Nos dias 4 e 5 de junho passados aconteceu, na UnB, a III Jornada de Crítica Literária, cujo tema era precisamente esse – Literatura e Ditaduras -, com o objetivo de provocar o debate sobre as relações estre estética e política, pondo em evidência situações históricas do passado para reflexão da cultura contemporânea, lembrando que o processo democrático tem sido alvo de constantes golpes ao longo da história política do continente latino-americano.
Coordenado pelos professores Paulo C. Thomas (UnB), Regina Delcastagne (UnB) e Rejane Pivetta (UPF), a jornada mostrou em onze mesas com escritores e professores, (duas das quais de estudantes da UnB que apresentaram trabalhos em desenvolvimento), como se desenvolve essa difícil relação. Relação que, em diversos momentos, tem sido muito marcada pela negação, disfarçada na afirmação de que as duas coisas não podem (ou não devem) se misturar.
Como disse a escritora Maria José Silveira em sua intervenção, “O ‘não’ é um dos problemas de quem se aventura a escrever sobre política. No momento da ditadura pura-e-nua, era o ‘não’ da censura. Depois e sempre, é a crítica pseudo-não-ideológica que propugna uma literatura sem política, como se isso pudesse existir, ou a adesão até inconsciente à política do esquecimento: ‘Por que falar dessa época?’ ou ‘Todo mundo é contra a ditadura, que bom que ela passou, agora vamos falar de outro assunto?’”
No debate, um dos professores presentes reconheceu que haviam até discutido o romance “O Fantasma de Luís Buñuel”, da mesma Maria José, que tem Brasília, a própria UnB (e a ditadura civil-militar de 1964-1988) como pano de fundo, mas que o desenvolvimento do assunto não aconteceu. De certa forma, foi também um exemplo do “Para que falar dessa época? Todo mundo é contra a ditadura, que bom que ela passou, agora vamos falar de outro assunto?”
Até que o golpe em decurso (sabemos como um golpe começa, mas não como se desenvolve ou termina, assim vale lembrar: cave, canem) recolocou o assunto brutalmente em pauta. Mais uma vez. De onde não deveria ter saído.
Na verdade, esses “nãos” também escondem algumas armadilhas, nas quais muitas vezes caem escritores que se atrevem a tratar desses assuntos. Uma delas é a confusão, muitas vezes deliberada, da crítica e dos bem-pensantes, que trata a abordagem literária como um simples documentário da “verdade”. Ora, a “verdade” que não é transfigurada pelo trabalho literário não chega nem a ser documentário: é uma chatice. Mas a solução para esse problema não é simplesmente olhar para o próprio umbigo e elevar isso à suprema categoria literária.
Como diz também a Maria José Silveira: “É arriscado escrever sobre o que nos atinge tão de perto. O tempo da ditadura é um passado que não passou. Embora por alguns curtos anos tenhamos vivido no wishful thinking de acreditar que estávamos em uma democracia, hoje vemos como a ditadura e seus restolhos estão se fazendo presente, emergindo sem pejo dos subterrâneos, loucos para respirar ar fresco. Ao escrever sobe tantos horrores ainda tão presentes, é preciso uma atenção enorme para não cair no perigo fatal de ser panfletário. Se isso acontece, a literatura morre. De morte matada por nossas boas intenções”.
A jornada foi extremamente rica, mostrando que os retratos da ditadura podem ser tratados literariamente em alto nível, com emoção de fruição estética. Vale ressaltar inclusive a qualidade dos trabalhos apresentados pelos alunos. À mesa de abertura: “Literatura como gesto de resistência”, com os organizadores, começou dando o tom do encontro, seguiram-se, logo na primeira manhã, mais duas mesas. Na primeira “Autoritarismo, perdas e afetos” apresentou trabalhos das escritoras Rosângela Vieira Rocha e Luciana Hidalgo. A primeira, com seu romance “O Indizível sentido do amor” mostra sobreviventes silenciosos do golpe de 64 e os desvios em suas trajetórias pessoais, cortes e perdas, que tornam difícil falar sobre as torturas sofridas. Luciana Hidalgo, com seu romance “Rio-Paris-Rio” apresenta o autoritarismo nos corpos, nos afetos e na genealogia, e se pergunta sobre o que uma ficção sobre o golpe de 1964 tem a dizer sobre o golpe de 2016.
Ainda na manhã do dia 4, a professora Eurídice Figueiredo (UFF) trabalhou, em sua apresentação, a memória e a elaboração do trauma vivido pela violência das ditaduras, tema de seu ensaio publicado ano passado pela 7 Letras, “A Literatura como arquivo da ditadura brasileira”, seguida pelo prof. Jaime Guinsburg (USP) que abordou “Memória e ritual em O Velório, de Bernardo Kucinsky”, um conto que retoma temas paralelamente tratados no romance “K” do mesmo autor.
A sessão da tarde começou com a escritora e poeta Sonia Bischain (“A ditadura vista pelas margens”), que trata de como escritores da periferia das grandes cidades viveram – e escreveram – sobre a ditadura de 1964. Em seguida a poeta e professora (UFBA) Lívia Natália apresentou o trabalho “Quando todas as vidas importam, mas só os corpos negros são tombados”, sobre a produção dos escritores negros. Perguntada, falou dela mesma, inclusive as perseguições e ameaças que sofreu depois da publicação de seu poema “Quadrilha”, em um outdoor do Movimento Negro Unificado em Ilhéus. A PM baiana não poupou ameaças à autora, sob o olhar complacente do governador petista Rui Costa.
Ainda na primeira tarde houve a primeira apresentação de trabalhos de estudantes, com Berttoni Licarião, “Inventário de Silêncios”), Aline Teixeira da Silva Lima (“A mulher subversiva”), Leocádia Aparecida Chaves (“Existir na ditadura como um corpo dissidente”) e Andressa Estrela (“Na teia do sol: violência e ditadura”). Finalmente, os trabalhos de duas professoras: Maria Zilda Cury (UFMG) apresentou seu ensaio “Literatura e Resistência: imagens da ditadura”; a apresentação da prof. Leila Lehnen (Brown University), falando sobre a premiada HQ de Robson Vilalba, “Notas de um tempo silenciado” (“Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos” de 2014).
O segundo dia da Jornada começou com duas apresentações sobre a Literatura indígena e repressão militar. Rubens Valente apresentou seu ensaio “O fuzil e as flechas: história dos índios na ditadura militar” e Eliane Potiguara voltou ao problema com sua intervenção “Parem de calar a nossa voz: não se seca a raiz de quem tem sementes para brotar”. A extensão da repressão às populações indígenas foi uma das mais dramáticas revelações da Comissão da Verdade. O pouco que se sabia foi ampliado de modo exponencial, com o catálogo de milhares de mortos, instalação de campos de concentração, remoções forçadas e outras barbáries.
O professor Paulo César Thomaz (UnB) apresentou seu ensaio “Estado pós-democrático e literatura, e a prof. Rejane Pivetta (UPF), o trabalho “Experiência ditatorial e ficção democrática”. A mesa se encerrou com o testemunho do escritor Pedro Tierra, cujo primeiro livro foi contrabandeado da prisão e publicado clandestinamente. “A poesia é o escândalo da palavra”, sintetizou o poeta.
Literatura, política e subjetividade foi o tema da mesa seguinte, com intervenções da escritora Beatriz Leal (“Construção da empatia por meio da literatura: uma alternativa à falta de memória”) e o professor da UFAM, Raimundo Nonato que, a partir da obra de dois poetas amazonenses Thiago de Mello e Aldísio Filgueiras mostrou a extensão da repressão e as respostas poéticas na região.
A segunda mesa com comunicações dos estudantes apresentou uma paleta de temas que estão sendo trabalhados em teses de mestrado e doutorado. Humberto Torres (UnB) mostrou “As tensões entre indígenas e intelectuais em Quarup, de Antonio Callado”, um dos romances mais conhecidos do período; João Pedro Coleta da Silva (UnB) explorou “A ficção como investigação da história familiar”; Ix Chel Barbosa de Carvalho (UFRJ e UnB) mostrou, em “Colcha de retalhos”, como a narração fragmentada pode contribuir para a construção da memória, tema similar ao tratado por Carlos Wender Sousa Silva (UnB), em “A construção de uma memória coletiva e individual”.
A jornada foi encerrada com a mesa de duas escritoras, Maria José Silveira e Maria Pilla. A primeira apresentou um pequeno ensaio, “Recriando a militância contra a ditadura em três livros: “Felizes Poucos”, “O Fantasma de Luís Buñuel” e “A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas”. O primeiro é um livro de contos que trata literariamente das diferentes máscaras e fases específicas da ditadura civil-militar iniciada em 1964, e a luta contra ela, que tem também suas fases e formas diferentes, justificando o formato de contos. “O Fantasma de Luís Buñuel” parte de uma citação do cineasta que, em seu livro de memórias, quando diz que não se importaria em morrer, mas que seria ótimo se, a cada dez anos, pudesse sair do túmulo e ver o estado do mundo. Cinco amigos que se conhecem em Brasília no ano de 1968, na UnB, e são fãs de Buñuel e da política, acabam se encontrando a cada dez anos, quando passam a limpo suas vidas. Já “A mãe da mãe…”, romance construído a partir da história de uma genealogia de mulheres que se inicia em 1500, tem um capítulo em que uma dessas descendentes é militante contra a ditadura. Nascida e criada em Brasília, é assassinada sob tortura pela repressão.
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Maria Pilla, por sua vez, apresentou seu romance fortemente autobiográfico, “Volto na semana que vem”, no qual relembra literariamente sua militância, exílio e prisão na Argentina e depois sua vida na França.
A jornada de crítica literária mostrou, com trabalhos acadêmicos e exemplos da produção de escritores brasileiros, que a política não deixou de ser trabalhada literariamente durante todos esses anos, ainda que a crítica nem sempre tenha valorizado essa produção. Uma produção literária que vai muito além dos depoimentos ou supostos retratos realistas, produzindo obras marcantes, que exploram diferentes temas relacionados com a política inclusive com inovações estéticas e formais, sem deixar de estar ancorada em momentos vitais da vida social.