Há muitos anos os editores e autores se preocupam com a cópia reprográfica de livros (as “cópias xerox”, como são conhecidas, embora a empresa deteste esse uso de seu nome), principalmente na área de não ficção. Para editoras científicas o assunto é muito sério, já que o investimento nessas publicações é alto, o retorno se dá através de operações com clientes institucionais – universidades, centros de pesquisa, redes de bibliotecas – que, em tese, estariam vulneráveis às cópias individuais desses materiais.
Os autores e editores de livros técnico-científicos em geral também sempre foram alvo das cópias não autorizadas de suas publicações. O que, certamente isso não preocupa certa categoria de “professores-doutores” que ganham mais com o prestígio de terem sido publicados do que com os direitos autorais provenientes das vendas.
Acrescente-se a isso a falta de alternativas para os autores de livros técnico-científicos conseguirem remuneração adicional. De fato, salvo um punhado de conferencistas que vende seus livros nas palestras, acho que um professor de sociologia ou de matemática ou física, fazer uma apresentação como “stand-up” traria mais choro que risos e remuneração. Cantar, então, nem se fala.
Durante muito tempo essa questão se apresentou pura e simplesmente como pirataria, entendida como publicação não autorizada, clandestina, de tiragens de livros editados por outras editoras. Quando morei no Peru, no início dos anos setenta, fiquei surpreso ao constatar que se vendia nas ruas uma enorme variedade de títulos originalmente publicados em outros países de fala espanhola, impressos em papel jornal, às vezes com formatos diferentes dos originais e um acabamento precário. Esse fenômeno se repetia, segundo soube, em proporções ainda maiores na Ásia, incluindo-se aí a Índia e a China, com os livros em inglês.
Com o aparecimento das máquinas de reprografias (as “xerox”) o foco começou a mudar, com a cópia dos originais paulatinamente deixando de ser impressa para ser feita, exemplar por exemplar, praticamente “on demand”.
Para encurtar a história: os editores de publicações CTM (“cientific, technical and medical”), os livros técnico-científicos tiveram que enfrentar o problema desde muito antes da Internet. E, ao contrário da RIIA – Recording Industry Association of America, adotaram uma estratégia para enfrentar a situação. Estratégia essa que, vista da perspectiva de hoje, é muito mais parecida com a solução iTunes da Apple (vender barato cada música e não impor a venda do CD/LP físico) que a de procurar esmagar a possibilidade da cópia.
Essa solução foi o licenciamento da cópia de trechos de livros, a preços acessíveis, com o rendimento distribuído, através de mecanismos estatísticos, para autores e editores.
É uma estratégia de sucesso.
Uma das primeiras instituições de licenciamento foi a Copyright Clearance Center, nos EUA, fundada em 1976. Hoje o CCC (acrônimo que provoca lembranças infelizes para os sobreviventes da literatura militar) licencia conteúdo para as grandes empresas, universidades, governos e gerou um rendimento de 205 milhões de dólares ano passado, apenas com as comissões que recebe por lidar com os licenciamentos, empregando mais de 200 pessoas.
Outro exemplo notável é o da Kopinor, a agência norueguesa de licenciamento, fundada em 1980. País com menos de cinco milhões de habitantes, a Noruega gerou e distribuiu para autores e editores, noruegueses e estrangeiros, US $ 35.706.000 em 2010, e desde 1980 já pagou mais de seiscentos e quinze milhões de dólares para os beneficiários desses direitos autorais. Através de negociações, a Kopinor recolhe royalties de licenciamento sobre materiais sujeitos a direito autoral, do governo norueguês, universidades, bibliotecas (para cada livro emprestado a biblioteca paga uma taxa à Kopinor), empresas, igrejas, etc.
Outros países foram seguindo essa tendência e estabelecendo suas organizações de licenciamento, sempre atentas a alguns eixos: a) reforço da legislação de proteção aos direitos autorais; b) educação, partindo do princípio de que proteger o direito autoral é estimular e defender a criatividade; c) estimular ações governamentais que possibilitem o acesso legal da população ao material protegido por direitos autorais, ou seja, bibliotecas, e preferentemente que os governos paguem taxas por esse acesso aos autores e editoras; d) licenciamento a preços razoáveis do material protegido.
As ações legais de repressão aos que infringem os dispositivos legais nunca deixou de ser considerada nas diretivas dessas organizações. Mas sempre foi vista mais como parte de ações educativas, exemplares, do que como estratégia eficaz para coibir a pirataria e a infringência aos direitos dos autores e editores.
Toda essa experiência sempre foi acompanhada e incentivada pela International Publishers Association – IPA, que mantem um Comitê especializado para assuntos de Copyright. A partir da IPA foi fundada, em 1980, a IFFRO – International Federation of Reprodution Rights Organizations, ou Federação Internacional de Organizações de Direitos de Reprodução. A IFFRO tem hoje membros em todos os continentes e trabalha em estreita colaboração com a WIPO – World Intelectual Property Organization, que é quem administra o descendente da famosa “Convenção de Berna” sobre direitos autorais, a “mãe” de toda a legislação sobre propriedade intelectual e direito de autor.
E no Brasil?
Evidentemente o problema atingiu a indústria editorial local também. Os que já tem um pouco mais de idade podem se lembrar da enorme quantidade de teses – de mestrado e doutorado – que eram publicadas nos anos 70 e até meados dos anos 80. Antes da proliferação da reprografia, havia mercado para isso. Com a multiplicação das copiadoras, esse segmento praticamente desapareceu. Teses hoje podem ser consultadas (e copiadas) nos bancos de teses das universidades ou no portal do IBCT – Instituto Brasileiro de Informação Científica e Tecnológica. Esse mercado acabou para a indústria editorial.
Mas o problema, obviamente, não.
No começo dos anos 90, a CBL – Câmara Brasileira do Livro, instalou uma Comissão para debater e apresentar propostas relacionadas com o assunto. A partir das informações da IPA, essa Comissão, que foi presidida por Raul Wassermann, da Summus, propôs a criação da Associação Brasileira de Direitos Reprográficos – ABDR. A ABDR foi fundada em 1992 e Raul Wassermann foi seu primeiro presidente.
A missão inicial da ABDR, que contou em seu período inicial com a ajuda do Dr. Sérgio D’Antino, um dos principais especialistas na legislação da área, cobria os pontos da proposta da IFRRO – legislação, educação, políticas públicas e licenciamento. O processo de implantação da ABDR foi lento e difícil, até porque várias editoras não aceitavam a premissa do licenciamento e defendiam ações repressivas intensas como resposta à ação dos “xeroqueiros”.
A ABDR prosseguiu seu trabalho e, por ocasião da discussão e votação da atual Lei de Direitos Autorais no Congresso (Lei 9.610/98), propôs ao relator, o então deputado Aloísio Ferreira Nunes, a redação que prevaleceu, estabelecendo o direito de cópia livre apenas para “pequenos trechos” dos livros.
Na ocasião de discussão dessa proposta, estava claro que essa redação seria uma medida fundamentalmente defensiva, destinada a induzir o aumento do licenciamento. Por essa época também a Xerox do Brasil, que não gostava de ver seu nome associado a uma prática ética e legalmente contestável, apoiou a ABDR com recursos e logística para que se assinassem acordos de licenciamentos com muitas copiadoras (infelizmente não tenho acesso aos dados estatísticos, mas o número aumentava progressivamente).
A resistência de um grupo de editoras a essa política, entretanto, continuou também aumentando. Até porque, antes de conseguir remunerar e distribuir os recursos arrecadados, a montagem de uma estrutura de licenciamento, fiscalização e administração consumia os recursos arrecadados e mais o investimento da CBL.
O resultado foi que, no ano 2000, esses editores, seguindo uma das mais lamentáveis e tradicionais tendências do mercado editorial brasileiro, resolveram fundar mais uma associação. E assim nasceu a ABPDEA – Associação Brasileira de Proteção dos Direitos Editoriais e Autorais, com sede no Rio de Janeiro. A ABPDEA deixava claro que considerava a solução da repressão como a mais correta, e divulgou amplamente o fechamento de copiadoras, prisão de “xeroqueiros”, etc.
A divisão obviamente não facilitou a vida de ninguém.
Pior, a questão acabou entrando na disputa da sucessão da Raul Wassermann na presidência da CBL, em 2002. O Sr. Oswaldo Siciliano, adversário de José Henrique Grossi, o candidato apoiado por Wassermann, comprometeu-se com a ABPDEA a apoiar suas posições, caso eleito. E foi, como se sabe.
O resultado foi que já em meados de 2003 as duas associações foram “fundidas”. Na verdade, da ABDR só sobrou o nome. As formas e métodos de atuação que passaram a ser executadas desde então foram as da antiga ABPDEA, que não faziam inveja aos da RIIA a não ser pela menor capacidade econômica dos brasileiros: apreensões, prisões, fechamento de copiadoras, e liquidação dos contratos de licenciamento.
O resultado, lamentavelmente, também foi parecido com o da indústria musical: foi oferecido de bandeja ao moribundo movimento estudantil um prato feito, o da “luta contra os gananciosos editores, que pouco se importam com a formação dos jovens universitários”.
Apenas muito recentemente algumas das editoras envolvidas nesse imbróglio resolveram retomar iniciativas de licenciamento de trechos de obras protegidas, com o programa Pasta do Professor, nome infeliz mas que retoma, timidamente, o que já se defendia há mais de dez anos.
A combinação da intolerância e da repressão com o caldo de cultura da “internet livre” (que não vou discutir aqui), está no fundo das propostas de modificação da Lei de D.A. que propõem a liberação da cópia de livros.
Como já disse antes, existem aspectos da Lei de D.A. que devem ser aperfeiçoados, especificamente no que diz respeito aos livros, impressos e eletrônicos. Não vou entrar na discussão das questões relacionadas com música e imagem, mas é evidente que questões como o das obras fora de mercado, os livros “órfãos” e outros aspectos da legislação devem ser discutidos e atualizados. Mas o fato é que os autores e os editores perderam a batalha ideológica da proteção de seus direitos, e vão ter que partir para uma postura meramente defensiva para que o licenciamento obrigatório, que de alguma forma deverá ser acolhido pela nova legislação, seja pelo menos oneroso e não abra completamente o espaço para a apropriação gratuita do trabalho intelectual.
Por gentileza, qual é a fonte da informação de que a ABDR propôs ao deputado Aloísio Ferreira Nunes, a redação que prevaleceu, para o artigo 46 incisivo II da Lei de Direitos Autorais 9.610/98? A pergunta se deve ao fato de estar realizando uma pesquisa acadêmica sobre essa legislação e não encontrei nada no processo legislativo fornecido pela Câmara a esse respeito. Desde já agradeço.
Não há nada no processo legislativo porque foram conversas entre as partes, que mostraram a conveniência da emenda, que foi apresentada por outro parlamentar e aceita pelo então deputado.