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O problema das chamadas “obras órfãs” sempre esteve presente, embora raramente notado e apenas ocasionalmente provocando discussões. Já em 2013, em um post neste blog, escrevi que “a chamada obra órfã é aquela sobre a qual se supõe que ainda existe proteção quanto aos direitos autorais, mas que a) não há certeza sobre se o autor está vivo ou tenha falecido, e b) no caso de falecimento, se os setenta anos já transcorreram, e quem seria o herdeiro ou herdeiros dos direitos morais e patrimoniais da obra”.

Apesar da Lei de Direitos Autorais vigente no Brasil proibir inclusive o armazenamento em bancos de dados, guardar obras protegidas em computadores, microfilmar, etc., o problema não se fazia premente. Afinal, o que existia de obras órfãs geralmente estava nas bibliotecas e muito raramente provocava interesse para além dos círculos de pesquisadores interessados em tal ou qual tema (ou autor). Quando interessava algum assunto específico por um livro armazenado em uma biblioteca pública, geralmente era para fazer uma referência ou citação breve,

Esse mar de tranquilidade se agitou quando o Google lançou um projeto que pretendia digitalizar simplesmente todos os livros do mundo e disponibilizá-los em formato digital. O projeto acabou fracassando em seu escopo geral, inclusive por intervenção da Author’s Guild, o sindicato dos escritores dos EUA, que processou a empresa. O Google, e as bibliotecas pelo mundo afora, iniciaram projetos de digitalização de seus acervos, dando preferência, certamente, à acessibilidade das obras raras e as já há muito em domínio público.

A Biblioteca Nacional já digitalizou uma parcela considerável de suas obras raras  assim como muitas outras bibliotecas nacionais mundo afora. Um dos projetos mais ambiciosos (por abranger imensas coleções) é o da National Digital Library, dos EUA,  iniciativa capitaneada pelo historiador Robert Darnton, que explicou sua origem e escopo em um interessante artigo publicado na The New York Review of Books (aqui, para os interessados.

Entretanto, muitos problemas relacionados com direitos autorais continuavam e continuam pendentes. Como identificar os possíveis autores, herdeiros ou detentores dos direitos autorais de um período no qual, teoricamente, o autor poderia ainda estar vivo ou dentro do período de 70 anos depois de sua morte (que é o previsto na legislação brasileira, embora varie em vários países), para uma possível reedição? Isso, além da limitação de arquivamento em meios digitais ou mesmo analógicos, como os microfilmes?

O primeiro país a enfrentar a questão em profundidade, inclusive com medidas legislativas e práticas foi a França. Em 2012 foi aprovada legislação bastante complexa para a guarda, preservação, identificação e possíveis reedições de livros originalmente publicados na França. O projeto se tornou viável pelo fato da Biblithèque Nationale francesa já possuir um catálogo digitalizado de todas as obras ali publicadas no Século XX e XXI. O assunto foi esmiuçado em outro post que publiquei aqui.  Basicamente, esse catálogo permite que autores, editores ou herdeiros possam eventualmente identificar suas obras protegidas. As que não forem identificadas como protegidas se tornam disponíveis para publicação digital (exclusivamente) em um sistema chamado ReLire  e o sistema é gerenciado pelo sistema SOFIA, acrônimo para Societé Française des Intérets des Auteurs, que também é gestora da distribuição do recolhido em direitos reprográficos, e pelo empréstimo de livros pelas bibliotecas públicas, o chamado Droit de Prêt, ou direito de empréstimo.

O processo de elaboração, aprovação e execução dos dois sistemas foi acompanhado por autores e editores, através das respectivas associações e está em vigor.

Não ouvi mais falar de outras iniciativas do mesmo gênero (ainda que possam haver) até algumas semanas atrás, quando o CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e no Caribe, que tem sua sede em Bogotá, anunciou que o Congresso colombiano havia aprovado lei, já sancionada, que encaminhava as duas questões: direitos autorais das “obras órfãs” e os mecanismos de autorização de reedições.

A legislação colombiana está bem centrada na permissão para que as bibliotecas públicas fortaleçam seu papel na conservação, controle e divulgação do patrimônio bibliográfico (e documental) do país, em seus diferentes suportes. Veja aqui o texto integral da lei.

A legislação abrange também o conjunto de direitos conexos (reprodução de sons e imagens) e me pareceu bem mais completa que a legislação francesa. O que falta na legislação colombiana – e que já está suprido na normativa francesa – são os instrumentos práticos de gerenciamento e controle das autorizações para que essas questões se tornem realidade.

De qualquer modo, a iniciativa colombiana (a legislação contou com o apoio técnico do CERLALC) coloca o país no pelotão de vanguarda na atualização da legislação de direitos autorais não apenas na América Latina.

Oxalá essa iniciativa e esse comportamento do Congresso e do governo colombiano fossem estudados, adaptados e aplicados aqui. É uma legislação que tem impacto no acesso do patrimônio bibliográfico pelo conjunto da população de um país, e não apenas uma manifestação de desejos e proclamação de boa vontade.

Direito de Empréstimo

Capturar
Nos últimos anos vem se firmando, principalmente na Europa, o recolhimento para autores e editores de somas que as bibliotecas pagam bibliotecas pelo empréstimo das obras ainda com direito de autor válido. Já escrevi sobre o surgimento e história das RROs (Reproduction Rights Organizations, ou seja, as Sociedades de Arrecadação de Direitos Reprográficos). E remeti também ao site da IFFRO mas vale a pena sintetizar aqui o assunto.

A questão dos direitos reprográficos surgiu, obviamente, quando máquinas de copiar se generalizaram, do final dos anos 1960 em diante. O nome da Xerox, uma das empresas pioneiras na área, chegou a ser usado como sinônimo de qualquer cópia reprográfica (“xeroqueia isso aqui”). As disposições da Convenção de Berna sobre o chamado “fair use” estavam centradas, até então, nas reproduções não autorizadas de obras protegidas em formato impresso, e regulavam o tamanho e a forma das citações, de modo que estas não caracterizassem plágio ou cópia não autorizada. Com as máquinas “xerox” a coisa mudou de figura e levou, principalmente a partir dos anos 1970, ao surgimento dessas sociedades de arrecadação de direitos reprográficos. A IFRRO começou a ser pensada em 1980, a partir do estabelecimento de um grupo de trabalho conjunto da Associação Internacional dos Editores (IPA) e do Grupo Internacional de Editores de Obras Científicas, Técnicas e de Medicina (STM). Em 1988, em uma reunião em Copenhagen, a IFRRO foi formalmente fundada como federação das RROs existentes, a mais antiga das quais havia sido constituída apenas em 1973.

Basicamente, uma associação de administração de direitos reprográficos está constituída por autores e editores, unidos na administração desses direitos. Os resultados do recolhimento das licenças é geralmente dividido entre os dois tipos de interessados, deduzidos antes os custos de administração, que estão por volta de 10% do arrecadado. Informações adicionais sobre esse processo podem ser vistas nos sites mencionados.

O recolhimento de direitos dava-se essencialmente através de dois mecanismos: a) licenciamento das reproduções, geralmente cobrada por página copiada de um livro; b) taxas sobre equipamentos de reprografia, cobradas no momento em que estes são vendidos. Os modos de cobranças, a combinação entre os fundos provenientes do licenciamento ou das taxas têm variações nacionais importantes, que os interessados podem conhecer mais de perto também nos sites mencionados. A maioria das RROs está na União Europeia, mas a Copyright Clearance Center, dos EUA, é uma das maiores sociedades de arrecadação, recolhendo mais de 250 milhões de dólares em 2011.
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FRANÇA ENCAMINHA SOLUÇÃO PARA “OBRAS ÓRFÃS”

Já tratei aqui da questão das chamadas “obras órfãs” e de como, com a possibilidade de digitalização, a recuperação desses títulos se tornou possível e é importante sob vários aspectos: para as bibliotecas, na preservação e ampliação de acervos; e para a reedição de livros há tempos fora do mercado.

Lembrando, “obras órfãs” são aquelas cujos direitos autorais podem ou não ser ainda vigentes (passam a domínio público setenta anos após a morte do autor), mas que estão fora do mercado, seja pelo desaparecimento da editora original, seja para dificuldade em localizar os autores para conseguir as permissões para reedição. Além disso, a lei atual proíbe a digitalização – mesmo para arquivamento – sem prévia licença dos detentores de direitos. Enfim, mais detalhes sobre o assunto podem ser visto no post mencionado.

A Biblioteca Nacional da França e o Ministério da Cultura daquele país, entretanto, tomaram uma iniciativa, que começa a ser posta em prática este ano, para equacionar o problema. O Congresso Nacional Francês aprovou, em 2012, alterações na legislação de direito autoral, transferindo a tutela das “obras indisponíveis” para uma sociedade de arrecadação que pode autorizar novas edições digitais (nunca em papel), tornando as obras ReLegíveis (o programa é chamado de ReLire em francês).

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