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EM LOUVOR ÀS BIBLIOTECAS PÚBLICAS

Há alguns dias li, na New York Review of Books/ uma resenha escrita por Sue Halpern sobre um tema que me é muito caro, o das bibliotecas. Já havia visto o documentário Ex Libris, sobre a biblioteca pública de Nova York, dirigido por Frederick Wiseman em projeção no Instituto Moreira Salles, e depois encomendei o DVD. Só está disponível na loja da Amazon nos EUA ou na produtora ExLibris Films – One Richdale Av., Unit 4, Cambridge, MA 02140 – EUA.

O título do primeiro livro resenhado foi o que me enganchou: Palaces for the People: How Social Infraestructure Can Help Fight Inequality, Polarization and the Decline of Civic Life (Palácios para o Povo: Como a Infraestrutura Social pode Contribuir para a Luta contra a Desigualdade, Polarização e o Declínio da Vida Pública), por Eric Klinenberg. O título descreve sucintamente a minha percepção sobre o papel das bibliotecas públicas, centros culturais e outros locais nos quais o público tem acesso (na maioria das vezes gratuito) à informação, à cultura e ao divertimento. R$ 82,76 no formato Kindle na Amazon, em inglês.

O último título resenhado, The Library Book, por Susan Orlean, é uma história sucinta da Biblioteca Pública de Los Angeles que sofreu um enorme incêndio em 1976, o qual destruiu mais de 400.000 mil livros e danificou outros 600.000. A biblioteca foi reconstruída, boa parte dos livros danificados foi recuperada e as acomodações ampliadas, tornando-a novamente uma das maiores bibliotecas públicas dos EUA. Pode ser adquirido em inglês e em e-book na Amazon.

Escrevi para Sue Halpern, que gentilmente autorizou a tradução e a publicação da resenha.



EM LOUVOR ÀS BIBLIOTECAS PÚBLICAS – Sue Halpern

Anos atrás morei em uma remota cidade montanhosa que jamais havia tido uma biblioteca pública. O município tinha uma das maiores áreas do Estado de Nova York, mas a população era pequena, alguns milhares de habitantes espalhados em mais de quinhentos quilômetros quadrados. Na época em que eu e meu marido nos mudamos para lá, a cidade havia perdido boa parte de sua base econômica – no século XIX foi sede de vários curtumes e moinhos – e nossos vizinhos em sua maioria tinham empregos sazonais, se tivessem. Quando a biblioteca móvel do sistema regional foi descontinuada, a cidade não tinha acesso fácil a livros. O conselho municipal propôs um pequeno aumento de impostos para financiar uma biblioteca, algo em torno de dez dólares por família. A proposta foi rotundamente rejeitada. O sentimento dominante parecia ser “deixe as coisas como estão” e “quem precisa de livros?”. E um sujeito declarou que “bibliotecas são comunistas”.

Mas o conselho municipal armou algumas maquinações e conseguiu extrair quinze mil dólares do orçamento geral e nomeou a mim e dois professores aposentados – para, de alguma maneira – transformar esses recursos em uma biblioteca de empréstimo. Tínhamos cerca de três mil livros emprestadas pelo sistema regional de bibliotecas, que estavam enfiados em uma sala nos fundos da prefeitura. Fomos informados pelas bibliotecárias do sistema que, se conseguíssemos quinhentos associados em um ano, podíamos prosseguir. Levamos três semanas para conseguir isso. Nosso bibliotecário, cujo trabalho anterior era cuidar de um sebo, revelou-se um mestre em convencimentos, até mesmo junto aos lenhadores e trabalhadores de manutenção das estradas, que traziam seus filhos para a hora de contação de histórias e saiam com romances que ele escolhia para eles, que depois voltavam sozinhos para retirar outros. Os livros estavam sendo retirados aos montes e havia filas no balcão de atendimento. As crianças especialmente, mas também os adultos, não acreditavam que tudo era grátis.

A Biblioteca Central de os Angeles incendiou em 1986

No final do ano já tínhamos cerca de 1.500 inscritos, e havia um clube de livros, uma hora de contação de histórias para a pré-escola, filmes à noite e um grupo de leitura de peças teatrais. Alunos da escola pública, muitos dos quais não tinham Internet em casa, vinham à tarde para fazer as tarefas escolares. As pessoas entregavam livros nas mãos de estranhos, que não permaneciam estranhos por muito tempo. Um sábado, quando eu observava tecelãs de cobertores trocando padrões em uma mesa e crianças esvaziando as prateleiras dos livros da série Magic School Bus, e correndo para o balcão de empréstimos, me ocorreu que o sujeito que disse que as bibliotecas eram comunistas tinha razão. Uma biblioteca pública é dedicada aos ethos do compartilhamento e da igualdade. Não julga. E desse modo se contrapõe ao materialismo e individualismo que, por outro lado, define nossa cultura. Ela é desafiadora, orgulhosamente comunitária. Até mesmo nossa pequena sala com estantes e mobília desencontrada e tapete gasto era, como nos lembra o sociólogo Eric Klinenberg, palácios para o povo, como uma vez as bibliotecas foram chamadas.

Klinenberg está interessado nas maneiras como espaços comunitários podem corrigir nossa vida cívica turbulenta e polarizada. E ainda que argumente em seu novo livro, Palaces for the People, que playgrounds, clubes esportivos, botecos, parques, feiras de produtores e igrejas – qualquer coisa, na verdade, que coloque as pessoas em contato próximo umas com as outras – têm a capacidade de fortalecer aquilo que Tocqueville chamou de linhas cruzadas que nos ligam com aqueles que muitas vezes e de várias maneiras são diferentes de nós, ele sugere que as bibliotecas talvez sejam as mais eficientes. “Bibliotecas são lugares onde pessoas comuns, com formações, paixões e interesses distintos podem fazer parte de uma cultura democrática viva”, escreve. No entanto, como observa Susan Orlean em seu encômio às bibliotecas de todos os lugares, e que é adequadamente intitulado The Library Book, o “caráter público da biblioteca pública é uma característica cada vez mais rara. Cada vez é mais difícil pensar em lugares que dão boas vindas a todos e nada cobram por esse cálido abraço”.

Como assinala Klinenberg:

“Infraestrutura” não é um termo convencionalmente usado para descrever o que é subjacente na vida social…

[mas]

se os estados e as sociedades não reconhecerem a infraestrutura social e como esta funciona, fracassarão em perceber um modo poderoso de promover o engajamento cívico e a interação social, tanto dentro das comunidades como acima das afinidades grupais”.

Para vislumbrar o que ele quer dizer, só é preciso mergulhar nas três horas e dezessete minutos do documentário épico e inspirador de Frederick Wiseman, Ex Libris, um pitoresco percurso no maior de todos os palácios do povo: o sistema de Bibliotecas Públicas de Nova York, uma coleção de noventa e dois ramais com dezessete milhões de frequentadores por ano (e milhões a mais online).

Wiseman aponta suas lentes para o quotidiano (pessoas fazendo fila para entrar no edifício central ou folheando livros), o obscuro (a voz de um ator gravando um livro para cegos), e o singular (Khalil Muhammad[1] discutindo o Centro Schomburg de Pesquisa da Cultura Negra, um dos ramais do sistema), e sem dizer explicitamente (o filme não tem narração), mostra como a BPNY é um caso exemplar do que é uma biblioteca e o que esta pode fazer. Vemos bibliotecários ajudando estudantes com tarefas de matemática, apresentando feiras de empregos, ensinando braile, dando aulas de alfabetização e cidadania e patrocinando conferências. Vemos pessoas usando computadores, pontos de WiFi e, é claro, livros. São brancos, negros, morenos, asiáticos, jovens, sem teto, não tão jovens, surdos, mudos, cegos; eles são todos, o que simplesmente é a questão. Se você quiser entender a razão pela qual o governo Trump eliminou as verbas para bibliotecas nas propostas orçamentárias de 2018, 2019 e 2020, isso é mostrado nesse filme: as bibliotecas públicas derrubam os muros que existem entre nós.

E isso é de propósito. Uma declaração feita pela Associação de Bibliotecas Públicas em 1982, intitulada “A Biblioteca Pública: Um Recurso da Democracia”

A biblioteca pública é uma de nossas instituições singulares. Apenas a biblioteca pública proporciona um ambiente aberto e sem preconceitos no qual os indivíduos e seus interesses se encontram com o universo das ideias e da informação… O uso que se faz dessas ideias e informações é tão variado quanto os indivíduos que as procuram. As bibliotecas públicas oferecem acesso livre às suas coleções e serviços para todos os membros da comunidade sem distinção de raça, cidadania, idade, educação, situação econômica, ou qualquer outra qualificação ou condição.

Acesso livre às ideias e informações, um pré-requisito à existência de uma cidadania responsável, é tão fundamental para os Estados Unidos quanto os princípios de liberdade, igualdade e direitos individuais.

O público ama a biblioteca pública. Klinenberg cita um estudo de 2016 do Pew Research Center mostrando que mais de 90 por cento dos americanos considera a biblioteca ser “muito” ou “de algum modo” importante para suas comunidades. Os pesquisadores da Pew descobriram também que metade de todos os americanos com mais de dezesseis anos de idade usaram as bibliotecas no ano anterior. Mesmo assim, as bibliotecas são frequentemente alvos convenientes para os cortes orçamentários. Depois da crise financeira, nos anos 2008-2013 por exemplo, a cidade de Nova York eliminou 68 milhões de dólares do orçamento operacional da Biblioteca Pública de Nova York, o que resultou numa diminuição dramática das horas de trabalho dos funcionários e no orçamento de aquisições. (Uma boa parte do Ex Libris é dedicada à filmagem de intensas discussões sobre orçamentos). Mas não foi apenas a Biblioteca Pública de Nova York que sofreu. Um estudo da American Library Association (Associação dos Bibliotecários) por volta da mesma época, constatou que houve cortes no financiamento de bibliotecas em vinte e um estados.

Isso já aconteceu antes, e acontece agora: bibliotecas, que são sustentadas por recursos locais, estaduais e federais, assim como por doações particulares, são cronicamente subfinanciadas e sujeitas aos caprichos de políticos e filantropos. Em uma carta de 1972 publicada nesta revista, um grupo de acadêmicos e escritores que incluíam Hannah Arendt, William Buckley, Ralph Ellison e Betty Friedan, entre muitos outros, denunciou os cortes no orçamento que prejudicavam os serviços na sede da Biblioteca Pública de Nova York:

O Ramal Central da Biblioteca Pública de Nova York

Houve um momento em que as portas da biblioteca estavam abertas ao público durante treze horas por dia, nos 365 dias do ano; assim o trabalhador, os que não tinham capacitação os pesquisadores sem afiliação acadêmica podiam usar amplamente e de forma anônima, sem nenhum custo, as riquezas das coleções de obras de referência. Há um ano, entretanto, a crise financeira da Biblioteca forçou o fechamento da divisão de referência às seis da tarde, e o fechamento completo nos fins de semana e feriados.

Os signatários pediam aos leitores que contribuíssem para as coleções de pesquisa e referência. A carta saiu sob o título “Crise na Biblioteca Pública de NY”. (A sede atualmente abre durante quatro horas aos domingos; a maioria dos ramais menores é fechada nesse dia).

Em 2008, o bilionário de fundos de investimento Stephen Schwartzman doou 100 milhões de dólares para as estranguladas finanças da biblioteca. O edifício estilo Beaux Arts, o primeiro e principal da biblioteca, localizado na esquina da Quinta Avenida com a rua 42, que abriu em 1911 e levou dezesseis anos para ser terminado, a um custo de 9 milhões de dólares (mais 20 milhões pelo terreno), agora leva seu nome. Cem milhões de dólares é um monte de dinheiro, mas se apequena em comparação com a filantropia  de Andrew Carnegie, o santo padroeiro das bibliotecas (e um dos barões da industrialização dos EUA), cuja generosidade de 55 milhões de dólares – equivalentes a 1.6 bilhões de dólares de hoje – financiou 2.509 bibliotecas pelo mundo a fora, das quais 1.679 bibliotecas públicas nos Estados Unidos, entre 1886 e 1919. Sessenta e sete destas estavam na cidade de Nova York, dezesseis das quais ainda abertas.

Rose Reading Room, o principal salão de leitura da BPNY

A devoção de Carnegie pelas bibliotecas era antiga. Seu pai ajudou a fundar a Tradesmen`s Subscription Library em Dunfermline, Escócia, onde era tecelão e membro do derrotado movimento Cartista[1]. Quando a industrialização liquidou com seu emprego, a família emigrou para a área de Pittsburg e, aos treze anos, depois de apenas cinco anos de escolarização formal, Carnegie começou a trabalhar, inicialmente como carregador de bobinas em uma fábrica de algodão e depois como mensageiro para uma companhia de telégrafo. Os jovens trabalhadores tinham permissão para retirar um livro por semana da biblioteca particular do Coronel James Anderson, um bem-sucedido fabricante local de ferro e veterano da Guerra de 1812. Carnegie escreveu em sua autobiografia:

Foi a partir de minhas primeiras experiências que decidi que não havia dinheiro mais bem empregado e produtivo para moços e moças que tivessem o bem dentro de si, habilidade e ambição para desenvolvê-lo, que o financiamento de uma biblioteca pública em uma comunidade que estivesse disposta a mantê-la como instituição municipal. Tenho certeza que o futuro das bibliotecas que tive o privilégio de financiar provará a correção dessa opinião.

A primeira biblioteca de Carnegie em Braddock, Pennsylvania, foi construída cerca de cem anos depois da fundação da primeira biblioteca pública do que mais tarde seriam os Estados Unidos. Em 1790, os residentes de Franklin, Massachusetts, escolheram permitir a circulação gratuita entre seus residentes de uma coleção de livros doadas à cidade pelo seu xará, Benjamin Franklin. Ao fazer isso, escolheram não seguir o exemplo de Franklin: em 1731 ele fundou uma biblioteca de subscrições na Filadélfia. Massachusettes também foi o local do primeiro grande sistema de bibliotecas públicas, o de Boston, fundado em 1854. A biblioteca que Carnegie fundou em Braddock era diferente dessas, já que tinha um teatro de 964 poltronas, com cortina de veludo, uma quadra de basquete e uma piscina. Sua missão era exercitar tanto o corpo quanto a mente. Nos dias de hoje, a biblioteca de Braddock, um edifício imponente, com torreão, construída no alto de uma colina acima da siderúrgica fechada de Carnegie, está danificada, e um grupo está tentando levantar 10 milhões de dólares para reformá-la – não de uma pessoa de grande riqueza, mas com um bilhão de centavos doados pelo público. (Até agora conseguiram 40 mil dólares).

A primeira biblioteca construída por Carnegie – hoje deteriorada.

As bibliotecas de Carnegie se estendem por todo o país, e as 106 do Estado de Nova York são eclipsadas por 142 na Califórnia. Seis dessas estavam em Los Angeles, uma cidade com pouco mais de cem mil habitantes no começo do Século XX, quando Carnegie fez suas doações; três ainda estão funcionando. Nenhum dinheiro de Carnegie contribuiu para o que se tornou a Biblioteca Central da cidade. Fundada em 1872 como organização financiada pela anualidade de cinco dólares paga por seus membros, o que era inacessível para a maior parte dos cidadãos, mas que em 1933 já circulava mais livros que qualquer outra biblioteca do país.

Orlean documenta com agilidade esse crescimento fenomenal, voltando para trás desde o estrépito do incêndio da Biblioteca Central em 1986, enquanto percorre a biblioteca como ela é hoje, “uma máquina intrincada, uma engenhoca de rolamentos que zumbem”. Ao fazer isso, consegue no papel o que Wiseman faz no filme: familiarizar o leitor com a verdadeira infraestrutura da biblioteca – o departamento de circulação que envia 32.000 livros diariamente para todos os cantos da cidade; as coleções de fotografia e mapas; os bibliotecários da área de referências disponíveis para responder perguntas, por exemplo, sobre Pussy Riot, etiqueta de obituário e o tempo de vida dos papagaios; os membros da equipe que ensinam crianças a codificar e ligam usuários sem-teto com serviços muito necessários – e revela assim a extensão desse valioso recurso comunitário e um exemplo perfeito do que Klinenberg está falando quando louva os benefícios da infraestrutura social.

Quando a Biblioteca Central de Los Angeles incendiou, o prédio ardeu a mais de 1.000 0C durante sete horas. Mais de quatrocentos mil livros foram destruídos, entre os quais toda a coleção de peças americanas e inglesas da biblioteca, todos os livros sobre a Bíblia e a história da igreja; 45.000 obras de literatura, 18.000 livros de ciências sociais, 12.000 livros de culinária, todos os livros sobre pássaros, 5,5 milhões de patentes registradas que datavam desde 1799, e muito mais, nada disso coberto por seguro. Orlean busca, de modo ligeiro, revelar o mistério de quem – se foi alguém – começou o incêndio, e por que razão. Queimar livros, do seu ponto de vista, é um tipo de genocídio, um modo de apagar a memória coletiva de um povo: Mao (ele mesmo bibliotecário), os nazistas, os frequentadores dos festivais de queima de livros durante a Inquisição espanhola, e no ano passado um fanático religioso que queimou uma quantidade de livros LGBTQ infantis que havia retirado de uma biblioteca pública de Iowa – todos envolvidos em “libricídio” para incinerar ideias e apagar grandes trechos da história. Se o incêndio na Biblioteca Central foi deliberado, com que objetivo?

Como outros que investigaram o incêndio, Orlean mira principalmente em um ator desempregado e vagabundo chamado Harry Peak, que pode ou não ter estado no edifício na manhã do incêndio, deu um encontrão em uma pessoa correndo para fora do prédio, sendo o jovem colocado para fora da sala dos bibliotecários onde havia se servido de um copo de café, ou ser o mesmo jovem que foi mandado para fora de áreas restritas da biblioteca, e ser o jovem louro do desenho feito por um artista da polícia depois de ouvir descrições da pessoa que havia feito tais coisas. Incêndio proposital é algo difícil de determinar, especialmente em um edifício já antigo, conhecido por ter problemas de fiação, e Peak, que morreu em 1993, resultou ser um narrador definitivamente não confiável. Alegou mais de uma vez que esteve na biblioteca naquela manhã, e em outras ocasiões afirmou que nem chegou perto dali. Seus álibis mudavam e mudavam novamente, o que provocou pouca surpresa em quem o conhecia (sua irmã disse que ele era “o maior mentiroso do mundo”), mas desconcertaram os investigadores policiais, que fracassaram espetacularmente na acusação, prendendo-o, mas tendo que soltá-lo por falta de provas.

A despeito de seus melhores esforços, Orlean, também, foi incapaz de solucionar o caso. “O incêndio da Biblioteca Central me confundiu”, escreve. “Por mais que tentasse, não consegui me convencer totalmente de que Harry iniciou o incêndio”. Para os leitores entretidos com as peregrinações de Peak, isso tem pouca consequência. A história dele é apenas um adendo a um mistério maior e mais fascinante: como uma biblioteca cresceu a partir de quase nada para se tornar, como sugere seu nome, central para os residentes da segunda mais populosa cidade do país, emprestando mais de 900.000 livros por ano, respondendo a seis milhões de consultas de referência, e dando boas-vindas a 700.000 usuários. Essa noz é deliciosamente quebrada por Orlean.

Saguão central da Biblioteca Central de Los Angeles, reconstruída depois do incêndio.

O crescimento da Biblioteca Central espelha o crescimento de Los Angeles. Em 1873, quando a biblioteca por assinatura foi aberta, Califórnia tinha menos de vinte e cinco anos como estado e Los Angeles uma população de menos de 11.000 pessoas. Em 1904, a população havia se multiplicado por dez e a biblioteca circulava aproximadamente 800.000 livros por ano. Pouco mais de vinte anos depois, quando o número de residentes ultrapassou meio milhão, mil livros eram retirados a cada hora, cerca de três milhões por ano. Realmente, representadas em conjunto em um gráfico, os números do crescimento demográfico e os da circulação de livros são praticamente paralelos. Se isso parece óbvio, é apenas porque agora assumimos a importância das bibliotecas e seus serviços para todos os membros da comunidade.

O que torna única a Biblioteca Central e sua história tão interessante, são as pessoas que a conduziram através de sua metamorfose. Muitas foram mulheres, muito antes que a profissão de bibliotecária se tornasse predominantemente feminina. Orlean apresenta os leitores à Mary Foy que, em 1880, com dezoito anos de idade, assumiu a direção da antecessora da Biblioteca Central, a biblioteca por assinaturas que na época não permitia que mulheres tirassem livros emprestados e as relegava a uma separada “Sala de Senhoras”. Duas bibliotecárias a sucederam e depois uma terceira: uma repórter de Ohio chamada Tessa Kelson, uma mulher de cabelos curtos, fumante, que na época foi descrita como “fora dos padrões”.

Kelso teve a visão de antecipar a biblioteca tal como agora a conhecemos, imaginando-a não apenas como o repositório de livros, como também de material esportivo, jogos de mesa e “toda a parafernália para uma diversão saudável… que está fora do alcance da média dos rapazes ou moças”. Antes que ela pudesse tornar realidade sua visão, foi demiti por acrescentar à coleção o romance Le Cadet, do autor francês Jean Richepin, considerada maliciosa por alguns dos árbitros da moralidade da cidade. Ela processou um deles por calúnia, um ministro metodista chamado J. W. Campbell, e apesar de ter vencido (a igreja fez acordo), ainda assim perdeu o emprego.

Depois veio Mary Jones, que foi sumariamente demitida em 1905, quando o conselho da biblioteca subitamente decidiu que preferia um homem dirigindo a biblioteca. Jones contestou a decisão, mobilizando mais de mil mulheres para assinar uma petição de apoio a ela dirigida ao prefeito e ao conselho da biblioteca e, quando não obteve resposta a ir às ruas. No final ela desistiu, mudou-se para a costa leste, e foi bibliotecária chefe em Bryn Mawr.

Orlean se diverte muito descrevendo as desventuras e pecados do sucessor de Jones, um bon vivant chamado Charles Lummis. Este era um poeta cujo primeiro livro, Birch Bark Poems (Poemas na Casca de Bétula), foi realmente publicado em cascas de bétulas, que ele mesmo descascou e costurou, e que ganhou fama nacional quando ele fez o relato de sua caminhada desde a costa leste, onde renunciou a Harvard, para ir a Califórnia, onde iria assumir uma posição no Los Angeles Times. Sua propensão para desaparecer durante semanas para vagabundear ou presidir bacanais orgiásticos finalmente lhe custou o emprego no jornal, e não diminuiu quando ele assumiu a biblioteca. Ainda assim, Orlean lhe dá o crédito de transformar a biblioteca na “instituição que é hoje… [pressionando] para que se transformasse em um centro sério de pesquisas acadêmicas”, e estabelecendo a coleção de fotografias, assim como coleções de História da Espanha e da Califórnia. “Sua ambição era tornar a biblioteca completamente acessível – “uma oficina para acadêmicos, incluindo todos os aprendizes de pintores ou jovens trabalhadores ou condutores de bondes, tanto quanto inclua professores de grego ou o artista amador”, escreve Orlean, citando Lummis. “Sua atitude de inclusão era incomum na época. Fez campanhas para atrair usuários que antes não haviam considerado usar a biblioteca”. Essa é a essência e a missão da biblioteca pública de hoje.

Julho passado um professor da Universidade de Long Island publicou um artigo na Forbes argumentando que as bibliotecas públicas deviam ser fechadas, porque estavam ultrapassadas, agora que a Netflix faz streaming de filmes, Starbuks oferece wi-fi grátis e, o que seria mais conveniente, livros eletrônicos ficam instantaneamente disponíveis na Amazon. Fechar bibliotecas em favor da Amazon seria então algo proveitoso para todos, disse ele, porque os impostos diminuiriam, enquanto o preço das ações da Amazon subiria. O professor estava especialmente enamorado das lojas sem caixas de pagamento da Amazon, as quais, na sua avaliação, “basicamente combinam uma biblioteca com uma Starbucks”. A “biblioteca” a qual ele se refere é um empreendimento comercial que vende livros.

A reação ao artigo, quando os leitores se deram conta que ele não era uma sátira, foi de ultraje e ridículo, e Forbes removeu-o de seu website cerca de setenta e duas horas depois da publicação. Mas o engraçado foi que o autor, inadvertidamente, apresentou fortes argumentos em favor do valor e da existência continuada das bibliotecas públicas:

Houve épocas em que as bibliotecas ofereciam à comunidade local muitos serviços em troca do dinheiro dos impostos. Traziam livros, revistas e publicações acadêmicas para as massas através de um sistema de empréstimos… Também proporcionavam à população um local confortável no qual podiam desfrutar dos livros. Proporcionavam às pessoas um lugar onde podiam fazer suas pesquisas em paz com a ajuda de bibliotecários amigáveis…

As bibliotecas pouco a pouco começaram a prestar mais serviços à comunidade. As bibliotecas introduziram empréstimo de vídeos e acesso livre à Internet. A moderna biblioteca local ainda proporciona esses serviços, mas não são gratuitos. [Na verdade são] financiados pelos contribuintes [na] forma de um “imposto de livraria”.

As bibliotecas, na verdade, jamais foram “gratuitas”, não mais que as escolas públicas, estradas ou serviços públicos de saúde são “gratuitos”. Era de se esperar que um professor de economia soubesse disso. Ou pelo menos que soubesse fazer as contas: o “imposto per capita da biblioteca” (a parte alíquota do orçamento público que financia a biblioteca) do sistema de bibliotecas de Los Angeles, por exemplo, é de apenas US$ 32,77 – ou seja o valor de cerca de nove café-com-leite médios no Starbuck. Existem nove lojas Amazon Go nos Estados Unidos, e 16.568 bibliotecas públicas, muitas em lugares onde nem a Amazon ou Starbucks jamais se aventurarão, como os ramais no extremo do Bronx e Los Angeles, onde Wiseman e Orlean nos levam, ou nos lugarejos rurais como o da biblioteca que ajudei a fundar está localizado.

Essa biblioteca tem agora cerca de 40.000 itens em suas prateleiras, incluindo jogos, quebra-cabeças e equipamentos esportivos, tal como Tessa Kelson imaginou há mais de um século. Ainda que pequena e sem alguns dos confortos de uma comunidade com mais recursos, é uma sucessora valiosa das bibliotecas financiadas por Carnegie. Essas, isso deve ser assinalado, também não eram “gratuitas”: antes de fazer a doação, Carnegie exigia que cada cidade se comprometesse a alocar recursos que cobrissem pelo menos dez por cento do custo anual da biblioteca, assim como proporcionar o terreno para sua construção. E esses beneficiários se comprometiam também a fornecer os serviços sem custos para os frequentadores.

Talvez a refutação mais definitiva da ideia de trocar bibliotecas pela Amazon e por cafés seja a de um antigo empregado da Starbucks, que Klinenberg conheceu em um dos ramais da Biblioteca Pública de Nova York, onde ele é agora “especialista em informação”: “No Starbucks, e na maior parte dos negócios, realmente, a suposição é de que você, freguês, é melhor por ter comprado tal coisa, certo? – disse ele. – Na biblioteca, a suposição é de que você é melhor. Você já é isso… A biblioteca supõe sempre o melhor das pessoas”.



[1] Movimento operário inglês, particularmente ativo entre 1838 e 1848, que lutava por direitos políticos para os trabalhadores (o voto era censitário na época)



[1] Professor da Harvard Kennedy School e do Instituto Radcliffe, militante do movimento negro.

Experiências no interior do país

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Em vários posts venho criticando os problemas de distribuição no país, e as bibliotecas – públicas e escolares – são uma preocupação constante.
Há alguns dias estive em Jaraguá, cidade do interior de Goiás. Maria José Silveira nasceu lá e o município a homenageou dentro da programação de um mês dedicado à literatura. Várias atividades programadas em torno do livro, da poesia e da leitura. Bela iniciativa.

As questões começaram antes da viagem. O funcionário da Secretaria de Cultura queria comprar pelo menos uma coleção dos livros da autora, tanto os romances quanto os livros para jovens. Tentou na Saraiva, filial de Goiânia. Não havia nada. Nem uma coleção editada pela Formato, que é um selo da Saraiva. Entrega? Pior que a Amazon com a Hachette.

Resultado: tivemos que achar por aqui os exemplares que conseguimos para levar alguns.

A programação teve suas cerimônias homenageando a filha da terra na sede da Casa da Cultura, construção do século XIX restaurada com muito cuidado. Foi programada também visitas a duas escolas de ensino fundamental da cidade. Escolas arrumadas, com professoras motivadas. As duas tinham pequenos acervos de livros, que fui ver. Achei poucos exemplares de livros dos programas de Biblioteca na Escola, do MEC. A Secretária de Educação do município me disse que o MEC, quando enviava, o fazia diretamente para as escolas. Só comunicava para a Secretaria os acervos e quantidades do PNLD, até porque eventualmente o primeiro nível de trocas ou complementações (naturais diante da variação de matriculados declarados no Censo Escolar do ano anterior e os efetivamente matriculados no ano) eram feitos diretamente pela Secretaria Municipal. Só no caso em que esses ajustes não fossem possíveis era que se apelava para a Secretaria de Educação do Estado.
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LIVROS BONS E LIVROS RUINS – COMO É MESMO ISSO?

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A distinção entre livros bons e livros ruins é algo que assombra o sentido comum. Afinal, cada um de nós qualifica o que lê (ou o que quer ou não ler) dessa maneira. É um bom livro (e por isso gostei dele), ou é um livro ruim (portanto, detestei). Fazemos isso todos os dias (e não só a respeito de livros, é claro), e esse exercício de distinção passa pela crítica, pelas resenhas de jornais e, certamente, pela avaliação das editoras que decidem publicar ou não determinado original.

O assunto desborda das escolhas individuais (ou empresariais) até para o terreno das políticas de aquisição de acervos para bibliotecas públicas. Há quem defenda que só devem ser colocados à disposição dos leitores não apenas livros bons, mas os que “transformem” o leitor em um ser humano melhor. E por aí vai.

Pierre Bourdieu, em seus estudos de sociologia, elaborou alguns conceitos que nos podem ser úteis. O sociólogo francês assinala que as avaliações de qualidade – ou aquilo que sua discípula Pascale Casanova viria a chamar de “capital literário” – depende de relações internas no campo da crítica, e da produção literária, no caso da que se considera culta. As disputas de poder no campo literário adquirem uma dinâmica própria, que leva a sucessivas transformações na escala de valores do que é considerado “bom”, “inovador”, “medíocre” ou de “mau-gosto” e assim sucessivamente.

Essas disputas dentro de campos podem muito bem ser – e de fato são – interpoladas com o que acontece em outros campos. Por exemplo, os livros que os pedagogos podem levar em alta consideração (no campo da pedagogia, ou como úteis para o ensino de literatura, por exemplo), podem não ser idênticos aos que os críticos literários talvez valorizem. Livros que esses consideram inovadores, ou que apontam para caminhos promissoramente transgressores (com um sinal positivo nessa transgressão), podem ser considerados nocivos pelos pedagogos.
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Acervo para Bibliotecas Públicas: Programa da FBN em pleno funcionamento

A Fundação Biblioteca Nacional divulgou nos últimos dias os números da primeira etapa do programa de aquisição de acervos para as bibliotecas públicas e comunitárias a partir do programa de livros de baixo preço.

Os números são muito significativos e foram amplamente divulgados: 2.114 bibliotecas atendidas, em todos os estados da federação, receberam um total de 1.900.574 exemplares de 10.859 títulos, de 274 editoras, das 510 editoras cadastradas. O orçamento da primeira etapa do programa foi de 21 milhões de reais, dos quais foram executados aproximadamente 17 milhões. As sobras dessa etapa serão usada na segunda etapa do programa, que já tem assegurado mais 16 milhões de reais.

É uma das maiores alocações de recursos para aquisição de acervos para bibliotecas públicas que já houve.

Mas outras características qualitativas do programa merecem nota.

O primeiro e mais importante, sem dúvida, foi a eliminação do paradigma anterior de escolha de listas de livros feitas por comissões nomeadas. Essas comissões, formadas por professores e especialistas de leitura, eram compostas por pessoas altamente qualificadas e com as melhores intenções possíveis.

Esse é que era o problema.
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BIBLIOTECAS NO MEIO DE DUAS POLÊMICAS

As bibliotecas estiveram presentes em duas polêmicas que correram na Internet semana passada.

A primeira foi provocada por um artigo do jornalista Luís Antônio Giron, publicado em seu blog da Revista Época no qual relatava uma experiência que considerou desastrosa ao visitar a biblioteca pública de seu bairro (não disse qual era), onde não encontrou o que buscava. O trecho que provocou dezenas de comentários, muitos irados, de bibliotecárias, foi o seguinte:

“Cheguei de mansinho, talvez pensando em reencontrar nas prateleiras os livros que mais me influenciaram e emocionaram. Topei com prateleiras de metal com volumes empoeirados à espera de um leitor que nunca mais apareceu. O lugar estava oco. A bibliotecária me atendeu com aquela suave descortesia típica dessa categoria profissional, como se o visitante fosse um intruso a ser tolerado, mas não absolvido. Eu sei que as bibliotecárias, entre suas muitas funções hoje em dia, sentem-se na obrigação de ocultar os volumes mais raros de suas respectivas bibliotecas. Bibliotecas mais escondem do que mostram. Há depósitos ou estantes secretas vedadas aos visitantes. São as melhores – e, graças às bibliotecárias, você jamais chegará a elas.”

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Dia do Livro – Comemoramos?

Dia 29 de outubro é o “Dia Nacional do Livro”. Foi instituído por ser a data em que a Real Biblioteca foi transferida para o Brasil, em 1810. E não faltam efemérides relacionadas com o livro: 27 de fevereiro é o “Dia do Livro Didático” (não se sabe a razão da escolha da data); 18 de abril é o “Dia do Livro Infantil”, instituído em homenagem ao nascimento de Monteiro Lobato; e 23 de abril é o “Dia Internacional do Livro e do Direito de Autor”, instituído oficialmente pela UNESCO em 1996, embora a data já fosse comemorada como tal na Catalunha (Espanha) desde 1926. É a data do nascimento de Cervantes e da morte de Shakespeare e de nascimento ou morte de outros autores menos votados. A história com Shakespeare envolve uma “licença poética”: ele morreu em 23 de abril de 1616, mas a Inglaterra ainda adotava o calendário Juliano e, portanto, estava dez dias atrasada. Enfim…

Eu tenho certa bronca com efemérides e com “eventos”. Essa história de comemorar o “dia do…” é, o mais das vezes, pretexto para esconder o assunto nos outros trezentos e sessenta e quatro dias do ano. A mesma coisa com os eventos: existem vários festivais, feiras e outros “eventos comemorativos e celebratórios” que podem esconder a ausência de políticas públicas, no caso, a respeito do livro e da leitura.
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A “Biblioteca Civilizatória” e a Biblioteca como serviço público

Uma das afirmativas mais recorrentes nos trabalhos que tratam de bibliotecas públicas diz respeito ao “papel civilizatório” que esta deve desempenhar. Entende-se por “papel civilizatório”, essencialmente, a presença nos acervos de bibliotecas públicas de certa quantidade de títulos aos quais se atribui – geralmente em meio a disputas acirradas – a qualidade de comporem um “cânon” de leituras indispensáveis. Geralmente os “leiturólogos” atribuem a esse cânon a capacidade de transformar um leitor “instrumental” em um “leitor crítico”.
Quando aceitam ir mais além do cânon, os “leiturólogos” geralmente passam a argumentar sobre a necessidade de que, pelo menos, os livros sejam “de qualidade”. Ou seja, acervos cujo valor simbólico é o valorizado por aquele campo intelectual que discute e legitimiza os atributos do “bom livro” e da “boa leitura”. É uma atitude próxima à da crítica literária tradicional. Mas, no que diz respeito aos “leiturólogos” há um componente adicional autoritário que o campo da crítica muitas vezes gostaria de ter, mas não dispõe de instrumentos.
Os críticos dispõem principalmente de um poder simbólico, que incorpora ou exclui as obras no cânon, mas deixa aberta ao leitor a decisão final sobre o que ler ou não.
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