Arquivo da tag: Ditadura

Um abril para não esquecer

Essa coisa dos anos “redondos” às vezes é muito chata. Mas há momentos em que se torna importantíssimo lembrar de coisas, principalmente por aqui na Pindorama, com essa história de que se esquece tudo.

Outro dia, na academia, meu instrutor, que é um jovem aí dos trinta e poucos anos, acabou puxando pelo assunto da Ditadura. Acontece que eu tenho a coluna detonada, já operei uma hérnia de disco e agora apareceu outra. Uma nutricionista iridóloga, Célia Mara Melo Garcia, depois de me examinar, perguntou se, aí pelos meus vinte anos, eu havia sofrido uma queda, um “trauma forte”. Respondi que sim, mas que não havia sido queda. Foi tortura, por eu ter sido preso político precisamente entre os 21 e os 23 anos. Isso aparece na minha íris, segundo ela, como um achatamento.

Bom, contei essa história para o instrutor, e comentei que achava que pelo menos uma parte dos problemas da minha postura e de má articulação corporal vinham dessa época. Para que ele entendesse o que, talvez, fosse parte do meu problema e das dores que eventualmente aparecem. Bom, a aula inteira seguiu nessa toada, ele querendo saber detalhes não sobre minha vida, mas sobre a Ditadura. Claro que falei o que pude naquele tempo, e tenho certeza de que o assunto vai voltar.

É um exemplo da importância da Comissão da Verdade e, a propósito, do tanto que o assunto apareceu na imprensa nesses dias. A maior parte da população do país não viveu aqueles anos, ou era criança na época. Ótimo para eles não terem passado pelo que minha geração sofreu.

Foi bom não terem passado pelos sofrimentos, pelo medo, pela alienação brutal do “milagre econômico” e as ilusões do Brasil Grande. Mas pena que também não tenham vivido a efervescência cultural, principalmente de 1968. Isso também merece ser lembrado, até para se entender o nojo que provocaram as atitudes de algumas pessoas que foram fantásticas naquela época, e ano passado se uniram ao obscurantismo lavignesco. Mas isso, deixa pra lá.
Continue lendo Um abril para não esquecer

Laura passou no vestibular para a UnB.

PM e Exército Invadem a UnB em 1968
PM e Exército Invadem a UnB em 1968

Este blog é sobre o mercado editorial.

Mas hoje, no primeiro post do ano, trago a notícia de que minha neta, Laura Fraiz-Grijalba Lindoso, passou no vestibular para a Faculdade de Artes da UnB. Universidade que faz parte também da minha história.

Eu e Maria José estudamos lá e lá nos conhecemos. Ainda estudantes, já trabalhávamos como jornalistas, ela na sucursal do JB, sob a batuta do Castellinho, e eu na sucursal do Estadão, dirigida então pelo Evandro Carlos de Andrade. Ela se formou em comunicação e eu tive a honra de estar na primeira leva de alunos expulsos das universidades federais pelo famigerado decreto 477 – outro que vai na conta dos “escrúpulos ao lixo” do Jarbas Passarinho.

Estávamos na UnB em um período em que, embora já abalada pelas intervenções da ditadura, a universidade ainda refletia muito do espírito do Darcy Ribeiro. Em 68 estávamos lá, nesse que foi o período mais criativo e ativo da história moderna brasileira. Participamos da efervescência do movimento estudantil – a porrada do cassetete da PM na invasão do campus em 68 ainda dói até hoje. E nos divertimos, namoramos, cantamos e vivemos com muita intensidade.

O ambiente daquela Brasília e daquela UnB estão retratados de forma emocionante no primeiro capítulo de “O Fantasma de Luís Buñuel”, da Maria José.

Da nova geração, a Galiana foi a primeira a passar por lá, fazendo o mestrado em ecologia (e como ficamos orgulhosos com sua aprovação com louvor). Depois meus sobrinhos Alex(que estudou filosofia, mas eu nem sei que filosofia ensinam hoje na UnB) e Maria Cris, que agita o Centro Acadêmico de Direito, aporrinhando os sabichões que ostentam o títulos de professores da UnB e não aparecem para dar aulas ou chegam sistematicamente atrasados. Na boa tradição dos tios. Outros sobrinhos também passaram por lá: Ana Amélia na psicologia, e Serginho experimentou fazer economia (como o pai) e desistiu. Acabou fazendo direito.

Agora a Laura. Quarenta e tantos anos depois daquela época maravilhosa, depois da nossa militância, da prisão, do exílio e da volta e da vida.

Espero que ela encontre a participe da retomada da UnB como um foco de diálogo, de pensamento crítico e criativo.
E viva seu período na UnB tão bem quanto nós vivemos.

Livros contra a ditadura

livros contra023
O ano de 2013 foi especialmente movimentado quanto à discussão da repressão política no período da ditadura civil-militar instaurada em 1964. O golpe que derrubou Jango, em 1964, ano que vem completará cinquenta anos, e passou por uma nova etapa de estudos e crítica. Foram instauradas Comissões da Verdade – não apenas a de âmbito nacional, como também em vários estados e mesmo em municípios, como é o caso de São Paulo.

A tortura, os assassinatos e desaparecimentos, a Operação Condor, que uniu as ditaduras do Cone Sul nas atividades de repressão, voltaram ao noticiário, às análises e à descoberta de novos documentos e articulações. Mesmo quando a ação da justiça tarde (e falhe), vimos jovens “esculachando” torturadores e outros agentes da repressão.

Houve também a publicação de estudos e análises de aspectos específicos da resistência à ditadura. No final do ano foi lançado o “Livros Contra a Ditadura. Editoras e Oposição no Brasil – 1974-1984”, escritor por Flamarion Maués e publicado pela Publisher.

Pelo tema, merece esta coluna de final de ano. Flamarion Maués é doutor e mestre em História pela USP e foi coordenador da Editora da Fundação Perseu Abramo por onze anos. Une, portanto, a formação acadêmica com a mão na massa da condução de uma editora eminentemente política (a Perseu Abramo é a Fundação de estudos do PT).

Cada vez mais se conhece hoje os múltiplos aspectos da luta contra a ditadura. As organizações que se empenharam na resistência armada, os movimentos de massa que foram surgindo e se estruturando em bairros e favelas, o movimento sindical e a resistência civil encarnada na frente política que foi o MDB/PMDB.

Maués estuda outra faceta dessa resistência, expressada por algumas dezenas de editoras, em sua maioria micro ou pequenas empresas, que ele caracteriza como “editoras de oposição”. Além de editoras já conhecidas e de maior porte que estiveram desde o início contra a ditadura, como é particularmente o caso da Civilização Brasileira sob a direção do Ênio Silveira, além da Brasiliense, da Vozes e da Paz e Terra (essa fundada nos primeiros anos depois do golpe), a partir do início da “distensão” do governo Geisel surgiram algumas dezenas de editoras de caráter eminentemente político, que representavam iniciativas de oposição.

“O que caracterizava o conjunto das editoras de oposição era seu perfil e sua linha editorial claramente oposicionistas, sem que isso implicasse que essas empresas tivessem necessariamente vinculados a políticas explícitas. O fundamental é que elas deram expressão a iniciativas de oposição. E houve e casos, inclusive, de editoras de oposição surgidas nos anos 1970 e 1980 que foram criadas por partidos e grupos políticos, alguns deles na clandestinidade e na semiclandestinidade”. A essas Maués caracteriza como um subcampo de editoras “engajadas” dentro do conjunto maior das editoras de oposição.

Flamarion Maués divide o livro em duas partes bem distintas. A primeira é de caráter mais geral e procura mostrar a situação em seu conjunto. A segunda parte estuda três casos específicos, o das editoras Ciências Humanas, Kairós Livraria e Editora, e a Editora Brasil Debates. Todas do grupo das engajadas e fundadas por militantes respectivamente do PCB, dos trotskistas da Libelu (Organização Socialista Internacionalista – OSI, braço de uma das frações da Quarta Internacional) e do PCdoB. Esses três “estudos de caso” são reveladores também de táticas diferenciadas e de formas de vinculação também distintas dos três grupos políticos com seus “braços editoriais”.

Maués levanta a existência de cerca de quarenta editoras de oposição que surgiram ou aturam no período estudado. Destaca que, como usou o “parâmetro temporal [d]a década de 1970 e parte da de 1980, ou seja, o período já posterior ao AI-5, algumas editoras que tiveram importante atuação na edição de obras políticas nos anos 1960 não aparecem no meu levantamento, tais como as editoras Saga, Fulgor, Felman-Rego, José Álvaro Editor, Laemmert, GRD, entre outras”. Noto eu que algumas dessas e outras não citadas, como a Vitória, eram também vinculadas organicamente a partidos de esquerda, especialmente o PCB.

O livro também foca exclusivamente em quatro estados, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Se existiram ou não editoras com esse perfil em outros estados (desconfio que pelo menos em Pernambuco e Bahia isso pode ter acontecido) o seu estudo se torna difícil também pelo fato das bibliotecas brasileiras, e em especial a Biblioteca Nacional, não terem um trabalho de catalogação de editoras e estudo da bibliografia presente em seus acervos por temas. Aliás, quando existe essa separação, geralmente esta se dá na constituição dos famosos “Infernos”, as seções de livros de acesso restrito, principalmente por serem classificados como pornográficos, embora haja também a inclusão de livros políticos.

As desventuras dessas editoras com a censura é abordada no livro. Analisando a lista dos 434 livros proibidos durante a ditadura, levantada por Deonisio da Silva já em 1984, o autor constata que a maior parte das obras censuradas se enquadra no critério de “afronta à moral e aos bons costumes”, embora 16% dos livros proibidos o fossem por razões políticas. O autor cita também um dado do levantamento feito por funcionários do Arquivo Nacional de Brasília, apresentados no livro de Sandra Reimão (Repressão e Resistência, Edusp/Fapesp, 2011) no qual se mencionam 492 livros submetidos à análise do DCDP, o órgão oficial da censura do Ministério de Justiça, dos quais 313 foram vetados, na sua maioria obras “eróticas/pornográficas”. Mais uma vez se nota o problema da desorganização dos arquivos primários brasileiros.

Maués considera que “a censura aos livros políticos parece ter sido mais seletiva do que a feita aos livros considerados “imorais” ou “indecentes””. A impressão que eu tenho é que a censura aos livros era decorrente principalmente a partir de denúncias, e as “senhoras de Santana” estavam mais preocupadas com a indecência. A censura a músicas e ao teatro, ao contrário, foi muito mais atenta à questão política.

O livro de Maués, aqui brevemente recenseado, tem a virtude de mostrar um lado importante da resistência à ditadura no campo da cultura. Feita principalmente a partir de micro e pequenas empresas, com editores que entendiam sua tarefa como missão política e cultural. Embora tivessem consciência da importância de manter a lucratividade das empresas, esses editores entendiam sua missão de um modo muito mais amplo e especificamente político.

Um bom livro para encerrar o ano. Que o próximo nos traga mais e melhores notícias sobre a política cultural, são meus votos.