Os números torturados do Relatório de Produção Editorial de 2010

Alguns dias atrás um amigo, sócio da CBL, enviou um e-mail pedindo que eu lhe mandasse o relatório da Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro de 2010. Respondi-lhe que não tinha. Não sou sócio da CBL e são os sócios que recebem regularmente o material, assim como os do SNEL. Eu, como pesquisador do setor, consigo cópias precisamente através de amigos editores.

Mas eu havia solicitado uma cópia para a administração da CBL, há coisa de dois meses. Na ocasião, a administração me respondeu que “ainda não havia recebido o relatório integral da pesquisa enviado pela FIPE”, e que logo que recebesse me enviaria. O tempo passou e me apareceu esse pedido do meu amigo. Entro no site da CBL e lá só aparece o relatório da pesquisa de 2009.

Um padrão comum nos relatórios desse tipo é colocar os dados do ano anterior junto com os dados do ano. Facilita uma pesquisa rápida da evolução dos números do mercado.

Por força de hábito, abro minha cópia do relatório anterior, relativo a 2009 que, esse sim, eu já tinha. Aí teria pelo menos mais um ano para examinar os números e tecer meus eventuais comentários.

Minha surpresa: OS DADOS DE 2009 APRESENTADOS NO RELATÓRIO DE 2010 ERAM DIFERENTES DOS QUE HAVIAM SIDO APRESENTADOS NO RELATÓRIO ANTERIOR, DE 2009.

Como assim? pergunto a mim mesmo (não com meus botões, pois estava de camiseta). Os dados publicados não podem mudar, pelo menos não sem uma boa explicação.

Mas explicação não havia no desfile de slides do Relatório de 2010. Havia, sim uma nota, sob o título/pergunta “Há alguma novidade na elaboração da pesquisa neste ano?”

“Sim – dizia o slide. – Em todo processo de inferência estatística, de quando em quando, os números do universo devem ser aferidos. Por isso o IBGE, por exemplo, faz, a cada dez anos, um Censo. Entre novembro de 2010 e abril de 2011, foi realizado o CENSO DO LIVRO, que buscou justamente aferir os números referentes ao universo do setor livreiro até então utilizados. As informações solicitadas referem-se ao ano de 2009”. E dá alguns exemplos do que o “Censo do Livro” descobriu.

Pensei de novo comigo mesmo: o IBGE compara os Censos entre si e não muda os dados da PNAD anterior em função do censo. O novo censo serve de base para estabelecer novas cotas e parâmetros para a pesquisa por amostra de domicílio (PNAD), que é feita em intervalos menor que o Censo. Assim comparam-se dados os dos Censos e os dados das PNADs. Dentro do período entre censos é legítimo estabelecer inferências comparando os números de cada PNAD com o Censo anterior. Mas ninguém jamais sonharia em mudar retrospectivamente os dados das PNADs anteriores por conta do novo censo.

As modificações existentes entre as duas tabelas não são insignificantes. Muito pelo contrário. São muito, muito significativas. E inexplicadas.

E têm consequências complicadas. Pois, mesmo que venham eventualmente a ser explicadas, já trazem problemas:

a)A série histórica fica comprometida. Que números usar para comparações?

b)A confiabilidade da pesquisa fica comprometida. Como acreditar em alguma coisa que, num passe de mágica, muda dados importantes sobre produção, faturamento, etc.?

Até o Relatório sobre 2009, a pesquisa era não apenas de responsabilidade genérica da FIPE – Fundação Estudos de Pesquisas Econômicas, dos professores da FEA/USP. A equipe técnica estava identificada: Prof. Dra. Leda Maria Paulani – Coordenadora; Leonardo André Paes Müller – economista; Solange Ledi – estagiária.

A coleção de slides tem o logotipo da FIPE ao lado do das duas entidades que a pagam, CBL e SNEL. Mas não tem os créditos e todo aparato técnico explicativo que acompanha os relatórios desse gênero.

Evidentemente, não é o Relatório da Pesquisa de Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro 2010.

O que leva a outra pergunta.

Qual a razão desse atraso? Os “dados preliminares” foram divulgados na abertura da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, no final de agosto passado. Para divulgar todas essas tabelas, certamente o relatório já deveria estar pronto, ou pelo menos esperando apenas toques finais de redação. Já se passaram três meses, e nada.

Qual o mistério? Qual a razão disso tudo?

Devo dizer que estou profundamente preocupado, inclusive porque participei, desde o início, da pesquisa de produção e vendas do setor editorial brasileiro. Não vou fazer a história disso aqui, mas, no começo dos anos 90, quando era Diretor da CBL, fui “convocado” pelo Alfredo Weiszflog, então vice-presidente da entidade, para ajudar na construção desse projeto. E o acompanhei por doze anos, participando da Comissão de Pesquisas da CBL e como interface entre os pesquisadores e a entidade. Sei como é difícil vencer a desconfiança das empresas em revelar seus números (apesar dos questionários jamais serem identificados para a CBL ou para o SNEL), e manter a continuidade e integridade dos dados. Lembro que começamos a pesquisa em 1992, recolhendo dados de 1990 e 1991, em um período de inflação alta e instabilidade econômica. Tivemos que definir critérios para a conversão dos valores na(s) moeda(s) da época para US dólares. Depois da maxidesvalorização do governo FHC, tomamos a decisão de deixar todos os números em Reais. Todas as decisões tomadas nessas etapas eram detalhadamente explicadas nos relatórios, alertando-se, inclusive, para os eventuais problemas de comparação dos dados.

Considero esse período como de muita transparência e seriedade. De lá para cá, como ficou? Eu não saberia responder.

Tenho muitas questões quanto aos dados e a interpretação desses relatórios, mas não vou comentá-las agora. Espero os esclarecimentos.

E, para ilustração dos leitores, transcrevo abaixo as tabelas mostrando as discrepâncias detectadas.


A coluna 2009(2009) mostra os dados do Relatório de 2009. A coluna 2009(2010) mostra os dados apresentados no Relatório 2010. Os realces em vermelho são as diferenças entre os dois, para mais e para menos.

Aqui a única tabela em que os dados coincidem – parcialmente. Os dados fornecidos pelo MEC/FNDE não mudaram.

Outro dia estive no escritório do IBGE em S. Paulo em busca de dados para outro trabalho. Fui muito bem atendido pela equipe, que inclusive ajudou a produzir tabelas com os dados brutos tanto das PNADs quanto dos Censos. Depois, ficamos conversando. Um dos estatísticos comentou que seu professor dizia que “a estatística é a ciência de torturar os números até eles dizerem o que queremos”. Essa é uma piada recorrente no setor, com várias versões, e é mesmo uma piada.
Mas, neste caso, se tortura houve, que resultado se conseguiu além de desencontros?

3 comentários em “Os números torturados do Relatório de Produção Editorial de 2010”

  1. Bom dia Felipe,

    Primeiramente pelo seu trabalho com este blog. Tenho lido os seus artigos antigos e recentes e eles tem me ajudado bastante a entender um pouco melhor a indústria de livros no Brasil.

    Recentemente consultei uma pesquisa feita pela Fipe (Produção e Vendas do Setor Ed. Brasileiro de 2011) e achei algumas discrepâncias, assim como você notou na pesquisa feita por eles de 2010.

    Estou fazendo uma pesquisa de mercado para a minha empresa (uma das maiores gráficas do mundo tentando entrar no mercado brasileiro) e infelizmente não tenho conseguido achar dados ou índices sem essa tal discrepância.

    Gostaria de saber se você teria indíces mais recentes e compartilhar com nós leitores?

    Obrigada!

    Cristiane

    1. Cristine,

      Eu até não comentei a última pesquisa porque nem a CBL, nem o SNEL nem a FIPE se dignaram a responder aos questionamentos. Atualmente eu considero essa pesquisa – que é a única – apenas como uma referência aproximada.
      A GfK, que é uma empresa de acompanhamento de vendas, começou a fazer uma pesquisa, mas está no começo e é paga, pelo que sei.
      Felipe

  2. Felipe,
    foi a mesma resposta que deles, nada. Assim como você, usarei essa pesquisa como uma aproximação já que o estudo da GfK parece ainda estar em andamento.

    Obrigada pelo feedback!

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