No Seminário sobre a experiência francesa de aplicação do sistema de preço fixo, no último dia 3 de maio, no auditório da Livraria Martins Fontes Paulista, os presidentes das entidades ligadas ao livro – Bernardo Gurbanov (ANL), Marcos Pereira (SNEL) e Luis Antonio Torelli expressaram uma posição comum, mencionando a necessidade de “um pacto” das entidades para que, mesmo antes da eventual aprovação do projeto da senadora Fátima Bezerra, essa medida de defesa da cadeia produtiva entrasse em vigor.
Não é a primeira vez que se fala no tal pacto. Mas, até agora, que se saiba, tudo não passou de vento quente. Não há nenhuma proposta concreta na mesa. E pactos se fazem a partir de propostas, colocadas preto no branco, em torno das quais as partes possam chegar a um consenso.
Minha surpresa, no decorrer do encontro, foi verificar que os franceses, além da legislação, já avançaram muito para que as práticas comerciais entre os membros da cadeia do livro ocorram de forma mais harmônica e tendo como parâmetro – para além da imprescindível necessidade de cada setor ganhar dinheiro – o desenvolvimento do mercado e a promoção do livro e da leitura junto ao grande público.
O evento foi realizado pelo Escritório Internacional da Edição Francesa (BIEF) e pelo Escritório do Livro da Embaixada da França no Brasil, com patrocínio das três entidades.
Dados seus recados, antes do intervalo para almoço, os três dirigentes foram cuidar da vida, enquanto o seminário continuava com uma plateia menos concorrida.
A sessão matutina já havia destacado alguns pontos importantes na experiência de aplicação da chamada Loi Lang. Jean-Guy Boin, do BIEF (Bureau International de l’Édition Française), assinalou que “em um mercado maduro, como o francês”, ao contrário do que diziam os detratores da lei, os preços subiram menos que a inflação em todo o período de vigência da legislação. Esse, evidentemente, é um ponto importante a ser sempre destacado. Entretanto, assinalou M. Boin, a necessidade de explicar isso para o público é permanente. Até hoje (e particularmente depois do crescimento da Amazon) aparecem clientes que perguntam aos livreiros porque não existem descontos, como em outros países.
Quando a lei foi aprovada (1981), tanto o Ministério da Cultura francês quanto as entidades de editores e livreiros desenvolveram campanhas explicando a medida, com a presença de formadores de opinião, não apenas escritores, como personalidades de várias áreas. Foi muito enfatizada a importância da lei para a garantia de bibliodiversidade e para uma oferta mais ampla de títulos, que escapassem da lógica imediata dos best-sellers. A concorrência se transferiu para a qualidade do serviço prestado pelas livrarias.
Philippe Touron, que dirige as livrarias pertencentes à Gallimard (quatro, inclusive uma em Paris), mostrou como o encerramento da guerra de preços permitiu aos livreiros se concentrar na questão das margens de comercialização praticadas entre editores, livreiros e distribuidores, o desconto, e no serviço, inclusive na variedade de ofertas e especialização das livrarias. Segundo Touron, a Loi Lang permite uma transparência muito grande na análise do desempenho econômico da loja, o que destaca a exigência de profissionalização e, nisso, o equilíbrio entre a administração do estoque, oferta e os aspectos econômicos da rentabilidade da livraria. A formação do pessoal para o atendimento passa a ter um peso cada vez maior, inclusive pelo fato das livrarias “de qualidade” criarem best-sellers no boca a boca, uma tarefa do atendimento. Enfim, para além do “preço fixo” praticado junto aos compradores finais, existe o funcionamento da chamada cadeia do livro.
O ponto mais interessante do seminário, entretanto, aconteceu à tarde, depois que os senhores defensores do pacto já haviam se retirado. Para mim, o ponto alto foi a sessão de descrição do protocolo de acordo sobre as práticas comerciais das editoras junto às livrarias. Esse protocolo nasceu de uma exigência da própria Loi Lang, que determina, em seu artigo 2. que “as condições de venda estabelecidas pelo editor ou importador, aplicando uma tabela de desconto sobre o preço de venda ao público, levem em consideração a qualidade dos serviços prestados pelos varejistas para a difusão do livro. Os descontos correspondentes devem ser superiores aos que resultem da importância das quantidades adquiridas por cada varejista”.
Ou seja, a Loi Lang não apenas prevê um preço fixo para o consumidor final, como estipula que os descontos para as livrarias levem em consideração os serviços prestados. E o tal protocolo estabelece parâmetros para a definição disso. Foi assinado pelo Syndicat de la Librairie Française (livreiros), Syndicat National de l’Édition (editores) e pelo Syndicat des Distributeurs de Loisirs Culturels (que representa as grandes superfícies, inclusive a FNAC). Em resumo: toda a cadeia de comercialização do livro. Antes de entrar no conteúdo, assinale-se que o protocolo cria uma comissão de acompanhamento, com representantes de todas as partes. Aqui o texto integral do protocolo, e aqui o link para o anexo que regula a comissão de acompanhamento. Observe-se que a versão mais recente dos documentos é de 2008.
Passemos em vista, rapidamente, alguns dos critérios estabelecidos para essas relações comerciais.
Como critérios obrigatórios estão listados quatro pontos: aceitação de encomendas por unidade; competência do pessoal; relação do livreiro com seus fornecedores e as ações de animação (promoção do livro) de iniciativa dos livreiros. No primeiro caso, trata-se da obrigação da livraria de aceitar encomendas de qualquer título disponível editado na França. A definição é ajudada pelo sistema Electre, banco de dados que é uma espécie de “books in print” francês, mantida pela Libres Hebdo. Veja aqui o link. O segundo critério exige a “presença de pessoal suficientemente numeroso… e que tenha recebido formação, interna ou externa, como livreiro. A qualidade da equipe de venda reforça tudo que diz respeito ao atendimento, aconselhamento do público”. O terceiro ponto exige que o livreiro se disponha a atender os representantes das editoras, sem restrições, e ouvi-los com atenção, e “essa entrevista deve resultar, depois da apresentação e argumentação, em uma decisão sobre compra”. O quarto critério diz respeito ao conjunto das ações de promoção do livro, que incluem autógrafos de autores, propostas temáticas “múlti editoriais”, organização de prêmios literários, manutenção de estandes fora da livraria e reuniões de informações com bibliotecários, recepção de alunos, etc.
Além dos critérios qualitativos obrigatórios, estão listados mais seis critérios complementares. E são bem interessantes.
O primeiro desses critérios complementares trata do estoque de fundo da livraria, e diz que “o volume dos títulos reabastecidos em relação aos títulos em novidades é um indicador capital da capacidade do livreiro de difundir o trabalho dos editores, acompanhando assim a duração da vida das novidades e a renovação do catálogo de fundo. Esse critério se relaciona diretamente ao que trata do fundo de catálogo, onde se especifica que este é uma prioridade dos editores e seus autores. Os livreiros que apresentem, difundam e vendam uma parte significativa do catálogo contribuem positivamente para a diversidade editorial que é o próprio fundamento da atividade da livraria. Consequentemente, espera-se que existam, nas livrarias, uma porcentagem de títulos do catálogo do editor, “definido por este ou pelo distribuidor”, levando em consideração a natureza do estoque, em relação ao tamanho e à especificidade da livraria. A composição do desconto, portanto, está diretamente vinculada à diversidade do catálogo de fundo em exibição.
É também estimulada a presença de ferramentas de pesquisas bibliográficas atualizadas, de modo a permitir aos clientes pesquisas a serviço de seus interesses.
Entretanto, as novidades também são consideradas dentro dos critérios complementares, considerando-se a afiliação das livrarias ao serviço de novidades das editoras (suponho que seja algo parecido à antiga “cota novidades”, mas não tenho certeza), embora o editor ou distribuidor não possa impor a um livreiro a aquisição de todos os títulos lançados.
Os dois critérios complementares seguintes dizem respeito ao trabalho promocional do livreiro. “O papel de recomendação do livreiro”, como um trabalho de promoção das obras de criação “para além de seu papel escolar, técnico ou universitário”, de modo que o livreiro contribua para a difusão da criação. Esse critério se combina com o que estabelece ações de promoção propostas por editores e distribuidores: campanhas nacionais, regionais ou locais organizadas por estes. Evidentemente os editores e distribuidores devem levar em consideração a natureza e o tamanho das livrarias quando propuserem tais campanhas. O último critério diz respeito às ferramentas profissionais disponíveis aos livreiros (empregados), de modo a facilitar o envio de informação, e também para que os estes contribuam para o aperfeiçoamento da cadeia do livro.
Pelo menos três desses critérios complementares devem ser tomados em consideração no estabelecimento das condições gerais de venda entre livreiros e editores/distribuidores. E um critério qualquer, seja obrigatório ou facultativo, não pode representar sozinho mais que 25% do conjunto do potencial de desconto qualitativo.
O desconto final, portanto, é constituído por um desconto de base e descontos adicionais atribuídos segundo os critérios qualitativos. Finalmente, descontos adicionais também serão atribuídos segundo critérios quantitativos, ainda que estes últimos não possam ser superiores aos critérios qualitativos.
Evidentemente essa prática se alcança através de negociações diretas entre editoras/distribuidoras e livrarias. É claro que isso nem sempre acontece sem conflitos, tanto que se cria uma comissão de acompanhamento que procura estabelecer ou restabelecer o diálogo e o entendimento entre as partes.
A intervenção de Philippe Touron ainda abordou outros aspectos bem interessantes sobre a importância da diversidade da oferta, mesmo para livrarias mais especializadas. A diversidade é um fator de atração da clientela, mesmo que esta busque títulos especializados.
Enfim, foi uma experiência muito rica. Pena que não tenha sido gravada, de modo que pudesse servir de base para programas de formação de nossos livreiros (donos e empregados), para que as experiências se generalizassem mais. E é certo que muitos dos pontos levantados serviriam muito bem como um roteiro para o estabelecimento desse bendito pacto, que criasse condições comerciais mais civilizadas (e mutuamente proveitosas) entre editores, distribuidores e livreiros, e contribuísse de modo eficaz na promoção do livro e da leitura em nosso país.
Mas isso é querer demais das entidades do livro e de um mercado editorial que evidentemente não é tão maduro quanto o francês. Ou não?
Os dirigentes das entidades devem ter ido embora porque já sabem tudo…Essa história rola há uns 30 anos. Primeiro é preciso termos um mínimo de união de classe que não existe e depois entidades representativas que realmente nos representem.