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MARGARET ATWOOD, Profetisa da Distopia

Em uma longa matéria sobre Margaret Atwood, “A Profetisa da Distopia”,  escrita por Rebecca Mead para o The New Yorker traduz um excelente testemunho sobre uma das maiores escritoras vivas, que mereceria não apenas o Nobel, mas todos os prêmios possíveis, mais além do Booker Prize que ganhou uma vez e foi finalista em cinco outras ocasiões.

Maria José, eu e o Márcio Souza (que a conheceu no Harbourfront Book Festival em Toronto, e trouxe seus livros) temos o enorme orgulho da Marco Zero ter sido a primeira editora a publicá-la em tradução. Margaret Atwood já era muito conhecida no Canadá, nos EUA e na Inglaterra, mas nunca havia sido traduzida para o português (nem, pelo que sabemos, para outros idiomas). “Madame Oráculo”, traduzido por Domingos Demasi, em 1984. Depois publicamos as traduções de A Vida Antes do Homem (Théa Fonseca), A História da Aia (Márcia Serra), Olho de Gato (Maria José Silveira), A Noiva Ladra (Maria José Silveira), e Vulgo, Grace (Maria José Silveira).

Só deixamos de traduzi-la quando, forçados, tivemos que vender nossa participação na Marco Zero para a Nobel, que enterrou a lista da editora, exceto alguns livros de culinária, e hoje existe publicando sabe-se lá o quê de uma empacotadora inglesa…

A Rocco, que acabou ficando com a autora (a Vivian Wyler não dormia no ponto), republicou alguns dos livros que havíamos publicado, com novas traduções, e continuou publicando os que se seguiram.

Nunca li essas novas traduções. A de The Handmaids Tale, por nós publicado como A História da Aia, romance distópico sobre um EUA fundamentalista evangélico, transformado em República Gilead, voltou com força para a lista dos best-sellers nos EUA. Aqui, ao que parece, continua escondido. O novo título dado ao livro é “O Conto da Aia”. Para nós, como editores, o “tale” em inglês, nesse caso, está mais para “história” (no sentido que usamos de “contar histórias” e não “contar contos”(sic)). Bem, cada tradutor tem uma margem de escolha. Mas hoje, uma autora como a Margaret só leio no original.

A capacidade técnica, a imaginação, a maestria na construção de personagens que fazem de Margaret Atwood uma grande autora não estão nunca distantes de uma tomada de posição implícita no texto, como exemplificado por esse trecho da matéria do The New Yorker:

Como seus antecessores vitorianos, Atwood não se afasta da ideia de que o romance é um lugar onde se pode explorar questões de moralidade. Em um e-mail que escreveu para mim, “Você não pode usar a linguagem e evitar as dimensões morais, já que as palavras têm tanto peso (lírios que apodrecem versus ervas daninhas, etc.) e todos os personagens têm que viver em algum lugar, mesmo que sejam os coelhos de A Longa Jornada (Watership Down), e têm que viver em alguma época… e têm que fazer escolhas”. O desafio, ela assinalou, é evitar o moralismo: “Como você se engaja sem bancar o pregador e reduzir os personagens a simples alegorias? Um problema perene. Mas quando grandes temas sociais são realmente grandes (Doutor Jivago), os personagens agirão dentro – e sofrerão a influência – de tudo que está a seu redor”.

Para mim, é uma definição perfeita do labor do romancista, ontem, hoje e sempre. Se um romance não trata de personagens que vivem em um contexto no qual a escolha das palavras tem peso, e as escolhas dependem da sociedade e do momento em que vivem, esse é um romance descarnado. Pode satisfazer o ego dos autores (quantos vivem assim na literatura contemporânea?), mas não subsistirão.

No início deste ano, Margaret Atwood recebeu o “Lifetime Award” do National Book Critics Circle, por seu trabalho como crítica e resenhista. Foi pouco depois da posse do laranja, no dia em que ele anunciou sua primeira tentativa de barrar imigrantes. Logo no começo de seu discurso, Atwood brincou: “Ainda bem que não me barraram na fronteira” e, no final, assinalou, depois de jocosamente comentar a sensibilidade dos autores sobre qualquer coisa que pareça desmerecedora do talento de cada um, esquecendo os elogios. Como reporta Rebecca Mead:

Por que me dedico a uma tarefa tão dolorosa?” – disse ela. “Pela mesma razão pela qual dou sangue. Todos temos que fazer o que pudermos, porque se ninguém contribui para esse empreendimento meritório, então não haverá nada, justamente quando é mais necessário.” Estamos em um desses momentos, ela advertiu: “A democracia americana nunca foi tão desafiada”. As condições necessárias para uma ditadura, assinalou Atwood, incluem o emudecimento da mídia independente, o que impede a expressão da contradição ou de opiniões subversivas; os escritores fazem parte dessa frágil barreira que se antepõe entre o controle autoritário e a democracia aberta. “Ainda existem lugares neste planeta onde quem for surpreendido lendo vocês, ou mesmo a mim, pode ser submetido a penalidades severas”, disse ela. “Espero que logo haja menos lugares como esses”. Sua voz caiu para o tom de sussurro teatral: “Não estou segurando a respiração”.

Nem nós. Nem os autores de verdade. Lá, como aqui, vivemos uma democracia ameaçada pela truculência. E o mínimo dos mínimos que podemos fazer é deixar nosso protesto e nosso testemunho. Por escrito.

A CONVENÇÃO DA DIVERSIDADE CULTURAL DEZ ANOS DEPOIS

Capturar A Convenção Sobre a Proteção da Diversidade das Expressões Culturais completou, em 2015 seu décimo aniversário de promulgação. A Convenção foi o resultado de longas negociações, que se formalizaram no âmbito da Unesco em 2003, e resultaram em sua adoção na Assembleia de 2005. Atualmente, a Convenção já foi ratificada por 140 Estados Membros. O Brasil teve papel importante nas etapas finais da negociação, mas sem dúvida os países que mais se destacaram nesse processo foram a França e o Canadá. É de se anotar que os Estados Unidos até hoje não ratificaram a convenção – e buscam sabotar sua aplicação em todas as negociações comerciais, tratando de evitar a inclusão de várias cláusulas previstas nesse instrumento internacional.

Ao comemorar o décimo aniversário do estabelecimento da Convenção, a UNESCO encomendou a catorze especialistas internacionais, além do pessoal da administração da Convenção, um documento síntese de análise dessa etapa, intitulado “Repensar As Políticas Culturais”. Infelizmente só consegui acesso ao resumo executivo, disponível em espanhol (por iniciativa do governo sueco!) aqui. Os autores assinam cada uma das secções do documento. (Às vezes é bem difícil conseguir a íntegra desses documentos, a nossa representação na UNESCO não reproduz nem traduz nada. É nossa diplomacia cultural em ação…).

O documento da UNESCO está dividido em quatro secções:

➊ Apoiar sistemas de governança cultural sustentáveis;

➋ Conseguir alcançar um fluxo equilibrado de serviços e bens culturais, e incrementar a mobilidade dos artistas e dos profissionais culturais;

➌ Integrar a cultura em processos de desenvolvimento sustentável,

➍ Promover os direitos humanos e as liberdades fundamentais.

Cada uma dessas secções está dividida em vários capítulos, cada um deles abordando algum aspecto específico do tema. É importante lembrar que o documento da UNESCO pretende mapear as ações dos signatários da Convenção, destacando principalmente o “rumo” das modificações e sua implementação. Assinala, entretanto, que ainda falta muito para alcançar as metas da Convenção.

Esse é o tom de todas as secções. Assinala avanços, mas sempre destaca que falta muito para alcançar os objetivos do instrumento multilateral. Não vou abordar aqui todos os pontos do documento.

Quero destacar, entretanto, a descrição do fluxo de bens e serviços culturais a nível mundial.

Duas “mensagens-chave” dessa secção do documento chamam atenção: “A soma total das exportações de bens culturais a nível mundial em 2013 foi de 212,8 bilhões de dólares. A percentagem dos países em desenvolvimento é de 46,7%, o que representa um incremento marginal diante do ano 2004. Apenas a China e a Índia competiram significativamente com os países desenvolvidos no mercado global”.

A segunda mensagem é ainda mais significativa: “A soma total das exportações de serviços culturais a nível mundial em 2012 foi de 128,5 bilhões de dólares. A percentagem dos países em desenvolvimento representa apenas 1,6%. Os países desenvolvidos dominam este campo, com 98%. Isso se deve principalmente ao incremento de fluxos de serviços audiovisuais e artísticos transmitidos eletronicamente”.

Para além de uma terminologia econômica meio ultrapassada, o que o dado revela/esconde é o fato dos Estados Unidos não terem ratificado até hoje a Convenção da Diversidade Cultural. Mais ainda, eles procuram ativamente forçar, nas negociações comerciais com países e blocos de países, para que não se recorra aos mecanismos da Convenção para manter a autonomia desses países na formulação de políticas chamadas de “exceção cultural”. Na prática, exige de quem quiser exportar matéria-prima para o Big Brother do norte ter que aceitar o ingresso livre de barreiras de filmes, música, apps e etcéteras vindos de lá.

A indústria cinematográfica dos Estados Unidos é, depois do comércio de armas, o mais valioso item de exportação daquele país. “Serviços culturais” incluem, hoje, não apenas o download de música e cinema, como também o de livros. Lembremos que a Amazon não vende “a propriedade” do que é descarregado na Internet. Apenas licencia o uso. Daí ser um serviço e não exportação de bens.

Apesar de não haver retificado a Convenção, os EUA voltaram a fazer parte da UNESCO há pouco mais de dez anos atrás, justamente antes da negociação final desse instrumento. Atuaram – principalmente em dobradinha com Israel – de forma dura para tentar impedir o acordo final. Felizmente foram derrotados, mas não ratificaram a convenção. Cabe lembrar que a delegação brasileira na Conferência (Gilberto Gil era o Ministro da Cultura) teve um papel importante nas articulações para a aprovação do instrumento.

Ora, o país que não a ratifica fica praticamente fora dos mecanismos de controle, mediação e resolução de conflitos previstos na Convenção, que incluem aspetos relacionados com a OMC – Organização Mundial do Comércio.

A linguagem diplomática do documento da UNESCO encobre esse grande problema, que continua em aberto, e diminui consideravelmente o impacto do instrumento multilateral.

O então assessor internacional do Ministério da Cultura, Ministro Conselheiro (na época Conselheiro) Marcelo Dantas da Costa, teve um importante papel nessas negociações. Hoje é o delegado alterno da Delegação Permanente do Brasil na UNESCO (a titular é a Embaixadora Eliana Zugaib). No entanto, infelizmente, a página da representação, cujo link está aqui e as notícias que se consegue captar pela imprensa e pela Internet não têm mostrado uma atuação muito vibrante. Ano passado, por ocasião do Salon du Livre de Paris (quando o Brasil foi homenageado), estive na UNESCO em busca de informações sobre o Index Translationum, e soube que o programa estava desativado “por razões orçamentárias”. Escrevi para a Delegação Permanente sobre o assunto. Espero até hoje uma resposta.

Acredito que seja importante que o Ministério da Cultura, e o Itamaraty, aproveitem o ensejo da publicação desse documento da UNESCO para promover uma revisão do que foi feito por aqui dentro das propostas da Convenção sobre a Diversidade Cultural, e quais as dificuldades, entraves e qual a ação diplomática brasileira para avançar internacionalmente na aplicação desse importantíssimo instrumento multilateral. Que, não custa lembrar sempre, pode também ter impactos significativos nas negociações comerciais

DOM QUIXOTE CONTINUA VIAJANDO E AGORA PODE SER LIDO EM QUÉCHUA

capa quijote quechua
“Huh kiti, La Mancha llahta sutiyuhpin, mana yuyarina markapi”

Não se espante, prezado leitor. Trata-se apenas da primeira frase do famoso livro Yachay sapa wiraqucha dun Qvixote Manchamantan. Não conhece? Não sacou o Quixote aí no meio?

Pois é mesmo O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, traduzido para a língua que os contemporâneos de D. Miguel de Cervantes massacraram e escravizaram lá nos cocorutos de uma cordilheira tão longe das planícies manchegas que ao engenhoso Dom Quixote pareceriam ser obras dos gigantes, ou talvez um sonho da garbosa senhora Dulcineia del Toboso. Pois agora o quéchua ganhou uma tradução do grande romance.

Don Demétrio Túpac Yupanqui, o tradutor
Don Demétrio Túpac Yupanqui, o tradutor

O senhor Demétrio Túpac Yupanqui, com 91 anos de idade, completou a tradução do romance de Cervantes. É professor de quéchua em Lima. Zevallos-2 A edição é enriquecida com ilustrações de um artesão de San Juan de Sarhua, povoado de Ayacucho conhecido pela produção de retablos e com uma tradição de ilustradores muito forte.

Conta dom Demétrio que fez a tradução a instâncias de um jornalista basco que o visitou no Cuzco, há alguns anos, e lançou o desafio. Para enfrentar a tarefa, consultou dicionários antigos de castelhano, catecismos e sermonários.

O romance de Cervantes viajou para a América logo depois de publicado. Na Apresentação da edição comemorativa do IV Centenário de sua publicação, a Real Academia de la Lengua informa que “fresca todavía la tinta de la impresión del Quijote, en la primera mitad de 1605 salieron para America cientos de ejemplares de la novela. Irving Leonard cuenta como doscientos sessenta y dos fueron, a bordo del Espíritu Santo, a México, y que un librero de Alcalá, Juan de Sarriá, remitió a um socio de Lima sessenta bultos de mercancia que viajaron en el Nuestra Señora del Rosario a Cartagena de Indias y de ali a Portobello, Panamá y El Callao hasta legar a su destino”.

Já comentei a importância das traduções para que o livro “viaje”. Traduções que acompanham o trabalho dos editores, aqui.

Com a tradução para o quéchua, a viagem do
Engenhoso Fidalgo cumpre mais uma etapa de seu reconhecimento mundial.

Veja aqui a notícia publicada em um jornal limenho e aqui, via YouTube, uma entrevista com o tradutor para o quéchua.

O curioso é que, pesquisando para redigir este post, acabei achando outra versão em quéchua da obra de Cervantes. O quéchua possui várias vertentes dialetais, algumas já bastante distantes do original cusquenho, frutos da dispersão geográfica que já era promovida pelos próprios Incas. Com a extinção do império e o isolamento de algumas dessas comunidades, essas versões foram surgindo à tona e apresentando dificuldades várias para o estabelecimento de um alfabeto e gramática unificados. É uma polêmica que continua viva entre linguistas. Os que falam quéchua, falam o seu e pronto.

quixiote santiago Aqui, por exemplo, temos uma tradução para a versão de Santiago del Estero, no noroeste argentino.

Agradeço a meu amigo José Bessa o envio do recorte do jornal peruano com a notícia.

Novos modos de publicar traduções

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Rebecca Carter

Rebecca Carter é agente na Janklow & Nesbit e publicou este artigo no portal Publishing Perspectives, no dia 5 de janeiro de 2015.

Quando me pediram para escrever este artigo, havia recém-chegado do Harrogate Crime Writing Festival, onde assisti a um painel sobre auto publicação. Um grupo de escritores de romances policiais havia auto publicado com sucesso seus livros e debatia os prós e os contra. Havia muitos prós. Eles tinham um relacionamento muito direto com seus leitores, que alimentavam com cuidado. Alguns deles realmente haviam ganho bastante dinheiro. De fato, um deles, depois de haver sido selecionado pela HarperCollins depois do sucesso de sua auto publicação, estava tão desiludido com a experiência (e muito endividado) que voltou para auto publicação. Todos compartilhavam três coisas em comum: passaram anos tentando ser editados pelo caminho convencional; acreditavam profundamente na importância central de um relacionamento editorial (se havia algo que os levaria de volta para a edição tradicional, seria isso); o sucesso deles devia-se totalmente à ferramenta de auto publicação do Kindle, da Amazon. Era como se não existisse qualquer outra forma de auto publicação. A maior parte deles havia começado auto publicar por volta de 2011, pouco depois do lançamento do Kindle no Reino Unido, que levou a um aumento da fome por e-books. O que haviam descoberto era que, manipulando o preço dos seus e-books para torná-los extremamente baratos (ou até mesmo gratuitos), podiam atrair uma grande quantidade de downloads, melhorando assim sua posição nas quantificações do Kindle e atraindo a atenção dos leitores. Isso então se transformou em auto sustentação.

Rebecca Carter é agente literária.
Rebecca Carter é agente literária.

Para todos apaixonados por ter livros estrangeiros em inglês – seja seus vendedores de direitos, tradutores ou autores – existe a tentação, quando encontram resistência dos editores, de tomar as coisas em suas próprias mãos. De alguma maneira, isso vem acontecendo já faz algum tempo. Os tradutores fazem muito lobby junto aos editores sobre livros em particular; autores e detentores de direitos encomendam longos excertos de tradução para convencer os editores a assumir os riscos; pequenas editoras independentes surgiram especializadas em tradução. Entretanto, nos últimos anos, aumentaram as oportunidades para o “faça você mesmo”. Em uma era na qual a editoração está se redefinindo, isso é tão excitante quanto desafiador.

A Amazon muda o jogo?

Voltemos a auto publicação da Amazon. Uma das muitas razões pelas quais me tornei agente literária (depois de quinze anos como editora na Random House) foi para ser capaz de experimentar novos meios de publicação – algo que era relativamente difícil como uma pequena engrenagem dentro de uma grande máquina corporativa. Um dos grandes problemas enfrentados pelos agentes literários hoje é em que medida eles se tornam “editores”, ou mesmo se devem fazer isso. Apesar de que, como agente, estar trabalhando com uma quantidade muito menor de autores que não escrevem em inglês do que quando era editora (meu foco principal agora é representar o que melhor se escreve em inglês), no entanto tenho alguns autores que precisam ser traduzidos. E este ano fiquei frustrada por não ter sido capaz de achar uma editora para um romance francês. O entusiasmo pela Amazon desses escritores em Harrogate era tentador. Eu tinha um bom relacionamento com o autor, o tradutor e o editor original desse romance francês. O que me impediria de sugerir uma experiência de auto publicação? Na verdade, naquele mesmo ano eu já tivera uma reunião com um representante do programa “White Glove” da Amazon – esquema com um nome sinistro para agentes ajudarem seus autores a auto publicar e comercializar seus livros na Amazon. Andei brincando com a ideia de tentar isso. Mas havia muitos impedimentos. Auto publicar romances policiais é uma coisa; ficção literária, outra. Aqueles autores de livros policiais confiavam em preços baixos e na popularidade do gênero para lhes oferecer uma plataforma online na qual pudessem começar a criar uma comunidade de fãs; mas eu não conseguia ver leitores de Kindle fazendo fila para, digamos, baixar a tradução de um romance chinês só porque tinha preço baixo ou era grátis. Seria muito mais difícil adquirir visibilidade. E isso antes de qualquer objeção ética ao potencial monopólio da Amazon.

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Machado de Assis Magazine – Número 2

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Foram divulgados ontem, dia 14, os nomes dos vinte autores que estarão presentes no segundo número da Machado de Assis Magazine – Literatura Brasileira em Tradução, co-edição da Fundação Biblioteca Nacional e do Instituto Itaú Cultural, e da qual sou o editor.

Foram 147 inscrições, dentre as quais o Conselho Editorial teve que selecionar vinte textos. Ou seja, apenas 13,6% dos inscritos podiam entrar.

Não é tarefa fácil, até porque, na abundância, o risco das escolhas é sempre maior. Ainda bem que a responsabilidade é dividida por todo o Conselho Editorial, que vota, com total liberdade, em quem deseja que participe da revista.

O trabalho prévio de análise do material a ser enviado aos conselheiros deve ser bem detalhado. Procura-se, principalmente, verificar se o livro tem existência legal – ou seja, se está registrado no ISBN, conforme o exigido pela Lei do Livro. E se o texto enviado faz parte de algum livro já publicado no exterior, principalmente em inglês, espanhol ou francês. No caso deste ano, também em alemão.

A questão é que a revista se destina a promover novas edições de autores brasileiros no exterior. Quem já está traduzido em algum desses idiomas já dispõe de um instrumento de trabalho para que agentes, editores e o próprio autor procurem novas traduções, em outros países. Não seria justo retirar a oportunidade de um autor não traduzido, privilegiando autores que já circulam no exterior.
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Publicar clássicos, exóticos e modernos no exterior

No dia treze de novembro passado, em Ouro Preto, fiz a mediação de uma mesa no Fórum das Letras, iniciativa de Universidade Federal de Ouro Preto que já está na sétima edição, e que é um dos mais interessantes festivais de literatura entre os que acontecem por aqui. A mesa foi sobre “Propostas para a Internacionalização da literatura Brasileira”, com a participação de Affonso Romano de Sant’Anna, ex-presidente da Fundação Biblioteca Nacional, dos agentes Nicole Witt e Jonah Strauss, da Alemanha e dos Estados Unidos, respectivamente, e do professor e tradutor Berthold Zilly, que já verteu pera o alemão Os Sertões de Euclides da Cunha e romances de Raduan Nassar.

Um dos pontos levantados na mesa foi a expectativa de editores estrangeiros de receber livros “exóticos”, quando se falava em literatura brasileira. Os agentes diziam que havia um trabalho adicional para mostrar a qualidade e os temas universais tratados por autores brasileiros.

Segundo o Index Translationum da UNESCO, entre os dez autores de língua portuguesa mais traduzidos, seis são brasileiros (os quatro portugueses são Saramago, Fernando Pessoa, António Lobo Antunes e Eça de Queiroz):

Paulo Coelho
Jorge Amado
Leonardo Boff
José Mauro de Vasconcelos
Clarice Lispector
Machado de Assis

Vejamos, por outro lado, a lista dos autores que tiveram livros solicitados para receber a bolsa de estímulo à tradução da Biblioteca Nacional, cujo primeiro resultado foi recentemente divulgado:

Poesia CompletaCarlos Drummond de Andrade
Gabriela, Cravo e CanelaJorge Amado
A Guerra no Bom Fim (por duas editoras) e Os Deuses de RaquelMoacyr Scliar
Sinfonia em Branco e Azul-CorvoAdriana Lisboa
Sombra SeveraRaimundo Carrero
O Movimento PendularAlberto Mussa
O Opositor e Os EspiõesLuís Fernando Verissimo
Black MusicArthur Dapieve
Elite da Tropa 2 Luiz Eduardo Soares, Claudio Ferraz, André Batista e Rodrigo Pimentel
Cidade LivreJoão Almino
Leite DerramadoChico Buarque
O Cemitério dos VivosLima Barreto
Mastigando HumanosSantiago Nazarian
O Livreiro do AlemãoOtávio Júnior
Método Prático de GuerrilhaMarcelo Ferroni
A Batalha do ApocalipseEduardo Spohr
Ravenalas (Poemas 2004-2008)Horácio Costa
Eles e ElasJulia Lopes de Almeida
Perto do Coração Selvagem e Laços de FamíliaClarice Lispector
Litro Magazine Brazil Issue 2012 – Vários autores
Mensagem Para VocêAna Maria Machado
Várias HistóriasMachado de Assis
Se eu fechar meus olhos agoraEdney Silvestre

Ou seja, vinte e dois autores e uma antologia. Dos quais, apenas dois estão na lista dos mais traduzidos: Machado e Clarice Lispector.

Se examinarmos esses títulos a partir da rubrica “exotismo” começamos a nos complicar. Jorge Amado já foi acusado (o verbo é proposital) de exótico. Hoje sua posição na literatura brasileira está mais próxima da de um “clássico”, ainda que, para um olhar estrangeiro, seus personagens tenham um sabor único. Mas, sabor por sabor, e exotismo, recentemente Benjamin Moser, o biógrafo e coordenador das traduções ao inglês de Clarice Lispector chamava atenção para o caráter exótico das construções da nossa estimada escritora… A “batalha do Apocalipse”, do Eduardo Spohr? Eu poderia até dizer que é um romance exótico, mas o exotismo ali está longe de ser “brasileiro”. “O livreiro do Alemão” e “Elite da Tropa 2” são “exóticos”? Tanto quanto o “Livreiro de Cabul” ou qualquer relato sobre violência policial, seja nos Estados Unidos ou na Uganda. O “exótico”, definitivamente, é um conceito difícil de trabalhar.

Se voltarmos aos autores da lista da UNESCO, a coisa também não é fácil. Paulo Coelho é tão exótico que nem brasileiro é considerado pela maioria dos seus leitores. Afinal, peregrinos, mensageiros das luz e similares pertencem mais à esfera do extraordinário do que do “exótico”. Já falei do Jorge Amado e da Clarice Lispector. O que dizer do frade? Francamente, não sei em que escaninho de exotismo coloca-lo. José Mauro Vasconcelos? A crítica o execrou, na época, não por exótico, mas por água-com-açúcar, sentimentalismo. Continua sem reconhecimento crítico, mas para muitos leitores no exterior ele mostra “uma comovente visão da realidade brasileira” (Ouvi isso há um mês, na Galiza… e da boca de uma autora experimental!). Sobra o Machado de Assis. Definitivamente, um exótico. Só um dessa espécie produziria a literatura que ele escreveu no Brasil do Século XIX.

Ou seja, basta nos aproximarmos com mais cuidado do assunto e verificamos uma percepção bem mais complexa e diversa da literatura brasileira.

Mas existe outra abordagem possível. Considerar que a lista da UNESCO reflete, de alguma maneira, uma consagração internacional. Ou seja, mais traduzidos, mais consagrado.

Examinemos o Index da UNESCO para ver o que acontece com outros idiomas.

Os dez autores mais traduzidos do inglês: Agatha Christie, Shakespeare, Enid Blyton (vocês já ouviram falar? Eu, não), Barbara Cartland, Danielle Steel, Stephen King, Mark Twain, Conan Doyle, Nora Roberts e Jack London.

Os dez autores mais traduzidos do francês: Jules Verne, Alexandre Dumas, Geoges Simenon, René Goscinny, Balzac, Charles Perrault, Saint-Exupéry, Albert Camus, Hergé e Victor Hugo>.

Do espanhol: Gabriel Garcia Márquez, Isabel Allende, Mário Vargas Llosa, Cervantes, Jorge Luis Borges, José Maria Parramón Vilasaló (é autor de manuais de desenho artístico!), Federico Garcia Lorca, Pablo Neruda, Júlio Cortázar, Manuel Vasquez Montalbán.

O resultado é mesmo uma salada. Provavelmente indigesta para muita gente. E que reflete determinados momentos do gosto da população.

Diante dessa salada, dessa geleia geral, o que pode orientar um gestor de políticas públicas, seja para a aquisição de acervos para bibliotecas públicas, seja para conceder bolsas de auxílio para a tradução?

É uma pergunta que aparece sempre. Há os que defendem, por exemplo, um “critério de qualidade” para seja lá o que se faça – aquisição de livros ou outorga de bolsas para a tradução. Critério, é claro, que corresponda ao seu. Quem defende “qualidade” está sempre defendendo o seu conceito de qualidade, assim como seu conceito de exotismo. E existe até mesmo quem diga que, no caso de bolsas para a tradução, que se adote o critério exatamente inverso ao da popularidade. Por exemplo, não dar bolsas para a tradução do Jorge Amado, ou para o Carlos Drummond de Andrade. O primeiro tá na cara: além de exótico, é popular. O segundo? No lo sé. Só quem pode dizer é quem defende essa proposta.

O fio da navalha sobre o qual caminha o gestor de políticas públicas é afiado. Manter a postura de que é democrático garantir que sejam atendidas as demandas do público pagante de impostos e ao mesmo tempo desenvolver ações proativas de inclusão é difícil. Caminhar na linha entre os que defendem interesses específicos e a atenção às demandas que surgem traz o risco de levar pancada de quem quer que se ache dono de verdades. De qualquer verdade. Verdades pessoais, mas que sempre são apresentadas como universais.

O português brasileiro no mundo e a tradução.

A tradução é um grande fator de consolidação e expansão das línguas literárias. Mesmo depois de sua consolidação – geralmente por um processo político, mas que inclui em muitos casos a cristalização em uma grande obra literária – o enriquecimento dos idiomas sempre se dinamiza com a polinização feita pelas traduções. No caso das línguas neolatinas, deu-se a necessidade de traduzir os textos originários do latim, que em muitos casos já eram traduções do grego, e mais ainda, traduções feitas através do árabe. No caso do inglês e do alemão as respectivas traduções da Bíblia foram fator importantíssimo na cristalização dos respectivos idiomas. As traduções de Lutero e a do Rei Jaime introduziram e consolidaram muitas palavras e expressões que, paulatinamente, se tornaram comuns no alemão e no inglês.

No decorrer da história, algumas circunstâncias políticas, econômicas e sociais fazem que, em um determinado período, alguns idiomas assumam um papel predominante. No início do mundo moderno o português e o espanhol assumiram esse papel, e espalharam vocábulos pelo mundo afora. Mais tarde foi a vez do francês, a língua da diplomacia, talvez a primeira – depois da eliminação do latim – a se tornar “língua franca” no chamado Ocidente. Finalmente o inglês, impulsionando primeiro pelo Império Britânico e depois pela preponderância econômica e militar dos Estados Unidos, assumiu esse papel.
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