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E FUI PARA O FLICRISTINA

Como anunciei semana passada, fui participar do II FLICRISTINA, o Festival Literário da pequena cidade do Sul de Minas, a convite dos irmãos Ninil e Ray Gonçalves, seus animadores e organizadores.

Cristina é uma dessas pequenas cidades do sul de Minas, produtora de cafés de qualidade e leite, com pouco mais de 10.000 habitantes (metade na zona urbana e metade nas zonas rurais). Está perto de Itajubá, Santa Rita do Sapucaí e Piranguinho, conhecida pelos doces. É alcançada pela Fernão Dias e depois por estradas menores. No caminho, desde grandes distritos industriais em Pouso Alegre e Santa Rita do Sapucaí, passando pelas fazendas que alternam rebanhos de gado nelore e fazendas de café. Bucólicas como sói acontecer pela região, com estátuas de S. Sebastião ao lado do sinal da loja maçônica na entrada de Pedralva, e localidades com nomes que só se vê… em Minas Gerais, como esse Bairro Despropósito.

São Sebastião ao lado do símbolo maçônico em Pedralva, a caminho de Cristina.
despropósito, bairro rural de Cristina.

A FLICRISTINA, em sua segunda edição, estava organizadíssima. Na praça central da cidade, uma tenda abrigando o espaço para as mesas e palestras (também foi usado o plenário da Câmara Municipal e um dos colégios públicos da rede municipal para oficinas), um palco para os espetáculos musicais, área de alimentação (destaque para um foodtruck de alunos da Engenharia de Itajubá, bem estocada de cervejas e outros líquidos calóricos e inebriantes, e também para a barraca da APAE local, com ótimo café coado e um livrinho de receitas jóia). Mais adiante, outra tenda abrigava a FLICRISTININHA, com atividades para crianças durante todos os dias. Os professores e professoras da rede foram convocados e levaram os alunos para atividades mesmo no feriado e na sexta-feira “enforcada”. Havia também uma mini-feira de livros, sobre a qual comentarei mais adiante.

Os convidados foram hospedados em pousadas da região e faziam as refeições em um restaurante perto da praça.

Isso foi possível graças ao apoio da Prefeitura, em especial da Secretaria de Educação, que reservou recursos para cobrir a maioria dos gastos. Nenhuma grande empresa, banco ou coisa parecida se dispôs a colocar alguns caraminguás no evento. Do comércio local, um cafeicultor, Sr. Sebastião Afonso da Silva, produtor de um café bicampeão mundial de qualidade de grãos. A Valcan, empresa local que comercializa produtos de proteção individual, foi outra  que ajudou o Festival.

Um cafeicultor premiado ajudou a fazer o Festival.
O apoio para a Flicristina foi totalmente local.

É importante destacar que, dessa maneira, a FLICRISTINA foi realizada por esforço próprio, mostrando a capacidade de organização e mobilização do Ninil e da Ray, que mobilizaram os recursos locais de uma pequena cidade para fazer um evento cultural importante para a comunidade e para toda a região. É um exemplo.

Quando cheguei em Cristina e dei meu primeiro passeio pelo centro da cidade, notei uma ausência quase completa de negros circulando. Depois perguntou a Ninil se não houve mineração ou grande lavouras na região. Ele respondeu que havia um bairro habitado principalmente por negros na periferia da cidade. Ninil já fazia um trabalho de aproximação, explicando a eles que o Festival era para todos. Disse que tem como missão atrair, cada vez mais, essa população a participar da FLICRISTINA. E mostrou um detalhe do Pavilhão tecido e preparado para o desfile de abertura. Ali, mais ou menos no meio, nos dois lados, um detalhe. “Os negros são conhecidos como pés de chinelo, e para mostrar que a FLICRISTINA é deles, colocamos os dois chinelinhos no Pavilhão”.

O Pavilhão da FLICRISTINA. Notem os chinelinhos.

A FEIRA DE LIVROS

A feirinha era modestíssima. Uma livraria de Itajubá e algumas barracas da infatigável infantaria do mercado editorial: os vendedores de porta-a-porta. Nenhuma rede, nenhuma das editoras do segmento trade.

O que eu questiono?

Existem centenas de feiras e festivais literários acontecendo durante o ano, em boa parte dos Estados. À exceção das badaladas, a oferta de livros nesses eventos é exclusivamente feita pelos vendedores de porta-a-porta. Não preciso que me repitam a litania que são eventos muito pequenos e que não compensa deslocar equipes de venda, montar estandes, etc. etc. etc. Já ouvi esse blá-blá-blá centena de vezes.

Fiz um filmete da feira, aqui.

Existem centenas de feiras e festivais literários acontecendo durante o ano, em boa parte dos Estados. À exceção das badaladas, a oferta de livros nesses eventos é exclusivamente feita pelos vendedores de porta-a-porta. Não preciso que me repitam a litania que são eventos muito pequenos e que não compensa deslocar equipes de venda, montar estandes, etc. etc. etc. Já ouvi esse blá-blá-blá centena de vezes.

Depois reclamam.

Vimos recentemente a Livraria da Editora da UNESP dar por encerrada a iniciativa (premiada!) do Caminhão Livraria. Nem vou especular se outras razões, além da litania habitual, pesaram na decisão da editora, que pertence a uma Fundação Universitária, a encerrar essa importante inciativa.

O fato é que o caminhão, já adaptado, deve estar estacionado em algum depósito entre S. Paulo e algum extremo do estado onde haja um campus da UNESP. Mas pergunto: por que razão entidades como a CBL, a ANL ou mesmo a LIBRE não se ORGANIZAM para colocar esse caminhão rodando pelas feiras do interior, de S. Paulo e do resto do Brasil? É falta de visão, incapacidade organizativa ou pura e simplesmente preguiça de pensar e inovar?

Quem quiser responder ou pensar a respeito que responda. Eu sou apenas uma pessoa que faz perguntas. E pergunto porque, em outra era, a CBL já promoveu, junto com a Imprensa Oficial, o Circuito Paulista de Feiras Literárias. Mudaram as duas administrações e o projeto naufragou. Mas as grandes bienais (onde a presença da ponta de estoque é cada vez mais significativa) continuam nos calendários.

Depois, todos reclamam do mito de que o brasileiro lê pouco e o resto do lamento. E meu comentário será sempre: quem não tem imaginação e competência para desenvolver mercados fora dos grandes centros que sente na margem de um Rio Piedra qualquer e chore as pitangas.

livraria mais próximas está em São Lourenço, mais de meia hora de carro de Cristina.

A BIBLIOTECA

Cristina tem uma biblioteca municipal, que homenageia um ilustre filho da terra, D. Marcos Barbosa, monge beneditino, escritor, poeta e tradutor (O Pequeno Príncipe, O Menino do Dedo Verde, e obras de Paul Claudel e François Mauriac). A biblioteca, entretanto, não faz jus ao homenageado.

Estava fechada havia muito tempo, servindo inclusive de depósito de materiais (o que não deixa de ser uma promoção utilitária diante do fato de muitas serem simples depósito de livros…). Foi reaberta e recondicionada por ocasião da I FLICRISTINA. A Secretaria de Educação do município comprou recentemente obras de Carlos Drummond de Andrade, que este ano foi o patrono do festival. No entanto, o acervo é pobre e defasado. Apesar de ter alguns computadores enviados pelo MinC há anos, não tem o acervo informatizado, e as condições de uso são precárias. Minha intervenção na FLICRISTINA abordou esse assunto, com o Secretário de Educação presente.

Esperamos que D. Marcos Barbosa mexa os pauzinhos junto ao Espírito Santo para a graça de colocar a biblioteca com seu nome à altura de sua missão e do homenageado. Sim, porque diante da tragédia que são as bibliotecas públicas brasileiras, até um ateu convicto e militante como eu pede ajuda a qualquer santo disponível.

Mexa-se, D. Marcos Barbosa, que sua cidade precisa.

Enquanto isso, note-se que a determinação do Ninil e da Ray pelo menos fez reviver a pequena e insuficiente biblioteca municipal.

UMA EXPERIÊNCIA DE PROMOÇÃO DA LEITURA

Alunos de escola pública de Cristina e a professora. A camiseta foi feita especialmente para o festival.

Contrastando com a inércia da biblioteca municipal, encontrei no sistema de educação de Cristina experiências muito interessantes de promoção da leitura entre as crianças.

Quando ia para a E.M. Carneiro de Rezende, onde eram feitas as oficinas programadas pelo Festival, encontrei a Coordenadora da área de Educação Infantil, prof. Luciana dos Santos, que me informou o rumo, e aproveitou para me dar um exemplar do que é o resultado do programa Diciolhares, desenvolvido pela coordenação, com ajuda de todas as professoras da rede. É uma espécie de dicionário analógico inspirada no que faz o autor colombiano Javier Naranjo, publicado no Brasil como “Casa das Estrelas”, pela Foz. As crianças, mobilizadas, ainda não alfabetizadas, falam para as professoras sua definição das palavras. Vejam amostras.

Segui até a E.M. Carneiro de Rezende, procurei a diretora, Elizabeth Cardoso e, com ela, pedi para ver a biblioteca escolar e a encarregada.

A professora Beatriz Barbosa, da biblioteca, nos recebeu em uma sala ampla, iluminada… e com poucos livros.

“Ano passado, uma enchente excepcional inundou a sala e destruiu todos os livros que tínhamos aqui”, explicou. Depois acrescentou que a escola vem fazendo, por iniciativa da diretora, festas para conseguir dinheiro e comprar novos livros. “Pedir doações só faz que as pessoas tragam o lixo de casa para a biblioteca”. Concordo, desde sempre.

A história da atuação da profa. Beatriz começa do modo mais comum a quem se vê encarregada da biblioteca. Depois de uma enfermidade grave, não podia mais exercer a regência de classes. Aposentou-se da Secretaria Estadual de Educação (onde havia trabalhado também, há anos, no programa Cantinho da leitura) e, na Carneiro de Rezende, começou ajudando na administração da escola. Depois foi designada para a biblioteca.

No primeiro ano ficou no papel tradicional, esperando que os alunos a procurassem para ajuda nas pesquisas e no uso da biblioteca. “Mas a Beatriz não é de ficar parada e logo mudou isso”, informou a diretora.

De fato, a professora Beatriz passou a organizar um programa dinâmico de incentivo à leitura no horário em que cada turma devia ir à biblioteca. Sim, na Carneiro Rezende agora tem “aula de biblioteca”, substituindo a passividade anterior. Começa com leituras sobre a dengue e outras epidemias. “Era um problema muito grave na região. Agora está melhor, mas conseguimos material de leitura, e os alunos são excelentes multiplicadores”. Depois são organizados ciclos de leitura fora da escola. “Café com Letras” faz leituras na casa dos alunos cujas famílias se dispõem a recebê-los para um lanche. “Gosto muito de trabalhar com contação de histórias, mas não sei contar. As mães sim, contam casos da família, leem com os meninos, é muito produtivo”. Há programas de “Leitura na Cachoeira”, já que Cristina tem uma bela queda d’água praticamente dentro da cidade. “A ideia é mostrar para as crianças que leitura não é coisa apenas de dentro da escola, pode e deve ser feita em qualquer lugar”.

Na FLICRISTINA do ano passado, durante uma das atividades na praça, uma criança circulou ressabiada e foi abordada por ela. Não estava matriculada, mas passou a integrar as atividades da biblioteca.

Perguntei se essas ações eram estendidas às outras unidades do município. Tanto Beatriz como a Beth informaram que a rede municipal é bem extensa (Cristina é o município de maior extensão da região), com escolas rurais e urbanas. Mas essas atividades, quando existem, são de iniciativas de cada escola.

Como a FLICRISTINA tratou da obra do Drummond, todo o colégio fez atividades relacionadas com a obra do itabirano. Desenhos, colagens, montagens, até guaches recortados e transformados em quebra-cabeças. Eles se divertiram muito reinterpretando os poemas. Achei particularmente divertido o desenho de uma garota por conta do “Tinha uma pedra no meio do caminho”. A garotinha se retratou… dando uma topada na bendita pedra.

A aluna não apenas encontrou a pedra no meio do caminho. Deu uma topada no verso dummondiano
Drummond entre os canteiros de flores da escola.

Na minha palestra, fui direto. Experiências como essas podem e devem ser generalizadas pelas escolas do sistema. Na infinidade de propostas de incentivo à leitura que existem por aí, cada uma dela tem defensores ferrenhos. Como não sou especialista nisso, sempre digo que a pedra de toque é avaliar as experiências bem-sucedidas e generalizá-las.

O Secretário de Educação estava lá.

Quem sabe D. Marcos Barbosa dá uma cutucada nele para avançar mais ainda nas boas coisas que faz?

FLICRISTINA

Em resumo, foram dois dias de uma experiência muito gratificante. Nem vou falar aqui das mesas que assisti, dos espetáculos musicais apresentados. Aprendi coisas, conheci excelentes pessoas e revi amigos. Não há mais espaço.

O importante a destacar é que experiências como a de CRISTINA estão se multiplicando. Todas as semanas ficamos sabendo de alguma iniciativa. Desde 2013, quando Galeno Amorin, na BN, abriu um edital cadastrando feiras de livros e festivais como essas para concorrer a uma modesta contribuição com fundos do FNC, e mostrou que já havia centenas de atividades semelhantes espalhadas pelo Brasil, podemos especular que algumas dessas devem ter se encerrado. Mas muitas outras vêm surgindo e as substituindo.

É uma esperança.

 

 

Feiras de Livros e Festivais de Literatura – Para Quê?

Na semana em que a FLIP ocupa muitas páginas dos jornais, espaço na Internet e nas conversas, vale a pena pensar um pouco sobre esses mecanismos de promoção do livro e da leitura: feiras de livros e festivais de literatura.
As bienais do livro (a de S. Paulo primeiro e depois a do Rio de Janeiro) costumavam ter, desde há muito tempo, o que se chamava de “atividades paralelas”. Paralelas por serem quase “marginais” ao objetivo principal desses eventos, que era apresentar ao público uma amostra do conjunto da produção editorial. Muitos títulos que sumiam rapidamente das livrarias eram garimpados nesses eventos, que por muito tempo estiveram circunscritos às duas cidades. A exceção era a Feira do Livro de Porto Alegre – a mais antiga, aliás – que se diferia das bienais por ser um evento montado ao ar livre.
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