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OS MEMBROS DO MERCADO EDITORIAL, A CRISE E MANIFESTOS

Semana passada, em ótima iniciativa, o PublishNews publicou duas opiniões sobre o recente manifesto “Escritores e profissionais do livro pela democraciaque, pela contagem que acabei de fazer, já tem quase nove mil assinaturas. Luís Maffei defende a necessidade do manifesto, e Henrique Farinha escreve que “a luta política não pode contaminar as pautas profissionais”.

Com o devido – e sincero – respeito às posições pessoais do Henrique Farinha, não posso deixar passar a oportunidade de comentar o assunto.

Para deixar claro: assinei o manifesto, votei na Dilma em 2014 – e votaria novamente, apesar das inúmeras e imensas críticas que tenho ao seu governo. Trabalhei pela legalização do PT, lá pelos anos 1980, mas não sou afiliado ao partido e nem tenho nenhuma militância partidária estrictu senso.

Mas me considero um homo politicus, inclusive no sentido aristotélico da palavra. Eu não sou fora da polis onde vivo. E minha relação com a polis (ou com a societas, como queiram), é que me conforma como cidadão, como profissional. Como ser humano, em suma.

É esse o cerne da questão.

Não vivo em Marte nem em etéreos mundos isolados dessa polis. Vivo neste Brasil de 2016, com sessenta e seis anos. Vivi a ditadura em sua integridade. Combati-a como pude, fui preso, torturado, e tive que me exilar. Meu primeiro filho nasceu no exterior.

Assim, além do mais, é minha história que me define.

Mas isso é genérico.

O fato é que ser editor hoje, e ter sido editor nos estertores da ditadura me ensinou uma diferença fundamental: a importância da legalidade democrática. Que não se expressa tão somente nas formalidades. O ambiente político social em que vivemos marca indelevelmente nossa atividade profissional. Ter a garantia de que um tira não pode me prender pela minha cara ou pelo que faço que não seja criminalmente definido por lei é algo inestimável para quem viveu os anos sombrios. Por isso, não bastam os formalismos, mas a forma é também fundamental.

Pensam que é fácil?

Uma anedota ilustrativa.

Na Marco Zero, a editora que Maria José Silveira, Márcio Souza e eu tivemos entre os anos 1980 e 1990, fomos os primeiros a publicar no Brasil um certo autor português, então muito jovem. Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes, foi publicado por nós nos anos oitenta. Pois bem, um belo dia vimos uma resenha do livro ocupando quase uma página no então prestigiadíssimo Caderno B. Só com um pequeno detalhe: o título não era mais o original. Para o JB passara a ser “Os Cafundós do Judas”.

Não havia mais censura explícita. Mas o ambiente da ditadura ainda perpassava tudo. Cu, nem no singular nem no plural, podia ser impresso em um jornal de circulação nacional. Hoje virou imprecação de estádio na Copa do Mundo….

E o ambiente que vivemos hoje me evoca isso – com dor no coração.

A deterioração do ambiente político do país é simplesmente assustadora. Quando as pessoas têm que pensar qual a cor da roupa que vestem, porque isso pode provocar uma agressão, é uma tragédia. E isso aconteceu muito rapidamente.

Apesar da dureza da campanha de 2014, ainda se mantinha um nível de civilidade que, de lá para cá, perdeu-se completamente. Nas eleições de 2014 saí de casa para votar no Colégio São Luís, na Paulista (onde o Aécio deve ter tido uns 80% dos votos), com uma camiseta vermelha, comprada em Leningrado, em homenagem à Revolução de Outubro na Rússia. Depois, fiquei observando o movimento e uma senhora me pediu ajuda para saber como votar no Aécio. Ensino o beabá para ela, que saiu toda pimpona para votar no seu candidato.

Isso, há pouco mais de dois anos. Hoje seria, literalmente, impensável. Se eu aparecer para votar com camiseta vermelha, no Colégio São Luís, a possibilidade de ser agredido é altíssima, como se tem visto. E que haja alguém que me pergunte como votar em candidato que não seja o meu… sem palavras.

É a ruptura da liberdade vestir de qualquer cor, de dizer o que quero, publicar o que desejo e que os leitores leiam o que lhes dê na gana que vejo ameaçada nessa quadra de proposição de métodos ilegais para depor a Presidenta Dilma Roussef, eleita com a maioria absoluta dos votos em 2014.

Juízes e outras cabeças falantes arrotam declarações na imprensa dizendo que o “impeachment é legal”. Ora, até nosso prezado Conselheiro Acácio iria se ruborizar com tal platitude. O pedido em tramitação foi feito com base na acusação de que a Presidenta fez “pedaladas” fiscais – adiantou recursos para pagar as contas. Ou seja, usou o cheque especial. Está na companhia de mais dezessete governadores, de todo o espectro partidário, que fizeram a mesma coisa. Vários dos quais, lépidos e fagueiros, engrossam o coro da deposição. Só que nem se fala mais nas tais “pedaladas”, e se imputa à Presidenta acusações que nunca foram nem mesmo mencionadas, sequer dentro desse sistema inquisitorial de prender para delatar, inaugurado quinhentos anos atrás por Torquemada e colegas.

A justiça funciona, a polícia investiga – ainda que muito seletivamente – e já houve condenações também correndo a membros de todos os partidos. Todos.

Só que a solução para os imensos e profundos problemas que afetam nosso país não é apelar para pesquisas de opinião para “decidir” o que a “maioria” deseja. A maioria decide na hora de votar. Quatro anos depois isso é julgado pelos eleitores, e ponto parágrafo.

Tudo isso afeta, sim, nosso trabalho profissional. Não apenas como cidadãos, como também como membros dessa comunidade que vive do intercâmbio de ideias, do contraditório de opiniões. Quem acha que é possível dar uma de avestruz e enfiar a cabeça no seu mundinho supostamente profissional pode, mais tarde, se arrepender. Como alguns órgãos de imprensa que apoiaram o golpe de 1964, “contra a corrupção”, e pagaram caro por isso.

Evidentemente, todo o direito é devido a quem acha o contrário. Mas considero que, quem está no mercado editorial, editor, escritor, ilustrador – enfim, toda a gama de ofícios – e for favorável à deposição da Presidenta deve dizê-lo com todas as letras, e não se escudar em uma irreal neutralidade profissional, que não existe. Podem (devem) ir à luta e arregimentar assinaturas para suas posições, sem desqualificar os demais. E, diga-se de passagem, defender o mandato e a democracia não significa nem ser conivente com crimes e muito menos apoiar as políticas aplicadas.

A expressão de posições não prejudica – necessariamente – relações pessoais nem profissionais. Meu quadro de relacionamentos, e acredito que o de muita gente – inclui pessoas (parentes, inclusive), de todos os quadrantes políticos. Com firmeza, mas sem argumentos ad hominem e destemperos, não só podemos, como temos obrigação de nos colocarmos no mundo. E convivermos.