No post anterior, comentei sobre algumas características do projeto de lei da Senadora Fátima Bezerra sobre a fixação de preços de venda ao consumidor, chamei atenção para a ementa do projeto, que se propõe a instituir uma Política Nacional do Livro, e disse que, sob esse aspecto, o projeto deixava ainda muito a desejar.
Repito, para deixar bem claro, que tenho muita admiração pela Senadora Fátima Bezerra, que é defensora do livro e da leitura e uma das mais dinâmicas componentes da Frente Parlamentar do livro. As críticas são muito mais no sentido de mostrar o quanto falta de integração e decisão política do executivo – que o Congresso tenta remediar com essa e outras iniciativas – para que tenhamos realmente uma política pública de respeito ao livro, à leitura e às bibliotecas.
Quero destacar algumas questões já consolidadas nos sucessivos aperfeiçoamentos da Loi Lang, e que efetivamente contribuem – juntamente com outras medidas legislativas francesas – para o estabelecimento dos marcos legais para uma política do livro.
O art. 3 da Loi Lang, além de limitar os descontos (até nove por cento, para vendas a bibliotecas e órgãos públicos), inclui três parágrafos que convém examinar mais de perto, por aumentarem a margem de desconto sobre o preço de capa para até 9%:
“Par dérogation aux dispositions du quatrième alinéa de l’article 1er et sous réserve des dispositions du dernier alinéa, le prix effectif de vente des livres peut être compris entre 91 % et 100 % du prix de vente au public lorsque l’achat est réalisé :
1° Pour leurs besoins propres, excluant la revente, par l’Etat, les collectivités territoriales, les établissements d’enseignement, de formation professionnelle ou de recherche, les syndicats représentatifs ou les comités d’entreprise ;
2° Pour l’enrichissement des collections des bibliothèques accueillant du public, par les personnes morales gérant ces bibliothèques. Le prix effectif inclut le montant de la rémunération au titre du prêt en bibliothèque assise sur le prix public de vente des livres prévue à l’article L. 133-3 du code de la propriété intellectuelle.
Le prix effectif de vente des livres scolaires peut être fixé librement dès lors que l’achat est effectué par une association facilitant l’acquisition de livres scolaires par ses membres ou, pour leurs besoins propres, excluant la revente, par l’Etat, une collectivité territoriale ou un établissement d’enseignement.”
Coloquei o texto original francês para que, eventualmente possam me corrigir. Mas a lei declara que o limite de cinco por cento é estendido até nove por cento quando a venda – pelas livrarias – for feita para “suas necessidades próprias, excluída a revenda”, para o Estado, coletividades territoriais, estabelecimentos de ensino, de formação profissional ou de pesquisa, sindicatos representativos ou comitês de empresas.
Ainda que a legislação não estabeleça os limites do preço fixo para os livros escolares, o que, no meu entender, ainda deixa grande brechas para a concentração das compras estatais diretamente nas editoras, fecha uma das portas usadas pelas escolas particulares, que só poderão adquirir livros com descontos maiores caso esses sejam distribuídos – não revendidos – aos alunos. Assim, o truque das escolas particulares, que abrem CNPJs como “livrarias” para adquirir os livros das editoras e revendê-los estaria fechado. Teriam que partir para uma solução mais parecida com a oferecida pelos “sistemas de ensino”, que incluem o material didático nas anuidades, sem cobranças adicionais.
Tem mais, nessa redação atual da Loi Lang.
O parágrafo seguinte da lei declara que o preço das compras para bibliotecas públicas “pelas pessoas morais que as gerem”, além de continuar sujeitas a esses limites ampliados de descontos, incluem “o montante da remuneração a título de empréstimo”, seguindo legislação específica do Código de Propriedade Intelectual, o mencionado artigo L-133-3. Essa mencionada remuneração se refere ao “direito de empréstimo”, assunto que tratei aqui. Foi instituída pela Lei 2003-517, de 18 de junho de 2003, e o artigo reza o seguinte:
“La rémunération prévue au second alinéa de l’article L. 133-1 comprend deux parts.
La première part, à la charge de l’Etat, est assise sur une contribution forfaitaire par usager inscrit dans les bibliothèques accueillant du public pour le prêt, à l’exception des bibliothèques scolaires. Un décret fixe le montant de cette contribution, qui peut être différent pour les bibliothèques des établissements d’enseignement supérieur, ainsi que les modalités de détermination du nombre d’usagers inscrits à prendre en compte pour le calcul de cette part.
La seconde part est assise sur le prix public de vente hors taxes des livres achetés, pour leurs bibliothèques accueillant du public pour le prêt, par les personnes morales mentionnées au troisième alinéa (2°) de l’article 3 de la loi n° 81-766 du 10 août 1981 relative au prix du livre ; elle est versée par les fournisseurs qui réalisent ces ventes. Le taux de cette rémunération est de 6 % du prix public de vente.”
Ou seja, as compras para bibliotecas públicas, além de serem feitas nas livrarias, geram recursos para o pagamento dos direitos de empréstimo, a que fazem jus, em partes iguais, os autores e os editores, de acordo com um sistema que prevê a alíquota calculada a partir do preço do livro. São os 6% sobre cada venda para biblioteca, pagos pelos vendedores, mais uma contrapartida orçamentária integrada pelo orçamento público. Dessa maneira, o desconto real das livrarias para vendas para bibliotecas públicas se reduz a 3% sobre o preço de capa.
Com esse dispositivo, a legislação francesa ampliou o disposto na legislação de proteção do direito de autor, incluindo, nesse caso, a remuneração pelos livros emprestados nas bibliotecas. Já tratei desse assunto aqui e aqui.
Nos mencionados posts faço um levantamento também do que é pago pelos licenciamentos para cópias reprográficas, recolhidos pelas associações de licenciamento de direitos reprográficos. Em vários países da Europa, nos Estados Unidos, no Canadá e em outros, a tendência, estimulada e defendida pela International Federation of Reproduction Rights Organisations – IFRRO, é a de licenciar onerosamente a reprografia de livros. Ao contrário da brasileira ABDR, que insiste em práticas retrógradas e policialescas, pelo resto do mundo a reprografia virou fonte de renda para as editoras e autores.
Existem outras medidas legislativas e administrativas francesas que escoram e dão consistência a uma política nacional para o livro e a leitura naquele país. Mencionaria a legislação que trata especificamente das “obras órfãs”, aquelas que, pela data de publicação, pode se supor que o autor possa ainda estar vivo, mas não foi localizado. O Ministério da Cultura francês, atualmente sob a responsabilidade da Ministra Fleur Pellerin, atua com firmeza no apoio – inclusive financeiro – às livrarias e editoras francesas, como mostrei na reprodução de um post da Publishing Perspectives. O Centre National du Livre é uma instituição importante nessa área. Infelizmente, diante das restrições da Comunidade Europeia, pontos importantes continuam em aberto, em especial a questão do IVA sobre livros, em particular as diferentes faixas de tributação para livros físicos e digitais.
O projeto de lei da Senadora Fátima Bezerra, na minha opinião, é uma boa iniciativa. Porém incompleta. Quando digo que não é completa, refiro-me precisamente ao fato de que é necessário um conjunto de medidas para a constituição de uma Política Nacional do Livro.
Para as livrarias, é importante dizer, e com todas as letras: as que não se modernizarem, não enfrentarem as questões de como fazer que seus clientes achem os livros, não encontrarem um modo de participar do comércio do livro eletrônico, irão sucumbir e desaparecer diante da concorrência. O projeto as ajuda, mas não as salva automaticamente. Nivela um pouco mais o campo para uma concorrência menos predatória, é verdade, mas não resolve as questões de gestão e modernização tecnológica que caracterizam boa parte do mercado editorial brasileiro (livrarias e editoras). As livrarias independentes dos EUA, sem a proteção do “preço fixo” (mas com descontos iguais para todas), conseguiram reagir e se recuperar, como mostra a entrevista com Oren Teicher, o executivo da ABA que esteve no Brasil ano passado.
Paralelamente à iniciativa da Senadora Fátima Bezerra, outro projeto de lei tramita no Congresso. É o que foi apresentado pelo Senador José Sarney, e já aprovado no Senado, criando o Fundo Nacional Pró-Leitura (FNPL) PL 1.321/2011, atualmente relatado pelo Deputado Rafael Motta (PROS/RN).
O Deputado Rafael Motta esteve em várias mesas da FLIP, defendendo seu projeto, e afirmou que assumiu a relatoria na Câmara por se considerar comprometido com a ideia da criação de um fundo específico para o financiamento de bibliotecas e programas de incentivo à leitura.
É preciso recuar um pouco e contar uma historinha.
Em 2004, eu estava contratado, pelo CERLALC, para uma consultoria ao projeto então conhecido como “Fome de Livro”, encabeçado pelo Galeno Amorim. Percebi um dia que a Receita Federal estava propondo a isenção do PIS/PASEP-COFINS para “livros técnico-científicos”. Chamei a atenção do Galeno para o assunto. O caso é que, como produto, o livro é objeto de uma classificação fiscal por conta de suas características físicas, sem levar em consideração o conteúdo.
Argumentei que, se a Receita Federal pretendia que agentes fiscais “escolhessem” os livros classificáveis como “técnico-científicos”, estariam infringindo a Constituição Federal, pois, de fato, estavam exercendo o papel de censores. Mas, como a RF aceitava aquela desoneração, abria-se o caminho para propor que a medida abrangesse todas as editoras e livrarias.
Galeno Amorim conseguiu articular a proposta, com o aval do Palloci, então Ministro da Fazenda, e o Senador Sarney apresentou emenda na tramitação de uma medida provisória “ônibus” que estava no Congresso, e a medida acabou aprovada.
Nas conversas para preparação dessa emenda, lembrei que a desoneração variava de 3,5 a 8% do faturamento das empresas, segundo seu regime tributário, e que seria uma oportunidade de propor aos editores e livreiros que, em troca dessa desoneração, fosse instituída uma contribuição de 1% sobre o faturamento, precisamente para financiar um fundo de apoio a projetos de bibliotecas e programas de leitura, com administração compartilhada por representantes dos autores, livreiros, editores, professores e promotores de leitura e do governo. Na minha mente, algo parecido com o que existe no chamado “Sistema S” – SESC, SENAC, SESI, SENAIS, SEBRAE e congêneres.
Conhecendo a turma das empresas, insisti ao máximo para que a desoneração já viesse acompanhada da nova contribuição e constituição do Fundo.
Procurados, os dirigentes de todas as instituições representativas do setor, inclusive o Srs. Oswaldo Siciliano, da CBL e Paulo Rocco, do SNEL, concordaram entusiasmados com a ideia.
Só que, no frigir dos ovos, veio a desoneração e a criação do fundo ficou para mais tarde. E os beneficiados – as empresas – começaram a procrastinar. O MinC não conseguiu negociar com a Fazenda uma forma de arrecadação (o que para mim é uma desculpa pífia. Na verdade, o que o Ministério da Fazenda detesta é ver dinheiro arrecadado que não entre no caixa único do tesouro, como seria o caso). O resultado é que, até hoje, não saiu proposta encaminhada pelo Executivo.
Ora, legislação desse tipo, criando uma contribuição, é de apresentação restrita ao executivo. Os parlamentares não podem criar impostos, contribuições ou similares. Resquícios da ditadura nas prerrogativas do legislativo, e que o Executivo não abre mão de modo algum.
O Senador Sarney apresentou então o projeto de criação do Fundo, no Senado, e conseguiu sua aprovação (quando ele queria, conseguia). Só que os recursos não são compulsórios nem estão determinados.
Diz o projeto:
“Art. 4° O FNPL é um fundo de natureza contábil, com prazo indeterminado de duração, que funcionará sob as formas de apoio a fundo perdido ou de empréstimos reembolsáveis, conforme dispuser o regulamento, e constituído dos seguintes recursos:
I – recursos do Tesouro Nacional; II – doações, nos termos da legislação vigente; III – legados; IV – subvenções e auxílios de entidades de qualquer natureza, inclusive de organismos internacionais; V – reembolso das operações de empréstimo realizadas por meio do Fundo, a título de financiamento reembolsável, observados critérios de remuneração que, no mínimo, lhes preserve o valor real; VI – resultado das aplicações em títulos públicos federais, obedecida a legislação vigente sobre a matéria; VII – saldos de exercícios anteriores; VIII – recursos de outras fontes.”
Ou seja, fontes definidas e compulsórias, como se previa, nenhuma. Depender dos repasses do Tesouro, doações e legados – como as Santas Casas e algumas Universidades – e do próprio retorno de suas operações significa tão somente criar uma casca sem conteúdo.
O mérito do projeto consiste exclusivamente nisso: criar formalmente um Fundo. Mas, sem recursos, fica assim como uma espécie de “lei para inglês ver”, sem ter lá muita utilidade prática.
O Deputado Rafael Motta – coincidentemente também do Rio Grande do Norte, como a Senadora Fátima Bezerra – faz parte da Frente Parlamentar e é um entusiasta no apoio ao livro e à leitura. Espero que consiga aprovar na Câmara o projeto, porque pelo menos cria esse primeiro arcabouço. Esperemos que, em algum momento, o MinC consiga formatar uma proposta e convencer a Fazenda de sua viabilidade.
Finalizo, portanto, parabenizando aos dois parlamentares. Como eles, precisamos sempre de mais apoio no Congresso para as questões relacionadas com o livro e a leitura. Até para fazer mais pressão no imobilismo do Executivo.