até a justiça) liquidaram a rede, que finalmente foi vendida na bacia das almas para a Saraiva. Que agora enfrenta o mesmo tipo de problemas.

O sistema de distribuição – que nunca foi grande coisa, mas era bem mais estruturado que hoje – também foi para o buraco.

Acho que foi o marco zero da crise que supurou agora.

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O problema das chamadas “obras órfãs” sempre esteve presente, embora raramente notado e apenas ocasionalmente provocando discussões. Já em 2013, em um post neste blog, escrevi que “a chamada obra órfã é aquela sobre a qual se supõe que ainda existe proteção quanto aos direitos autorais, mas que a) não há certeza sobre se o autor está vivo ou tenha falecido, e b) no caso de falecimento, se os setenta anos já transcorreram, e quem seria o herdeiro ou herdeiros dos direitos morais e patrimoniais da obra”.

Apesar da Lei de Direitos Autorais vigente no Brasil proibir inclusive o armazenamento em bancos de dados, guardar obras protegidas em computadores, microfilmar, etc., o problema não se fazia premente. Afinal, o que existia de obras órfãs geralmente estava nas bibliotecas e muito raramente provocava interesse para além dos círculos de pesquisadores interessados em tal ou qual tema (ou autor). Quando interessava algum assunto específico por um livro armazenado em uma biblioteca pública, geralmente era para fazer uma referência ou citação breve,

Esse mar de tranquilidade se agitou quando o Google lançou um projeto que pretendia digitalizar simplesmente todos os livros do mundo e disponibilizá-los em formato digital. O projeto acabou fracassando em seu escopo geral, inclusive por intervenção da Author’s Guild, o sindicato dos escritores dos EUA, que processou a empresa. O Google, e as bibliotecas pelo mundo afora, iniciaram projetos de digitalização de seus acervos, dando preferência, certamente, à acessibilidade das obras raras e as já há muito em domínio público.

A Biblioteca Nacional já digitalizou uma parcela considerável de suas obras raras  assim como muitas outras bibliotecas nacionais mundo afora. Um dos projetos mais ambiciosos (por abranger imensas coleções) é o da National Digital Library, dos EUA,  iniciativa capitaneada pelo historiador Robert Darnton, que explicou sua origem e escopo em um interessante artigo publicado na The New York Review of Books (aqui, para os interessados.

Entretanto, muitos problemas relacionados com direitos autorais continuavam e continuam pendentes. Como identificar os possíveis autores, herdeiros ou detentores dos direitos autorais de um período no qual, teoricamente, o autor poderia ainda estar vivo ou dentro do período de 70 anos depois de sua morte (que é o previsto na legislação brasileira, embora varie em vários países), para uma possível reedição? Isso, além da limitação de arquivamento em meios digitais ou mesmo analógicos, como os microfilmes?

O primeiro país a enfrentar a questão em profundidade, inclusive com medidas legislativas e práticas foi a França. Em 2012 foi aprovada legislação bastante complexa para a guarda, preservação, identificação e possíveis reedições de livros originalmente publicados na França. O projeto se tornou viável pelo fato da Biblithèque Nationale francesa já possuir um catálogo digitalizado de todas as obras ali publicadas no Século XX e XXI. O assunto foi esmiuçado em outro post que publiquei aqui.  Basicamente, esse catálogo permite que autores, editores ou herdeiros possam eventualmente identificar suas obras protegidas. As que não forem identificadas como protegidas se tornam disponíveis para publicação digital (exclusivamente) em um sistema chamado ReLire  e o sistema é gerenciado pelo sistema SOFIA, acrônimo para Societé Française des Intérets des Auteurs, que também é gestora da distribuição do recolhido em direitos reprográficos, e pelo empréstimo de livros pelas bibliotecas públicas, o chamado Droit de Prêt, ou direito de empréstimo.

O processo de elaboração, aprovação e execução dos dois sistemas foi acompanhado por autores e editores, através das respectivas associações e está em vigor.

Não ouvi mais falar de outras iniciativas do mesmo gênero (ainda que possam haver) até algumas semanas atrás, quando o CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e no Caribe, que tem sua sede em Bogotá, anunciou que o Congresso colombiano havia aprovado lei, já sancionada, que encaminhava as duas questões: direitos autorais das “obras órfãs” e os mecanismos de autorização de reedições.

A legislação colombiana está bem centrada na permissão para que as bibliotecas públicas fortaleçam seu papel na conservação, controle e divulgação do patrimônio bibliográfico (e documental) do país, em seus diferentes suportes. Veja aqui o texto integral da lei.

A legislação abrange também o conjunto de direitos conexos (reprodução de sons e imagens) e me pareceu bem mais completa que a legislação francesa. O que falta na legislação colombiana – e que já está suprido na normativa francesa – são os instrumentos práticos de gerenciamento e controle das autorizações para que essas questões se tornem realidade.

De qualquer modo, a iniciativa colombiana (a legislação contou com o apoio técnico do CERLALC) coloca o país no pelotão de vanguarda na atualização da legislação de direitos autorais não apenas na América Latina.

Oxalá essa iniciativa e esse comportamento do Congresso e do governo colombiano fossem estudados, adaptados e aplicados aqui. É uma legislação que tem impacto no acesso do patrimônio bibliográfico pelo conjunto da população de um país, e não apenas uma manifestação de desejos e proclamação de boa vontade.

ESTATÍSTICA… QUE PROBLEMÃO

Já se disse que a estatística é uma forma pseudocientífica de contar mentiras. Outros a idolatram, como se os números refletissem “fatos” de forma mais precisa que qualquer outra coisa. E as evidências abundam sobre as manipulações estatísticas que realmente existem, ainda que a ciência, ou “arte” continue florescente e muito utilizada. O que seria da física quântica e das tecnologias “fuzzy” se não fossem as probabilidades, filhas diletas da estatística?

O terreno mais pantanoso, sem dúvida mora na área das humanidades. Usam-se estatísticas para “provar” qualquer coisa, tratando de modo ligeiro conceitos e definições bem estabelecidas. É o caso, por exemplo da utilização do conceito de censo (análise do conjunto de uma população) com o de survey, que procura retratar uma amostra, – constituída a partir de várias técnicas -, que possa “representar” o conjunto da população, ou pelo menos uma parcela bem definida dessa população. O censo estatístico por excelência é o demográfico, no qual os recenseadores efetivamente contam a população, casa por casa, cobrindo o país inteiro, recolhendo um conjunto de observações que, trabalhadas estatisticamente, permitem estabelecer conjuntos de dados específicos para cada segmento delimitado.

Quando a pesquisa estatística recolhe dados bem definidos em um universo igualmente bem definido, revela-se um valioso instrumento de análise para aquilo que foi perguntado.

A GfK, uma empresa internacional de pesquisa de mercado divulgou em 2017 uma pesquisa que recolheu dados, no verão de 2016 (verão do hemisfério norte), de (1) consumidores, com (2) idade acima de 15 anos que preencheram dados online sobre (3) seus hábitos de leitura, em 17 países, reduzidos a uma mostra estruturada que refletia a (4) composição demográfica dessa população online. Os interessados podem acessar a pesquisa e fazer o download aqui.

A tabela apresentada pela GfK foi a seguinte:

Ou seja, a empresa definiu cuidadosamente o momento da pesquisa, a população objeto da pesquisa (referência aos censos demográficos nacionais), estruturando sua amostra segundo cada um deles e dando o número “n” de entrevistados, e o tipo de pesquisados. Ou seja, uma amostra da população acima de 15 anos de idade, online, que eram consumidores, e responderam a um conjunto predeterminado de perguntas. Restringiu, portanto, de modo inequívoco, o que estava pesquisando, quando e como. O resultado apresentado como “Frequency of reading books – Global GfK survey” pretendia retratar os hábitos de leitura (definidos bem precisamente) de uma população específica.

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LITERATURA E DITADURAS – COMBINAM?

Nos dias 4 e 5 de junho passados aconteceu, na UnB, a III Jornada de Crítica Literária, cujo tema era precisamente esse – Literatura e Ditaduras -, com o objetivo de provocar o debate sobre as relações estre estética e política, pondo em evidência situações históricas do passado para reflexão da cultura contemporânea, lembrando que o processo democrático tem sido alvo de constantes golpes ao longo da história política do continente latino-americano.

Coordenado pelos professores Paulo C. Thomas (UnB), Regina Delcastagne (UnB) e Rejane Pivetta (UPF), a jornada mostrou em onze mesas com escritores e professores, (duas das quais de estudantes da UnB que apresentaram trabalhos em desenvolvimento), como se desenvolve essa difícil relação. Relação que, em diversos momentos, tem sido muito marcada pela negação, disfarçada na afirmação de que as duas coisas não podem (ou não devem) se misturar.

Como disse a escritora Maria José Silveira em sua intervenção, “O ‘não’ é um dos problemas de quem se aventura a escrever sobre política. No momento da ditadura pura-e-nua, era o ‘não’ da censura. Depois e sempre, é a crítica pseudo-não-ideológica que propugna uma literatura sem política, como se isso pudesse existir, ou a adesão até inconsciente à política do esquecimento: ‘Por que falar dessa época?’ ou ‘Todo mundo é contra a ditadura, que bom que ela passou, agora vamos falar de outro assunto?’”

No debate, um dos professores presentes reconheceu que haviam até discutido o romance “O Fantasma de Luís Buñuel”, da mesma Maria José, que tem Brasília, a própria UnB (e a ditadura civil-militar de 1964-1988) como pano de fundo, mas que o desenvolvimento do assunto não aconteceu. De certa forma, foi também um exemplo do “Para que falar dessa época? Todo mundo é contra a ditadura, que bom que ela passou, agora vamos falar de outro assunto?”

Até que o golpe em decurso (sabemos como um golpe começa, mas não como se desenvolve ou termina, assim vale lembrar: cave, canem) recolocou o assunto brutalmente em pauta. Mais uma vez. De onde não deveria ter saído.

Na verdade, esses “nãos” também escondem algumas armadilhas, nas quais muitas vezes caem escritores que se atrevem a tratar desses assuntos. Uma delas é a confusão, muitas vezes deliberada, da crítica e dos bem-pensantes, que trata a abordagem literária como um simples documentário da “verdade”. Ora, a “verdade” que não é transfigurada pelo trabalho literário não chega nem a ser documentário: é uma chatice. Mas a solução para esse problema não é simplesmente olhar para o próprio umbigo e elevar isso à suprema categoria literária.

Como diz também a Maria José Silveira: “É arriscado escrever sobre o que nos atinge tão de perto. O tempo da ditadura é um passado que não passou. Embora por alguns curtos anos tenhamos vivido no wishful thinking de acreditar que estávamos em uma democracia, hoje vemos como a ditadura e seus restolhos estão se fazendo presente, emergindo sem pejo dos subterrâneos, loucos para respirar ar fresco. Ao escrever sobe tantos horrores ainda tão presentes, é preciso uma atenção enorme para não cair no perigo fatal de ser panfletário. Se isso acontece, a literatura morre. De morte matada por nossas boas intenções”.

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LEIS… ORA, AS LEIS

A aprovação definitiva no Congresso do projeto de Lei da senadora Fátima Bezerra (PT), criando a Política Nacional de Leitura e Escrita poderá provocar resultados, digamos, motivacionais, no panorama de incentivo à leitura e à escrita no país.

Entretanto, sem criar instrumentos e mecanismos explícitos para sua execução, coloca a lei – ou seja, para efetivamente aplicar uma política pública na área, – que certamente será promulgada (e com fanfarra) pelo presidente usurpador, na categoria

daquelas que são “para inglês ver”.
A proliferação de projetos de lei sobre livro, leitura, promoção de autores e concursos continua ativa. Já em 2012 publiquei aqui, comentário sobre várias leis inúteis ou perigosas em tramitação. Mais recentemente estamos com as parolagens da “Escola Sem Partido”, iniciativa originada de Instituto Millenium, que me abstenho de comentar para não ficar deprimido, e porque tantos já o fizeram, denunciando essa perigosíssima tentativa de censurar e impor limites à liberdade de cátedra e à liberdade de opinião.

A iniciativa da Senadora Fátima Bezerra, que encaminhou o anteprojeto preparado pelo professor José Castilho Neto (então secretário executivo do PNLL) e Volnei Canonica (então titular da Diretoria de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas, do MinC), mostra o compromisso da senadora e de todos os relatores que encaminharam a lei, tanto no Senado como na Câmara, com a questão do livro e da leitura em nosso país. Por isso, parabéns a todos esses parlamentares, e aos idealizadores da legislação.

Para ilustrar o tipo de questões que esses projetos representam, gostaria de lembrar que a Lei nº 12.244, de maio de 2010,  está em pleno vigor. Para quem não se lembra, ou reconhece, é uma lei que obriga a todas as escolas públicas do país ter biblioteca à disposição dos alunos e professores, com um acervo mínimo de um título por aluno matriculado. Sancionada pelo Presidente Lula (Fernando Haddad era o Ministro da Educação), é um egrégio exemplo de lei inútil. Estabelece um prazo de dez anos – que terminará em 2020 – para ser cumprida, mas nenhuma punição para os prefeitos ou governadores – respectivamente responsáveis pelo ensino básico e médio – que não a cumprirem. E muito menos indica que recursos poderiam ser usados para isso. Nem ao menos considera a possibilidade de uso das transferências constitucionais para a educação, com esse objetivo.

Seria educativo se o MEC se dispusesse a demonstrar quantas escolas abriram bibliotecas nestes já oito anos de vigência da lei. Pelo que sei, salvo alguns poucos municípios onde representantes do Ministério Público induziram os prefeitos a fazer um TAC – Termo de Ajuste de Conduta, – para implementar as bibliotecas nas escolas, e algumas escolas particulares, deram pelota para a tal lei, que em breve será sepultada na fossa da boa vontade inútil.

Outro exemplo, agora de lei ainda em tramitação, é o do PL do Senado 1321/2011, apresentado pelo então Senador (e Presidente do Senado), José Sarney. O projeto tentou um atalho, que foi o de complementar a Lei 10.753, de 30 de outubro de 2003, que institui a Política Nacional do Livro (que, aliás, é a mesma lei que foi emendada pelo projeto da Senadora Fátima Bezerra). A intenção é especificar melhor um crucial detalhe dessa importante legislação, que previa a instituição desse fundo para financiamento dos objetivos previstos na Lei do Livro, usando recursos do Fundo Nacional de Cultura (art. 17), a ser substituído por esse novo Fundo Nacional Pró-Leitura (FNPL).

Diga-se de passagem, e ilustrativamente, que na época da tramitação da Lei do Livro (10.753), eu era consultor do Cerlalc e acompanhei o processo. Adverti e insisti que a criação do mecanismo de financiamento das ações da Lei deveria ser concomitante. Caso contrário, como os fatos infelizmente provam, não sei quantos ministros da cultura depois, isso iria ficar no limbo. Tenho ou não razões para ser pessimista?

Tal como o projeto recém aprovado do PNLL, o do Sarney já passou pelo Senado e está na Câmara, podendo ser aprovado em caráter conclusivo após tramitação nas Comissões. Atualmente, depois de ser aprovado na Comissão de Educação, está na Comissão de Cultura, desde abril, com relatoria do Deputado Thiago Peixoto, que certamente dará parecer positivo. De lá passa para a Comissão de Constituição e Justiça e poderá ser aprovado sem passar pelo plenário, tal como foi o da Senadora Fátima Bezerra.

O FNPL seria um fundo de natureza contábil, com prazo indeterminado de duração, que funcionará sob as formas de apoio a fundo perdido ou de empréstimos reembolsáveis,  constituído por recursos: I – do Tesouro Nacional; II – doações, nos termos da legislação vigente; III – legados; IV – subvenções e auxílios de entidades de qualquer natureza, inclusive de organismos internacionais; V – reembolso das operações de empréstimo realizadas por meio do Fundo, a título de financiamento reembolsável, observados critérios de remuneração que, no mínimo, lhes preserve o valor real; VI – resultado das aplicações em títulos públicos federais, obedecida a legislação vigente sobre a matéria; VII – saldos de exercícios anteriores; VIII – recursos de outras fontes.

Curiosamente, o projeto prevê que o FNPL será gerido pelo órgão encarregado da Política Nacional do Livro, conforme regulamento. Ou seja, pela ex-diretoria ocupada pelo Volnei Canonica, que foi rebaixada na hierarquia do MinC.

Ou seja, trata de autorizações para que o executivo faça – sem obrigação de fazer – um monte de coisas ótimas, que continuam desamarradas do ponto de vista da execução.

Os parlamentares estão constitucionalmente impedidos de apresentar projetos que criem órgãos e estabeleçam compromissos financeiros do Executivo. Podem apresentar, na discussão da Lei Orçamentária, emendas destinando recursos para órgãos, instituições e programas existentes, mas não criar nenhum. Essa castração da prerrogativa legislativa é antiga, e até hoje não faz parte da pauta de ninguém eliminá-la.

O Presidente Lula já declarou, aliás em várias ocasiões, que o que fez realmente foi “colocar os pobres no orçamento”. Sem isso, as iniciativas permanecem sempre no campo das boas intenções. Que, ao contrário do que diz a sabedoria popular, nem sempre calçam o caminho do inferno, mas correm o risco de permanecer piedosamente bem-intencionadas para sempre.

De qualquer modo, mostra o crescimento, no parlamento, do interesse pelo assunto. Resta saber como aproveitar melhor isso, pois não há criatividade que resolva o fato básico: fora o livro didático, o Governo Federal não colocou o livro e a leitura no orçamento. O livro e a leitura, infelizmente, continuam sendo vistos apenas como um instrumento da educação, e não como parte integral dos direitos cidadãos de acesso à cultura, informação e lazer. E sem entrar no orçamento.

CACHAÇA E LITERATURA BRASILEIRA

A literatura é uma cachaça, alguns podem até dizer que. É um dos tantos sinônimos da branquinha: algo que não se pode largar. A literatura brasileira é uma cachaça para muita gente.

Mas, além de “ser uma cachaça” para leitores, a branquinha aparece nas obras de muitos autores, e essa presença reflete e retrata muitas coisas.,

Não é de se admirar. A cachaça é a bebida mais popular do país. Estranho seria se não estivesse presente na obra de nossos grandes escritores. (Talvez esteja ausente – definitivamente – nos escrevinhadores classe média que só olham para o próprio umbigo e só bebem cerveja, ou uísque). Mas, de José Lins do Rego aos poetas cancioneiros atuais, de João Cabral a Chico Buarque, e passando por Graciliano, Guimarães Rosa, Mário de Andrade e muitos outros, a cachaça está presente no enredo, na construção do romance (ou das poesias) e na anima de várias obras primas de nossa literatura.

Esse é o tema do curso organizado pelo professor Maurício Ayer, escritor, tradutor, pesquisador de literatura e música e especialista em cachaça. Doutor e pós-doutor em literatura francesa pela FFLCH/USP, especializou-se na Universidade de Paris 8 e formou-se em Música/Composição na Faculdade Santa Marcelina. O curso, “Literatura Brasileira e Cachaça”, é organizado sob os auspícios do site Outras Palavras – Comunicação Compartilhada e Pós Capitalismo. Aqui o link para informações sobre o curso, e aqui uma apresentação do Maurício Ayer

A primeira “aula” – se é que se pode chamar assim – foi sobre José Lins do Rego, em especial sobre o ciclo da cana de açúcar, no último dia 3 de março. Na verdade, tudo se estrutura em leituras e conversas sobre trechos dos livros do autor selecionado, e a – naturalmente imprescindível – degustação de cachaças da região do autor. Zé Lins, paraibano, foi degustado na companhia de duas cachaças locais – a Rainha e a Volúpia. Cachaças com personalidade própria do brejo paraibano, envelhecidas em barris de freijó. E, no final, mais degustação de duas versões da mineira Tiê, que apoia a iniciativa.

O mais notável é que todos saímos satisfeitos, levemente – muito levemente, porque degustação é de pouquinho – alcoolizados. Aprendemos como Zé Lins faz referências à cachaça, aos contrabandistas, vendeiros e produtores (o Engenho Santa Rosa, onde se desenrola a ação dos romances), desde a perspectiva do neto do coronelzão, do “moleque” da usina, dos trabalhadores “moradores” do engenho e do trabalhador artesão semi-autônomo, Mestre Amaro, o seleiro, a chegada do cangaço… e da polícia.

Zé Lins é um escritor realista. Chegou a ser ministro do Getúlio, mas era também amigo do Graciliano, a quem hospedou logo que este saiu da prisão (veja o relato interessante no romance-tese do Silviano Santiago, “Em Liberdade”, no qual ele (re)inventa os primeiros dias de Graciliano quando deixa o presídio da Ilha Grande.

O realismo de Zé Lins do Rego é da perspectiva do senhor de engenho. É curioso como romances que hoje vemos claramente escritos desde o ponto de vista dos patrões é aceito e elogiado pelo comunista Graciliano Ramos. O realismo e o ciclo do nordeste, do qual fazem parte os dois – e mais tantos outros, como Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida, Jorge Amado – foi acompanhado por outros ciclos “regionais” no Sul e na Amazônia, que não é o caso de falar aqui.

O fato de serem realistas (ou “neorrealistas”, como se costuma qualificar) era o passe comum entre todos. As narrativas transcendem posições de classe e revelam um Brasil que era “desconhecido” pelas elites intelectuais do sul, especialmente a carioca e a paulista. Essa característica de certa forma dilui oposições políticas, ideológicas e estilísticas muito diferenciadas.


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E FUI PARA O FLICRISTINA

Como anunciei semana passada, fui participar do II FLICRISTINA, o Festival Literário da pequena cidade do Sul de Minas, a convite dos irmãos Ninil e Ray Gonçalves, seus animadores e organizadores.

Cristina é uma dessas pequenas cidades do sul de Minas, produtora de cafés de qualidade e leite, com pouco mais de 10.000 habitantes (metade na zona urbana e metade nas zonas rurais). Está perto de Itajubá, Santa Rita do Sapucaí e Piranguinho, conhecida pelos doces. É alcançada pela Fernão Dias e depois por estradas menores. No caminho, desde grandes distritos industriais em Pouso Alegre e Santa Rita do Sapucaí, passando pelas fazendas que alternam rebanhos de gado nelore e fazendas de café. Bucólicas como sói acontecer pela região, com estátuas de S. Sebastião ao lado do sinal da loja maçônica na entrada de Pedralva, e localidades com nomes que só se vê… em Minas Gerais, como esse Bairro Despropósito.

São Sebastião ao lado do símbolo maçônico em Pedralva, a caminho de Cristina.

despropósito, bairro rural de Cristina.

A FLICRISTINA, em sua segunda edição, estava organizadíssima. Na praça central da cidade, uma tenda abrigando o espaço para as mesas e palestras (também foi usado o plenário da Câmara Municipal e um dos colégios públicos da rede municipal para oficinas), um palco para os espetáculos musicais, área de alimentação (destaque para um foodtruck de alunos da Engenharia de Itajubá, bem estocada de cervejas e outros líquidos calóricos e inebriantes, e também para a barraca da APAE local, com ótimo café coado e um livrinho de receitas jóia). Mais adiante, outra tenda abrigava a FLICRISTININHA, com atividades para crianças durante todos os dias. Os professores e professoras da rede foram convocados e levaram os alunos para atividades mesmo no feriado e na sexta-feira “enforcada”. Havia também uma mini-feira de livros, sobre a qual comentarei mais adiante.

Os convidados foram hospedados em pousadas da região e faziam as refeições em um restaurante perto da praça.

Isso foi possível graças ao apoio da Prefeitura, em especial da Secretaria de Educação, que reservou recursos para cobrir a maioria dos gastos. Nenhuma grande empresa, banco ou coisa parecida se dispôs a colocar alguns caraminguás no evento. Do comércio local, um cafeicultor, Sr. Sebastião Afonso da Silva, produtor de um café bicampeão mundial de qualidade de grãos. A Valcan, empresa local que comercializa produtos de proteção individual, foi outra  que ajudou o Festival.

Um cafeicultor premiado ajudou a fazer o Festival.

O apoio para a Flicristina foi totalmente local.

É importante destacar que, dessa maneira, a FLICRISTINA foi realizada por esforço próprio, mostrando a capacidade de organização e mobilização do Ninil e da Ray, que mobilizaram os recursos locais de uma pequena cidade para fazer um evento cultural importante para a comunidade e para toda a região. É um exemplo.

Quando cheguei em Cristina e dei meu primeiro passeio pelo centro da cidade, notei uma ausência quase completa de negros circulando. Depois perguntou a Ninil se não houve mineração ou grande lavouras na região. Ele respondeu que havia um bairro habitado principalmente por negros na periferia da cidade. Ninil já fazia um trabalho de aproximação, explicando a eles que o Festival era para todos. Disse que tem como missão atrair, cada vez mais, essa população a participar da FLICRISTINA. E mostrou um detalhe do Pavilhão tecido e preparado para o desfile de abertura. Ali, mais ou menos no meio, nos dois lados, um detalhe. “Os negros são conhecidos como pés de chinelo, e para mostrar que a FLICRISTINA é deles, colocamos os dois chinelinhos no Pavilhão”.

O Pavilhão da FLICRISTINA. Notem os chinelinhos.

A FEIRA DE LIVROS

A feirinha era modestíssima. Uma livraria de Itajubá e algumas barracas da infatigável infantaria do mercado editorial: os vendedores de porta-a-porta. Nenhuma rede, nenhuma das editoras do segmento trade.

O que eu questiono?

Existem centenas de feiras e festivais literários acontecendo durante o ano, em boa parte dos Estados. À exceção das badaladas, a oferta de livros nesses eventos é exclusivamente feita pelos vendedores de porta-a-porta. Não preciso que me repitam a litania que são eventos muito pequenos e que não compensa deslocar equipes de venda, montar estandes, etc. etc. etc. Já ouvi esse blá-blá-blá centena de vezes.

Fiz um filmete da feira, aqui.

Existem centenas de feiras e festivais literários acontecendo durante o ano, em boa parte dos Estados. À exceção das badaladas, a oferta de livros nesses eventos é exclusivamente feita pelos vendedores de porta-a-porta. Não preciso que me repitam a litania que são eventos muito pequenos e que não compensa deslocar equipes de venda, montar estandes, etc. etc. etc. Já ouvi esse blá-blá-blá centena de vezes.

Depois reclamam.

Vimos recentemente a Livraria da Editora da UNESP dar por encerrada a iniciativa (premiada!) do Caminhão Livraria. Nem vou especular se outras razões, além da litania habitual, pesaram na decisão da editora, que pertence a uma Fundação Universitária, a encerrar essa importante inciativa.

O fato é que o caminhão, já adaptado, deve estar estacionado em algum depósito entre S. Paulo e algum extremo do estado onde haja um campus da UNESP. Mas pergunto: por que razão entidades como a CBL, a ANL ou mesmo a LIBRE não se ORGANIZAM para colocar esse caminhão rodando pelas feiras do interior, de S. Paulo e do resto do Brasil? É falta de visão, incapacidade organizativa ou pura e simplesmente preguiça de pensar e inovar?

Quem quiser responder ou pensar a respeito que responda. Eu sou apenas uma pessoa que faz perguntas. E pergunto porque, em outra era, a CBL já promoveu, junto com a Imprensa Oficial, o Circuito Paulista de Feiras Literárias. Mudaram as duas administrações e o projeto naufragou. Mas as grandes bienais (onde a presença da ponta de estoque é cada vez mais significativa) continuam nos calendários.

Depois, todos reclamam do mito de que o brasileiro lê pouco e o resto do lamento. E meu comentário será sempre: quem não tem imaginação e competência para desenvolver mercados fora dos grandes centros que sente na margem de um Rio Piedra qualquer e chore as pitangas.

livraria mais próximas está em São Lourenço, mais de meia hora de carro de Cristina.

A BIBLIOTECA

Cristina tem uma biblioteca municipal, que homenageia um ilustre filho da terra, D. Marcos Barbosa, monge beneditino, escritor, poeta e tradutor (O Pequeno Príncipe, O Menino do Dedo Verde, e obras de Paul Claudel e François Mauriac). A biblioteca, entretanto, não faz jus ao homenageado.

Estava fechada havia muito tempo, servindo inclusive de depósito de materiais (o que não deixa de ser uma promoção utilitária diante do fato de muitas serem simples depósito de livros…). Foi reaberta e recondicionada por ocasião da I FLICRISTINA. A Secretaria de Educação do município comprou recentemente obras de Carlos Drummond de Andrade, que este ano foi o patrono do festival. No entanto, o acervo é pobre e defasado. Apesar de ter alguns computadores enviados pelo MinC há anos, não tem o acervo informatizado, e as condições de uso são precárias. Minha intervenção na FLICRISTINA abordou esse assunto, com o Secretário de Educação presente.

Esperamos que D. Marcos Barbosa mexa os pauzinhos junto ao Espírito Santo para a graça de colocar a biblioteca com seu nome à altura de sua missão e do homenageado. Sim, porque diante da tragédia que são as bibliotecas públicas brasileiras, até um ateu convicto e militante como eu pede ajuda a qualquer santo disponível.

Mexa-se, D. Marcos Barbosa, que sua cidade precisa.

Enquanto isso, note-se que a determinação do Ninil e da Ray pelo menos fez reviver a pequena e insuficiente biblioteca municipal.

UMA EXPERIÊNCIA DE PROMOÇÃO DA LEITURA

Alunos de escola pública de Cristina e a professora. A camiseta foi feita especialmente para o festival.

Contrastando com a inércia da biblioteca municipal, encontrei no sistema de educação de Cristina experiências muito interessantes de promoção da leitura entre as crianças.

Quando ia para a E.M. Carneiro de Rezende, onde eram feitas as oficinas programadas pelo Festival, encontrei a Coordenadora da área de Educação Infantil, prof. Luciana dos Santos, que me informou o rumo, e aproveitou para me dar um exemplar do que é o resultado do programa Diciolhares, desenvolvido pela coordenação, com ajuda de todas as professoras da rede. É uma espécie de dicionário analógico inspirada no que faz o autor colombiano Javier Naranjo, publicado no Brasil como “Casa das Estrelas”, pela Foz. As crianças, mobilizadas, ainda não alfabetizadas, falam para as professoras sua definição das palavras. Vejam amostras.

Segui até a E.M. Carneiro de Rezende, procurei a diretora, Elizabeth Cardoso e, com ela, pedi para ver a biblioteca escolar e a encarregada.

A professora Beatriz Barbosa, da biblioteca, nos recebeu em uma sala ampla, iluminada… e com poucos livros.

“Ano passado, uma enchente excepcional inundou a sala e destruiu todos os livros que tínhamos aqui”, explicou. Depois acrescentou que a escola vem fazendo, por iniciativa da diretora, festas para conseguir dinheiro e comprar novos livros. “Pedir doações só faz que as pessoas tragam o lixo de casa para a biblioteca”. Concordo, desde sempre.

A história da atuação da profa. Beatriz começa do modo mais comum a quem se vê encarregada da biblioteca. Depois de uma enfermidade grave, não podia mais exercer a regência de classes. Aposentou-se da Secretaria Estadual de Educação (onde havia trabalhado também, há anos, no programa Cantinho da leitura) e, na Carneiro de Rezende, começou ajudando na administração da escola. Depois foi designada para a biblioteca.

No primeiro ano ficou no papel tradicional, esperando que os alunos a procurassem para ajuda nas pesquisas e no uso da biblioteca. “Mas a Beatriz não é de ficar parada e logo mudou isso”, informou a diretora.

De fato, a professora Beatriz passou a organizar um programa dinâmico de incentivo à leitura no horário em que cada turma devia ir à biblioteca. Sim, na Carneiro Rezende agora tem “aula de biblioteca”, substituindo a passividade anterior. Começa com leituras sobre a dengue e outras epidemias. “Era um problema muito grave na região. Agora está melhor, mas conseguimos material de leitura, e os alunos são excelentes multiplicadores”. Depois são organizados ciclos de leitura fora da escola. “Café com Letras” faz leituras na casa dos alunos cujas famílias se dispõem a recebê-los para um lanche. “Gosto muito de trabalhar com contação de histórias, mas não sei contar. As mães sim, contam casos da família, leem com os meninos, é muito produtivo”. Há programas de “Leitura na Cachoeira”, já que Cristina tem uma bela queda d’água praticamente dentro da cidade. “A ideia é mostrar para as crianças que leitura não é coisa apenas de dentro da escola, pode e deve ser feita em qualquer lugar”.

Na FLICRISTINA do ano passado, durante uma das atividades na praça, uma criança circulou ressabiada e foi abordada por ela. Não estava matriculada, mas passou a integrar as atividades da biblioteca.

Perguntei se essas ações eram estendidas às outras unidades do município. Tanto Beatriz como a Beth informaram que a rede municipal é bem extensa (Cristina é o município de maior extensão da região), com escolas rurais e urbanas. Mas essas atividades, quando existem, são de iniciativas de cada escola.

Como a FLICRISTINA tratou da obra do Drummond, todo o colégio fez atividades relacionadas com a obra do itabirano. Desenhos, colagens, montagens, até guaches recortados e transformados em quebra-cabeças. Eles se divertiram muito reinterpretando os poemas. Achei particularmente divertido o desenho de uma garota por conta do “Tinha uma pedra no meio do caminho”. A garotinha se retratou… dando uma topada na bendita pedra.

A aluna não apenas encontrou a pedra no meio do caminho. Deu uma topada no verso dummondiano

Drummond entre os canteiros de flores da escola.

Na minha palestra, fui direto. Experiências como essas podem e devem ser generalizadas pelas escolas do sistema. Na infinidade de propostas de incentivo à leitura que existem por aí, cada uma dela tem defensores ferrenhos. Como não sou especialista nisso, sempre digo que a pedra de toque é avaliar as experiências bem-sucedidas e generalizá-las.

O Secretário de Educação estava lá.

Quem sabe D. Marcos Barbosa dá uma cutucada nele para avançar mais ainda nas boas coisas que faz?

FLICRISTINA

Em resumo, foram dois dias de uma experiência muito gratificante. Nem vou falar aqui das mesas que assisti, dos espetáculos musicais apresentados. Aprendi coisas, conheci excelentes pessoas e revi amigos. Não há mais espaço.

O importante a destacar é que experiências como a de CRISTINA estão se multiplicando. Todas as semanas ficamos sabendo de alguma iniciativa. Desde 2013, quando Galeno Amorin, na BN, abriu um edital cadastrando feiras de livros e festivais como essas para concorrer a uma modesta contribuição com fundos do FNC, e mostrou que já havia centenas de atividades semelhantes espalhadas pelo Brasil, podemos especular que algumas dessas devem ter se encerrado. Mas muitas outras vêm surgindo e as substituindo.

É uma esperança.

 

 

O “censo” do Livro Digital

Cortesia da Simplíssimo

A divulgação do “Censo do Livro Digital”, pesquisa feita pela FIPE, sob encomenda da CBL e do SNEL, suscitou muitas reações, como previsível. Algumas bastante irritadas pela ausência do que, evidentemente, são dois componentes importantíssimos desse mercado: os dados da Amazon e os dos chamados autores auto publicados. Estes, por sua vez, em parte abrigados na própria Amazon, através do programa KDP; outros, por conta própria ou através de agregadoras, que publicam tanto livros impressos quanto e-books, seja por encomenda, seja com a contribuição de autores.
Os dados da Amazon relativos às editoras tradicionais não são tão importantes, já que, em princípio, estas informaram o quanto venderam por este canal, assim como pelas outras empresas que vendem livros eletrônicos – Kobo, Google, Apple iTunes, Saraiva, Cultura, etc.

Essa pesquisa, tal como a de produção e vendas do mercado editorial, não se propõe a verificar o total das vendas no varejo.

Explico. Na produção e vendas de livros impressos, as editoras informam o quando produziram e venderam naquele ano determinado. Ora, o varejo trabalha também com estoques de livros produzidos em outros anos e já comprados (supõe-se que as vendas de reposições no ano sejam informadas pelas editoras). Nesse sentido, o livro digital leva uma vantagem de precisão, já que não existe estoque. Os varejistas faturam e pagam apenas os livros vendidos. O problema óbvio é que a Amazon, dominante nesse mercado, não fornece nenhum dado.

Isso mostra um problema constante a quem analisa dados de pesquisa. É preciso ter clareza sobre o que está sendo perguntado e respondido. Se a pesquisa for tecnicamente bem-feita, ela responderá (por amostragem) aquilo que foi perguntado. NUNCA é um retrato total do objeto pesquisado.

Analogamente, as pesquisas do tipo das feitas pela Nielsen e pela GfK, que detalham a movimentação dos pontos de venda, revelam um determinado tipo de realidade do varejo, e não outras. Não respondem, por exemplo, pelas vendas feitas diretamente pelas editoras aos governos e outras instituições do gênero (por exemplo, as compras de livros infantis eventualmente feitas pelo Itaú e por outros programas similares, ou pelas escolas, etc.). E estão restritas aos varejistas que aceitaram pagar pela implantação do software da Nielsen ou da GfK em seus pontos de venda.

Desse modo, temos que considerar, em primeiro lugar, o que foi perguntado e a quem.

O tal censo (que não é censo, exatamente porque não abarca todo o universo, e a palavra só é usada, pela FIPE e por seus financiadores, como um instrumento de mercado, para sugerir uma abrangência e precisão que simplesmente não existe), perguntou, a uma amostra, selecionada com critérios especificados (mas não divulgados na apresentação), quantos e-books foram vendidos e qual o faturamento obtido por isso.

A GfK, empresa alemã que faz um trabalho de pesquisa no varejo basicamente semelhante ao da Nielsen, inclusive o Nielsen BookScan (tanto uma como outra pesquisam vários tipos de produtos), publicou em março passado um survey, feito online, em dezessete países, sobre a frequência de leitura online de livros. Na descrição (em inglês), dos objetivos do levantamento, a GfK declara: “A GfK entrevistou, no verão de 2016 [no hemisfério norte, suponho], mais de 22.000 consumidores com idade igual ou superior a 15 anos, online, em 17 países. Os dados foram ponderados para refletir a composição demográfica da população online em cada mercado”.

Ou seja, a descrição expõe as condicionantes: idade igual ou superior a 15 anos dos pesquisados, ponderados para refletir a população online de cada mercado. Vejam bem, não se tratava da população total de cada país, e sim da chamada “população online”, o que supõe outra pesquisa (não divulgada no mesmo local), que mostraria o percentual da população total que a GfK considera como online.

E a pesquisa (que não vou comentar aqui em detalhes) mostra exatamente isso. Quem quiser vê-la pode acessar aqui .

Só para informação, a pesquisa mostra que 26% da população online brasileira lê e-books todos os dias. Mais 27% lê pelo menos uma vez por semana e apenas 6% nunca lê.

Evidentemente, esses dados, que parecem muito promissores, dependem de que se conheça qual é essa população online e mostram tão somente a frequência de leitura. Não indicam quantos títulos são lidos e muito menos a origem do que é lido (comprados, emprestados, pirateados, clubes de assinatura, etc.), o valor de mercado que isso representa, nem que tipos de livros são lidos.

Vejamos como foi feita a pesquisa FIPE-CBL/SNEL.

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ABRALIC, A UNIVERSIDADE EM PERIGO E A LITERATURA BRASILEIRA

Semana passada estive no Rio de Janeiro participando da XV Reunião da ABRALIC – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LITERATURA COMPARADA, que aconteceu no campus da UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Mesa sobre as dificuldades da difusão da literatura brasileira na ABRALIC – 2017 (#UERJ resiste)

Foi um encontro admirável. A UERJ é o alvo, a ponta de lança da tentativa de desmonte da universidade pública brasileira, empreendida pelos usurpadores que perpetraram o golpe de estado parlamentar-judiciário que nos atinge hoje. É a primeira vítima, por conta da calamitosa situação do estado do Rio de Janeiro, unidade da Federação que foi amplamente beneficiada por investimentos públicos e privados nos últimos anos: a indústria naval renascida (e agora destruída, passando de 80.000 trabalhadores para menos de 20.000); os investimentos urbanos em função da Copa do Mundo e das Olimpíadas, o transporte urbano, entre outros. O funcionalismo do Rio de Janeiro está há meses sem receber os salários, exceção, é claro, das forças de segurança, reconhecidamente mal treinadas e estupidamente brutais daquele estado, mas que garantem o mínimo de proteção para o governo, e que contam agora, com o emprego a contragosto de um contingente de forças federais. A UERJ está sem contrato de manutenção, limpeza e segurança há quase um ano, e professores e funcionários estão com os salários atrasados há quatro meses, além de não terem recebido o 13º salário.

Diante dessa situação, o esforço que esses professores e funcionários, com a participação dos alunos (quase duzentos monitores voluntários) fizeram para organizar e executar um evento de grande porte, com convidados nacionais e estrangeiros foi simplesmente monumental. A UERJ resiste ao descalabro, a duras penas e com grandes sacrifícios.

ABRALIC, como já disse, é a associação que reúne professores e especialistas em literatura comparada. E é isso que a faz importante para a nossa literatura e, por extensão, ao mercado editorial. A mesa da qual fiz parte tratava, precisamente, das dificuldades de expansão internacional da literatura brasileira.

Comparar os diferentes aspectos da literatura significa, precisamente, entender as relações do que os nossos escritores produzem vis-à-vis o que é produzido nesse grande concerto que é a República Mundial das Letras. Como nossa literatura se confronta e contribui para esse diálogo civilizatório – essencial para o entendimento entre os povos – que se expressa através da produção literária.

A difusão da literatura brasileira no exterior enfrenta enormes dificuldades. E isso tem a ver com a nossa indústria editorial.

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