Há muitos anos fico intrigado com esse dito americano. Alguém sempre tem que pagar pelo almoço, de alguma maneira. Só para lembrar, a frase é proveniente do costume que havia nos saloons de montar um bufê no qual os fregueses que pagassem pelo menos um drinque podiam se servir “gratuitamente”. Rudyard Kipling, escrevendo em 1891, descreveu a instituição. Pouco mais de dez anos depois a prática foi liquidada, e hoje até o amendoim é cobrado em muitos bares. A frase foi popularizada por Robert Heinlein, escritor de ficção científica no romance “The Moon is a Harsh Mistress”, de 1966, e depois usada por Milton Friedman em um livro de economia. Como detesto o liberalismo da Escola de Chicago, da qual Friedman é um dos epígonos, a frase me despertou ao mesmo tempo curiosidade e antipatia. Mas não evitou que às vezes pensasse nela, como agora, em função do meu profundo interesse em que os produtos culturais – especialmente os livros, no caso – sejam acessíveis para o conjunto da população. Certamente não vou discutir aqui a teoria dos custos de oportunidade, mas somente usar a frase como um aforismo para discutir algumas coisas.
A questão sempre me vem à mente quando voltam à tona as conversas sobre conteúdo grátis, particularmente na Internet.
Do ponto de vista do livro tradicional, em papel, a equação que permite à população o acesso gratuito aos livros já está solucionada desde o século XVIII. Chama-se BIBLIOTECA PÚBLICA. Nesse local, os livros adquiridos, seja pelo Estado, seja por associações da sociedade civil ou mesmo doados por particulares, passam a estar disponíveis para o público. A responsabilidade do Estado de adquirir os livros, de estabelecer políticas públicas para estabelecer um sistema de bibliotecas públicas é uma exigência da solIciedade para que o acesso ao conhecimento, informação e lazer esteja disponível para todos.
Mas não há almoço grátis. As editoras vendem os livros que foram produzidos por gráficas e pagam direitos autorais a quem os escreveu.
A história do direito autoral para livros apresenta alguns exemplos bem interessantes. Desde que a produção de bens culturais e sua fruição ultrapassaram os limites da aldeia (onde os contadores de histórias as retransmitiam – sempre acrescentando alguma coisa, sempre criando adicionalmente algum detalhe – para seus ouvintes daquele núcleo social minúsculo), a difusão e distribuição dos bens culturais geram mecanismos de remuneração para os diferentes agentes sociais (e culturais) envolvidos. Remuneração que podia até se expressar sob a forma de prestígio (e poder), mas que também sempre encontrava, no final, um denominador comum: valor.
ALMOÇO GRÁTIS E PRESTÍGIO
Deixando de lado, momentaneamente, a questão da remuneração direta dos autores, lembremos alguns casos que aparecem como almoço grátis (mas as aparências enganam):
– Advogados, médicos e professores universitários. Não deixa de ser sintomático que muitos figurões da advocacia defendam a livre apropriação de conteúdo. O jurisconsulto famoso edita suas obras e não vê problema nenhum que sejam copiadas, circulem em cópias reprográficas e integrem as famosas “pastas dos professores” dos cursos universitários. A razão é bem simples, e vale para advogados, médicos e demais profissionais cuja remuneração aumenta paralelamente ao prestígio que têm na profissão. O causídico, o professor doutor da faculdade de medicina não vivem da venda dos livros que publicam. Vivem dos pareceres que vendem em causas milionárias, das consultas caríssimas e cirurgias feitas bem longe do SUS e mesmo dos planos de saúde (“O professor doutor só atende em particular. Não trabalha com planos de saúde”; “O parecer na disputa entre o Banco X e o Governo custou tantas centenas de milhares de reais para a parte interessada”; “A consultoria para elaboração do RIMA para a obra vai custar tanto…” – e por aí vai). Ou seja, o almoço está sendo pago pelo prestígio que permite a cobrança de remuneração à altura pelas atividades profissionais do benemérito. O custo de oportunidade do advogado, do médico e do consultor permite que este “doe” sua produção intelectual genérica porque isso lhe proporciona rendimentos muito maiores.
– Autores iniciantes. Márcio Souza, o romancista, frequentemente cita uma boutade de sua autoria: ”É mais fácil livrar-se de um cadáver que de mil exemplares de um livro”. Autores estreantes muitas vezes se iludem pensando que a simples publicação (impressão) do livro lhes basta para alcançar a fama e o prestígio. E publicam por conta própria. Quando chegam, as caixas com os mil exemplares que encomendaram de imediato atulham a sala da sua casa. E começam a distribuir exemplares para os amigos. Estes, depois de certo ponto e de já terem recebido dois, três, ou mais exemplares do livro do novo autor, passam para o outro lado da rua quando o encontram: “Já tenho, já ganhei, muito obrigado”. E a pilha de caixas em casa mal diminui. Dos mil exemplares iniciais lá ainda estão novecentos. Porque só no Facebook é que se tem centenas e milhares de amigos. A Lulu.com, empresa americana de self-publishing, tem mais de meio milhão de títulos publicados, com tiragens que variam entre alguns exemplares a alguns milhares. E, obviamente, trombeteia os casos em que o autor efetivamente alcançou a fama (e a fortuna?), no esquema de auto publicação. Esses autores auto editados pagaram o almoço dos sócios da Lulu.com – e de todas as editoras que prestam esse serviço -, além do almoço dos fabricantes de máquinas de impressão digital, fabricantes de papel, e até mesmo deram sua contribuição para o cofrinho do Steve Jobs na Apple ou do Jeff Bezos na Amazon com a publicação de suas obras em e-books. E pagaram seu almoço fazendo qualquer outra coisa, menos com o direito autoral.
Começamos aqui a entrar no terreno da Internet. Como sabemos, existe uma forte militância em torno do conceito do acesso gratuito aos conteúdos via Internet. E, de fato, muita coisa circula de modo aparentemente gratuito na rede. Sempre que postamos alguma coisa em blogs, no Facebook e permitimos sua reprodução, implícita ou explicitamente, estamos aparentemente divulgando gratuitamente o que escrevemos.
Aparentemente?
Sim. Aparentemente. Mesmo que não recebamos nem um tostão por esse conteúdo, quem o lê está pagando e alguém está ganhando seu almoço às nossas custas. Para dar nome aos bois, as companhias telefônicas e as empresas provedoras de acesso à Internet. Mais ainda, para divulgar essas minhas idéias eu já estou pagando. Para publicá-las eu tenho também que pagar a esses personagens.
O corolário obvio disso tudo é simples: os grandes interessados no chamado conteúdo grátis são essas duas categorias de empresas, as que transmitem os dados e as que vendem a tecnologia que nos permite acessar a Internet. Quanto mais conteúdo grátis houver em um portal, mais visitas serão geradas e o portal poderá faturar mais com publicidade (além de conseguir mais assinantes de acesso ao serviço). E, além desses, provedores, ganham sempre os que transportam os dados. No primeiro caso os Zuckberger e seus similares nos agradecem. No segundo caso, Carlos Slim e seus amigos, todo santo deveriam dedicar um reverente momento de graças a todos nós que pingamos nos seus cofres.
Essa é, portanto, a primeira premissa: tudo que circula na Internet tem, no mínimo, o custo dessa veiculação pago. Por quem publica e por quem a recebe. E, se esses serviços forem disponibilizados pelo Estado, cada um de nós contribui com uma parte alíquota disso, através dos impostos.
A segunda questão importante é distinguir entre os que produzem conteúdo “gratuito” por livre e espontânea vontade, como é aqui o meu caso e o de milhões de usuários das redes sociais, e aqueles que produzem conteúdo acessível através da Internet, mas que devem ser remunerados por isso, pois é disso que vivem. Autores, por exemplo. Não os que já pagaram o almoço dos donos da Lulu.com, e sim os que vivem do seu trabalho intelectual de produzir conteúdo.
A Internet abriu um espaço fabuloso para que o acesso aos conteúdos se universalize. Mas essa universalização do acesso não quer dizer, necessariamente, gratuidade.
Certamente a multiplicação das possibilidades de acesso deve contribuir para a diminuição do preço para cada acesso individual. Os conteúdos podem e devem ser disponibilizados a um preço condizente para que todos os interessados possam acessá-los. Se isso não for feito dessa maneira, o espaço para a pirataria, a reprodução ilegal, estará definitivamente aberto. Não vai adiantar ter mecanismos de tranca (DRM) ou instituições “caça pirata” que nem a ABDR. Essa é uma luta inútil, destinada à derrota.
Por outro lado, devem ser evitadas duas atitudes. A primeira é a da ilusão hipócrita de que tudo deve ser “gratuito” na Internet. Simplesmente porque isso não existe. A segunda é a de que seja possível bloquear o acesso ao que está na Internet, seja lá por meios mecânicos/tecnológicos (DRM), ou por meio da brutalidade legal, derrubando sites e ameaçando todo mundo com prisão.
A construção de instrumentos que permitam o acesso legal, com o licenciamento da cópia de trechos de obras, ou o pagamento de preços razoáveis pelo acesso via internet faz-se cada vez mais urgente. O caso das obras “órfãs” – as que se presume ainda estejam protegidas mas que não se sabe onde está o autor, ou as que estão fora do mercado – deve ser equacionado. Uma das alternativas possíveis é a que o preço do licenciamento dessas obras fique bloqueado por certo período à espera do autor e depois desse período esses recursos sejam destinados a aquisição de acervos para as bibliotecas.
A disponibilisação das obras para estudantes, como já disse em outra ocasião, deve ser feita principalmente através de uma rede atualizada e eficiente de bibliotecas publicas, universitárias e especializadas. O que não impede – ao contrário, exige – uma abordagem mais criativa e afirmativa sobre a questão das cópias.
Felipe, com certeza a biblioteca física ou virtual resolveria em grande parte a questão da reprografia de trechos de livros. Mas creio que se solucionássemos tecnicamente a cobrança de centavos, ou via cartão de crédito, ou via compra de créditos, também daríamos um grande jeito na remuneração dos direitos autorais.
Abraço,
Ana Maria Santeiro
Ana, Com certeza. É preciso abrir o espaço para o licenciamento, com flexibilidade e presteza. Essa era a ideia original da ABDR, abandonada em 2002. A Kopinor – a associação de direitos reprográficos da Noruega, é o melhor exemplo desse sistema. a Copyritght Clearence Center, do EUA, é outro. Já publiquei post a respeito.
Me lembro que nos anos 1980 os americanos já estavam tentando solucionar este assunto. Mas por aqui me parece que a preguiça dominou.