A História da Aia, da escritora canadense Margaret Atwood, voltou às listas dos best-sellers nos EUA (aqui a Rocco não fez nada para promover o livro), em grande medida pela sociedade machista e retrógada retratada no romance, que lembra muito a retórica da extrema direita que chega ao poder lá, com a eleição de Donald Trump.
Além da edição da Houghton Mifflin Harcourt, existe também uma edição especial da Folio (US$ 74), ilustrada pelas irmãs Anna e Elena Balbusso, italianas com grande reputação na área.
O portal Publishing Perspectives publicou, em duas partes, entrevista com as duas irmãs (em inglês). Nos dois posts também reproduzem as ilustrações dessa edição.
Comentei o primeiro post sugerindo que fizessem uma edição autônoma das ilustrações. Como as ilustrações estão lá, tomei a liberdade de copiar todas e reproduzi-las aqui, enquanto a edição não vem. A edição da Folio é muito cara (setenta e quatro dólares, só impressa).
Agora, a capa e as ilustrações da edição da Folio.
O filme de 1990, que não é excepcional, mas é bom. Dirigida por Volker Schlöndorf, roteiro da Margaret Atwood e Harold Pinter, com Natasha Richardson, Faye Dunaway, Robert Duvall.
Consegui baixar o filme, mas a MFM bloqueou a exibição pelo YouTube. Lamento.
Há alguns dias, a autora Rosa Amanda Strauz postou no FB uma nota acerca de matéria publicada no PublishNews, assim:
“Matéria do PublishNews de 18/04 tem o seguinte subtítulo:
“Kobo adquire tecnologia que utiliza uma foto para ajudar na ‘descobertabilidade’ de e-books”.
Cuma???? DESCOBERTABILIDADE??? Onde foram parar os dicionários de sinônimos???” Veja aqui.
Os comentários que seguiram foram de vários tipos. Desde os que desprezavam o problema tradutório/sociológico levantado pela questão, até os que conversavam e davam sugestões sobre como resolver essa questão.
“Danielle Sales Tudo porque querem usar o “discoverability” do inglês… Tsc, tsc, tsc
Olivio Petit imagina Cabral justificando a calmaria.
Renato Kress Em breve seus netos entrarão na dirigibilidade-escola para improvar sua guiabilidade. Aguarde e confie
Maria Valéria Rezende Isso agora é “linguagem acadêmica” rsrs”
Como o uso de “descoverability” é muito comum no tratamento das questões relacionadas com metadados, meti minha colher de pau torta no assunto: “A questão é que os dois termos em inglês cobrem um conceito mais amplo que descoberta, por exemplo (trata-se de “tornar possível de ser descoberto”, ou “forçar ser descoberto”. O mesmo acontece com “empowerment”. Tenho absoluta certeza que podemos achar termos corretos em português, mas até hoje não consegui”.
Como a lista de palpites e comentários é grande, quem quiser acompanhar tudo vá no FB e procure os posts da Rosa Amanda. Que, aliás, sugeriu “Como minhas sugestões ficaram escondidas no meio da discussão, repito aqui: Kobo adquire tecnologia que facilita a descoberta de e-books por meio de fotos.”
Certo, traduzir uma palavra em um conceito pode resolver, em muitos casos.
Mas para entender a compreensão e as dificuldades do problema, particularmente na questão do “discoverability”, é preciso saber o que gerou o uso desse neologismo em inglês.
Note-se que não sou contra a incorporação de neologismos ao nosso português. Para além da moda atual dos anglicismos, já tivemos a época dos galicismos e outras. Em alguns casos, considero ótimos achados, até porque remetem também a raízes latinas: deletar, por exemplo, que não vejo nenhum problema em usar como sinônimo de apagar ou obliterar, para ficarmos em um exemplo.
Voltando às origens do problema.
Classificar coleções é algo bastante antigo na humanidade. E muito especialmente no que diz respeito a livros. Matthew Battles, autor do divertido e altamente informativo “Library, an Unquiet History” (há uma tradução aqui, da Planeta, infelizmente fora do catálogo) chama atenção que já a Biblioteca de Nínive, sob o reino de Asurbanípal II, os 25.000 tabletes de argila colecionados por ordem do Rei, estavam unidos por tema, cada grupo com marcação específica. As bibliotecas gregas e latinas, inclusive a famosa de Alexandria, tinham marcações coladas no umbilicus (o pedaço de madeira em torno do qual eram enrolados ao papiros), com o título e o nome do autor.
A saga prossegue, e a classificação começa a envolver censura, a definição dos livros “bons” e aqueles cuja leitura não era condizente com o saber instituído (a ideia por trás da seção “inferno” da Biblioteca Vaticana e de várias outras). A própria instauração de um método de classificação que apelava para o alfabeto (ordenamento por título ou autor pela ordem das letras) foi objeto de intensa discussão. Para a mentalidade escolástica do medievo, a classificação era “racional”, segundo as áreas de conhecimento que se ligavam harmonicamente. E la nave va…
Já no início da idade moderna, as grandes bibliotecas (como a Vaticana e a British), batalhavam com o estabelecimento de sistemas de classificação. De vez em quando brinco com bibliotecários dizendo que alguns são capazes de assassinar por conta de como classificar um livro, como mostra a trama do divertido romance do Umberto Eco, “O Nome da Rosa”.
A primeira grande virada começa a ser desenhada por Antonio Panizzi, revolucionário italiano condenado à morte em Módena e que acaba como bibliotecário do British Museum. Panizzi foi o primeiro a estabelecer que “o primeiro e principal objetivo do Catálogo”, diz Battles descrevendo seu trabalho, citando o relatório que ele preparou, “é o acesso fácil às obras que fazem parte da coleção”. E esse não era simplesmente uma ferramenta para os bibliotecários, mas um instrumento “que o público tem o direito de esperar em tal instituição”. (Battles, pg, 130). Os livros deixavam de ser o domínio dos eruditos e seu acesso passava a ser um “direito do público”. Era uma tarefa monumental, ainda baseada na ordem alfabética, com as relações temáticas dos livros especificadas. Só a catalogação da letra “A” demorou onze anos. E despertou polêmicas.
Para encurtar a história, o sistema de indexação adquiriu sua forma final nas mãos de Melville Dewey, e a invenção do Sistema Decimal de Classificação. Não vou me estender aqui sobre o assunto, de amplo conhecimento geral, e constante desenvolvimento por parte das associações de bibliotecários. De qualquer modo, o eixo da catalogação era a indexação dos títulos. Que permitia aos bibliotecários localizar os livros por temas específicos ou relacionados. Era uma ferramenta eficiente, mas muito dependente do trabalho especializado dos bibliotecários (ou conhecimento dos interessados), mesmo quando os cartões de catalogação foram colocados online.
O problema se complicou geometricamente com duas questões: a) o aumento também exponencial dos livros publicados e colocados à venda; b) além do aumento ainda mais vertiginoso dos títulos disponíveis, com a digitalização e os livros eletrônicos, apareceu também a questão dos “livros órfãos”. A própria digitalização das bibliotecas, processo iniciado pelo Google, deixou acessíveis milhões de títulos previamente confinados em coleções impressas em bibliotecas já de por si gigantescas, espalhados pelo mundo inteiro.
Pelo lado da indústria editorial, alguns problemas já eram sentidos há muito. Uma primeira questão enfrentada foi a da identificação de cada edição. Na distribuição, a identificação correta de um título é crucial para os mais diversos controles. Diferentes livros, de autores distintos, com o mesmo título; edições diferentes do mesmo título; identificação de cada tradução ou formato de um título, e por aí vai. Daí nasceu o ISBN, lá pelos anos sessenta. ISBN, para os que ainda não sabem, é o acrônimo de International Standard Book Number. É um código que usa uma identificação para cada país, para cada editora e para cada título publicado, diferenciando de forma unívoca um livro de outro, seja lá por qual fator seja (nova edição – modificações da primeira; formatos diferentes; traduções, etc. etc.).
O aumento do número de edições, formato, meios de acesso, etc. é que complicou mais e mais o problema. Imaginemos que desde a biblioteca de Nínive e seus 25.000 tabletes, até a nossa Biblioteca Nacional (com seus cerca de oito milhões de títulos), e outras bem maiores, como a questão se complicou. A nossa Biblioteca Nacional, ainda tem gargalos de catalogação, incorporação do depósito legal e outros probleminhas, mas avançou na digitalização do acervo, particularmente de obras raras, dentro de um programa da UNESCO. No que diz respeito ao mercado editorial, o número de títulos disponíveis no catálogo, aqui no Brasil, chega a várias centenas de milhares de títulos. No mundo inteiro… São vários bilhões de títulos, entre os disponíveis no mercado e os disponíveis nas bibliotecas virtuais.
Os livros estão lá. Como descobrir o texto que desejo, seja para leitura ou para pesquisa? Se fosse ler todas as fichas catalográficas para achar tudo que se refira, por exemplo, a “sistema político brasileiro”, a correlação de temas seria gigantesca, mesmo com sistemas eletrônicos, porque cada “tema” não estaria vinculado aos demais como tags de metadados.
Uma parte do problema foi solucionado com os sistemas booleanos de busca, que usa operadores lógicos para organizar as pesquisas (veja aqui uma descrição simples do uso ). Mas esses sistemas de busca ainda exigem um certo preparo técnico para serem produtivos.
Foi então que começou a preocupação com o conceito de metadados. Já escrevi vários posts sobre o assunto, que podem ser consultados no meu blog , aqui. Nem vou lista-los aqui. Basta olhar na coluna da esquerda, na seção “tags”, e poderão achar “metadados” e muitos outros “tags” semelhantes. O que é isso? É a forma pelo qual indico aos eventuais leitores quais os temas (ou o tema) que está tratado em cada post. E posso colocar quantos “tags” queira em um post, já que cada um deles pode eventualmente se referir também outros assuntos relacionados.
Pois bem, os metadados é que abriram caminho para a criação do conceito de “discoverability”. Parece que a palavra foi importada das teorias de marketing para indicar o “tempo de exposição” de um determinado produto nas prateleiras. Os marquetólogos que confirmem ou não isso.
O fato é que, aplicado ao mercado editorial, esse conceito de “tempo de exposição” torna-se extremamente elástico. Mesmo quando um determinado título saiu do catálogo, ainda pode ser localizado por um dos “tags/metadados” que estejam embutidos lá dentro. Daí que, para identificar a disponibilidade do título, existem “tags” específicos para informar isso em relação a cada título.
A questão da “discoverability” aparece, portanto, da necessidade de “deixar um título com a possibilidade de ser descoberto” com certa facilidade. Um dos meus posts que estão sob a “tag” de metadados oferece um exemplo prático de como isso poderia funcionar (o condicional é por conta do desprezo com que os metadados são ainda tratados por editoras e livrarias por aqui, comparados com os de alhures (veja aqui esse post, e repita a experiência se quiser). Evidentemente, ainda que não seja um trabalho especificamente “técnico”, a qualidade dos tags e metadados pode melhorar significativamente a “discoverability” de um determinado título.
Particularmente, considero isso fundamental para as pequenas e médias editoras. É um modo de permitir que os livros que editem tenham a possibilidade de ser descobertos por leitores interessados, para além da máquina de marketing das grandes editoras e do espaço cada vez menos nos jornais.
Essa história começou mesmo a tomar corpo com a entrada da Amazon no mercado livreiro. O Bezos descobriu (porque foi fazer o curso de livreiro da ABA – American Booksellers Association) que os livros podem ser disponibilizados através das editoras e das distribuidoras, e que a livraria não precisa tê-los em estoque para vende-los (e ainda tem mais prazo para pagar). O que fez? Contatou a Ingram e a Baker & Taylor, as duas maiores distribuidoras, incorporou o catálogo delas no seu projeto de site e investiu o que podia em tecnologia de “discoverability”, primeiro colocando os metadados disponíveis, depois aperfeiçoando isso, e praticamente fazendo as editoras desenvolveram padrões mais consistentes de metadados. É o que faz até hoje: mantém estoques mínimos, medidos pela demanda registrada no sistema e pareadas com os prazos de entrega de distribuidores e editoras, e apresenta seu imenso catálogo ao público. Isso foi o que tornou possível seu slogan inicial “A livraria com mais de um milhão de títulos disponíveis”.
Não foi ele quem descobriu essa possibilidade, mas certamente foi dos que levou essa questão à perfeição, refinando cada vez mais os metadados e manipulando-os na construção de listas de “mais vendidos”, atuando proativamente junto aos clientes/leitores (e depois aos que compram qualquer coisa na loja da Amazon), como bem sabe quem já fez uma compra nessa varejista.
Por essas e algumas outras razões fundamentais que o conceito de “discoverability” passou a circular e a ser cada vez mais importante. Não por um modismo acadêmico, mas como fruto do desenvolvimento da indústria editorial. E que tem repercussões TAMBÉM para as bibliotecas e aumento da leitura em geral: melhores mecanismos de busca geram demandas e ampliação de leitores… e pressão sobre as bibliotecas que têm verba para compras. O que não acontece por aqui, tanto pela falta de verbas como pela mania de encomendar a “especialistas” as listas de aquisições de acervo. Mas isso já é outro papo.
Por tudo isso é que a possível tradução do termo inglês fica longe de ser preciosismo ou subserviência. É uma questão de terminologia (técnica, que seja) que, tenho certeza, irá adquirir cada vez mais relevância.
Estou usando, por enquanto, descobertabilidade. Acho a palavra feia, não gosto, mas é a disponível no momento. Por isso mesmo, aceito sugestões.
Aliás, só para brincar. Outro dia sonhei (juro!) com uma tradução melhor para esse outro horror que é o “empowerment”. Quando acordei, lembrei do que tinha sonhado, mas não da palavra. E fico pensando se Hipnos, Morfeu, e os Oneiroi (os benignos) voltarão a me ajudar. Espero que o ôneiro do pesadelo não se faça presente.
Em uma longa matéria sobre Margaret Atwood, “A Profetisa da Distopia”, escrita por Rebecca Mead para o The New Yorker traduz um excelente testemunho sobre uma das maiores escritoras vivas, que mereceria não apenas o Nobel, mas todos os prêmios possíveis, mais além do Booker Prize que ganhou uma vez e foi finalista em cinco outras ocasiões.
Maria José, eu e o Márcio Souza (que a conheceu no Harbourfront Book Festival em Toronto, e trouxe seus livros) temos o enorme orgulho da Marco Zero ter sido a primeira editora a publicá-la em tradução. Margaret Atwood já era muito conhecida no Canadá, nos EUA e na Inglaterra, mas nunca havia sido traduzida para o português (nem, pelo que sabemos, para outros idiomas). “Madame Oráculo”, traduzido por Domingos Demasi, em 1984. Depois publicamos as traduções de A Vida Antes do Homem (Théa Fonseca), A História da Aia (Márcia Serra), Olho de Gato (Maria José Silveira), A Noiva Ladra (Maria José Silveira), e Vulgo, Grace (Maria José Silveira).
Só deixamos de traduzi-la quando, forçados, tivemos que vender nossa participação na Marco Zero para a Nobel, que enterrou a lista da editora, exceto alguns livros de culinária, e hoje existe publicando sabe-se lá o quê de uma empacotadora inglesa…
A Rocco, que acabou ficando com a autora (a Vivian Wyler não dormia no ponto), republicou alguns dos livros que havíamos publicado, com novas traduções, e continuou publicando os que se seguiram.
Nunca li essas novas traduções. A de The Handmaids Tale, por nós publicado como A História da Aia, romance distópico sobre um EUA fundamentalista evangélico, transformado em República Gilead, voltou com força para a lista dos best-sellers nos EUA. Aqui, ao que parece, continua escondido. O novo título dado ao livro é “O Conto da Aia”. Para nós, como editores, o “tale” em inglês, nesse caso, está mais para “história” (no sentido que usamos de “contar histórias” e não “contar contos”(sic)). Bem, cada tradutor tem uma margem de escolha. Mas hoje, uma autora como a Margaret só leio no original.
A capacidade técnica, a imaginação, a maestria na construção de personagens que fazem de Margaret Atwood uma grande autora não estão nunca distantes de uma tomada de posição implícita no texto, como exemplificado por esse trecho da matéria do The New Yorker:
“Como seus antecessores vitorianos, Atwood não se afasta da ideia de que o romance é um lugar onde se pode explorar questões de moralidade. Em um e-mail que escreveu para mim, “Você não pode usar a linguagem e evitar as dimensões morais, já que as palavras têm tanto peso (lírios que apodrecem versus ervas daninhas, etc.) e todos os personagens têm que viver em algum lugar, mesmo que sejam os coelhos de A Longa Jornada (Watership Down), e têm que viver em alguma época… e têm que fazer escolhas”. O desafio, ela assinalou, é evitar o moralismo: “Como você se engaja sem bancar o pregador e reduzir os personagens a simples alegorias? Um problema perene. Mas quando grandes temas sociais são realmente grandes (Doutor Jivago), os personagens agirão dentro – e sofrerão a influência – de tudo que está a seu redor”.
Para mim, é uma definição perfeita do labor do romancista, ontem, hoje e sempre. Se um romance não trata de personagens que vivem em um contexto no qual a escolha das palavras tem peso, e as escolhas dependem da sociedade e do momento em que vivem, esse é um romance descarnado. Pode satisfazer o ego dos autores (quantos vivem assim na literatura contemporânea?), mas não subsistirão.
No início deste ano, Margaret Atwood recebeu o “Lifetime Award” do National Book Critics Circle, por seu trabalho como crítica e resenhista. Foi pouco depois da posse do laranja, no dia em que ele anunciou sua primeira tentativa de barrar imigrantes. Logo no começo de seu discurso, Atwood brincou: “Ainda bem que não me barraram na fronteira” e, no final, assinalou, depois de jocosamente comentar a sensibilidade dos autores sobre qualquer coisa que pareça desmerecedora do talento de cada um, esquecendo os elogios. Como reporta Rebecca Mead:
“Por que me dedico a uma tarefa tão dolorosa?” – disse ela. “Pela mesma razão pela qual dou sangue. Todos temos que fazer o que pudermos, porque se ninguém contribui para esse empreendimento meritório, então não haverá nada, justamente quando é mais necessário.” Estamos em um desses momentos, ela advertiu: “A democracia americana nunca foi tão desafiada”. As condições necessárias para uma ditadura, assinalou Atwood, incluem o emudecimento da mídia independente, o que impede a expressão da contradição ou de opiniões subversivas; os escritores fazem parte dessa frágil barreira que se antepõe entre o controle autoritário e a democracia aberta. “Ainda existem lugares neste planeta onde quem for surpreendido lendo vocês, ou mesmo a mim, pode ser submetido a penalidades severas”, disse ela. “Espero que logo haja menos lugares como esses”. Sua voz caiu para o tom de sussurro teatral: “Não estou segurando a respiração”.
Nem nós. Nem os autores de verdade. Lá, como aqui, vivemos uma democracia ameaçada pela truculência. E o mínimo dos mínimos que podemos fazer é deixar nosso protesto e nosso testemunho. Por escrito.
A CBL comemorou seu aniversário de 70 anos com um evento no Teatro Frei Caneca, um show do Pedro Camargo Mariano e coquetel. Uma boa quantidade de representantes do mercado editorial esteve presente. Nem vou comentar algumas ausências significativas, talvez devidas à multiplicidade de entidades e disputa entre as muitas que existem no setor.
O Secretário de Cultura de S. Paulo, José Roberto Sadek esteve lá, representando o governador; Danilo Santos de Miranda, Diretor Regional do SESC foi outra presença significativa. Christian Santos, o novo diretor da área do MinC também se fez presente.
Dos sete últimos presidentes, seis estavam presentes: Alfredo Weiszflog, Ary Benclovicz, Armando Antongini, Raul Wassermann, Oswaldo Siciliano, Rosely Boschini e Karine Pansa, além do atual, é claro. Faltou o Altair Brasil, já falecido.
Depois dos discursos protocolares, o show do Pedro Mariano, filho do César Camargo e da Ellis, foi muito aplaudido pelos segmentos mais jovens da plateia (eu preferia os pais, mas a mãe, infelizmente, não está mais disponível), e um coquetel bem servido.
Mas quero comentar o vídeo que foi exibido, em particular as entrevistas dos ex-presidentes.
Cada um buscou ressaltar o que considerava aspectos importantes da sua gestão.
Qual minha surpresa quando vi e ouvi o Sr. Oswaldo Siciliano afirmar que ele e sua diretoria “fizeram gestões junto ao Senador José Sarney” para conseguir a desoneração do PIS/PASEP COFINS, que “complementaria a imunidade já concedida ao livro pela Constituição”.
É certo que a desoneração aconteceu quando o Sr. Oswaldo Siciliano era presidente da CBL.
Só que não foi fruto de nenhuma gestão dele nem de sua diretoria.
Eis os fatos, que posso relatar porque deles sou efetivamente um dos protagonistas e testemunha.
Na noite do dia 1 de dezembro fui ao lançamento do livro “História da Galiza – Uma Memória dos Avôs Europeus” do prof. Ramón Villares, presidente do Consello da Cultura Galega. Conversando brevemente na hora do autógrafo, perguntei como estava caminhando a situação da solicitação da Galiza de fazer parte, como membro consultivo, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP. Radiante, ele me informou que o pedido havia sido aprovado em novembro.
Conheci o prof. Villares quando o Conexões Itaú Cultural – Mapeamento Internacional da Literatura Brasileira fez um de seus encontros em Santiago de Compostela, em 2011. Como presidente do Consello, ele participou das mesas e hospedou o evento com grande categoria, juntamente com a Universidade de Compostela, sob iniciativa da Carmen Villarino, que é uma das pontes da cultura galega no Brasil.
Um ano depois o prof. Villares esteve no Brasil e, lá no Itaú Cultural, fez uma palestra sobre as políticas de difusão da cultura galega, sobre o que escrevi um post aqui, sentindo-me humilhado pela pobreza da política cultural do Itamaraty diante do que faz pela difusão de sua cultura no mundo uma comunidade autônoma espanhola com apenas três milhões de habitantes.
Nessa ocasião ele mencionou a solicitação do Consello da Cultura Galega para ingresso na CPLP.
Devo dizer que me senti muito mais em casa em Santiago de Compostela, falando galego, que em Lisboa, onde os lusos engolem sílabas, falam para dentro e perco a metade do que dizem. O galego é muitíssimo parecido com a entonação do brasileiro. Andei pelo mercado e conversei com vendedores, que nem estranharam meu sotaque (e lembro a observação do Walter Benjamin de que é nos mercados e feiras que se escuta a voz popular).
Como muitas formas românicas das comunidades autônomas espanholas, o galego se desenvolveu como língua do povo, e o movimento dos intelectuais para seu reconhecimento como idioma de cultura só se firmou no século XIX, com Rosalía de Castro. Outros grande nomes da literatura galega incluem Ramón Del Valle-Inclán, Álvaro Cunqeiro e, mais recentemente, Manoel Rivas, que já tem um de seus livros publicados por aqui (“O Lápis do Carpinteiro”).
Meu único problema é com a ortografia oficial, que emprestou muitos fonemas do castelhano, tornando a leitura meio confusa. Mas há resistência ao uso dessa ortografia, e espero que a entrada na CPLP ajude a encaminhar melhor o problema. É bom lembrar, entretanto, que nosso idioma é simplesmente a evolução do galaico medieval, que se separa do castelhano aí entre os séculos XII e XV.
No entanto, transcrevo abaixo, em galego, o comunicado do Consello de Cultura Galego sobre o ingresso na CPLP. O link para a publicação original está aqui.
“O Consello da Cultura Galega foi admitido esta mañá do 1 de novembro na Comunidade dos Países en Lingua Portuguesa (CPLP), durante a XI Conferencia de Xefes de Estado e de Goberno da entidade, en calidade de Observador Consultivo. Culmina así un dilatado proceso de tramitación iniciado en 2010 para “facer máis visible a lingua e cultura galegas no exterior”, en palabras de Ramón Villares, presidente do Consello da Cultura Galega. O CCG é a primeira institución galega en formar parte da CPLP.
O estatus de Observador Consultivo supón que Galicia poderá estar presente nas xuntanzas temáticas da CPLP, trocar información dentro desa rede de Estados e entidades internacionais e servir de ligazón permanente entre a CPLP e a cultura e lingua galegas. O beneficio para o país, segundo Villares, é “facer visible que Galicia é a fonte da que nace a lingua portuguesa e é un xeito de ser recoñecidos polo mundo lusófono”.
O Consello da Cultura Galega foi a primeira institución galega en solicitar a inclusión na CPLP, xa en 2010. A iniciativa foi potenciada coa aprobación por unanimidade no Parlamento Galego, en 2014, da Lei Valentín Paz Andrade para o aproveitamento da lingua portuguesa e vínculos coa lusofonía, en cuxo artigo número 3 sinálase que “se fomentará a participación das institucións en foros lusófonos de todo tipo”.
A Comunidade dos Países en Lingua Portuguesa é un “foro multilateral orientado á cooperación entre os seus membros”, e foi creado en 1996. Nel participan todos os Estados que teñen a lingua portuguesa como oficial e moitas outras entidades vinculadas ao ámbito da lusofonía e intereses estratéxicos, económicos, sociais ou culturais compartidos.”
A editora Marcela Neublum, convidada pelo Publish News, fez sua primeira incursão à Feira de Frankfurt, com o compromisso de relatar suas impressões de neo-marinheira no maior evento editorial do mundo. Foram seis posts bem escritos e divertidos, nos quais ela conseguiu retratar bem tanto o gigantismo como a diversidade e os desafios de estar ali.
Em sua última coluna, publicada na segunda-feira 24, Marcela Neublum termina com algumas reflexões. Apesar da coluna estar no ar no site, transcrevo o que comentarei em seguida:
“E se, em 2017, você enviasse à Feira aquele seu editor que há anos faz os livros da sua editora acontecerem? E se, em 2017, você incluísse em sua agenda reuniões com editoras menores, não tão conhecidas pelo mercado? E se, em 2017, de cinco projetos com possibilidade de lucro, você aprovasse um pensando apenas em divulgar um ótimo novo escritor ou imaginando as consequências reais que aquele conteúdo poderá gerar no seu leitor?”
Marcela, essa foi uma observação bem pertinente.
Como ex-sócio de uma editora que sobreviveu dezoito anos até ser engolida no turbilhão, estive – juntamente com a Maria José Silveira e o Márcio Souza – várias vezes na Feira. Depois do falecimento da Marco Zero, ainda voltei muitas outras, como diretor da CBL, como curador do Conexões Itaú Cultural – Mapeamento Internacional da Literatura Brasileira e como editor da Machado de Assis Magazine – Literatura Brasileira em Tradução.
Sua última observação – “questionamento” – você diz que seria importante aprovar pelo menos um projeto “pensando apenas em divulgar um ótimo novo escritor, ou imaginando as consequências reais que aquele conteúdo poderá gerar no seu leitor”.
Pois bem, Marcela, quero dizer – e transmito também a experiência da Maria José e do Márcio -, que garimpar pelos corredores da Feira olhando com atenção os estandes menores pode render não apenas a “descoberta de novos autores”, como oportunidades de ótimos negócios.
As condições em que viajávamos para Frankfurt eram bem precárias. Geralmente ficávamos na casa de amigos, na maioria das vezes arranjados pelo Teo Mesquita, proprietário da única livraria que vendia livros brasileiros, portugueses e da África lusófona em Frankfurt. E nossa “verba” para aquisições era reduzidíssima.
Por isso mesmo, nada de entrar em leilões ou tentar comprar bestsellers. Íamos atrás precisamente do novo, do inusitado. Não apenas na Feira, é claro.
Nosso amigo Domingos Demasi apareceu um dia na editora com um paperback de “Lady Oracle”. Márcio Souza havia conhecido a Margaret Atwood em um festival literário em Toronto. Como resultado desse contato, Karin Schindler – sua agente, um ouro de pessoa – nos vendeu os direitos de “Madame Oráculo”, que é primeiro livro traduzido da autora que escreve em inglês e já tinha muito prestígio no Canadá, nos EUA e no Reino Unido. Desde então, até a morte da Marco Zero, Margaret Atwood ficou conosco. Ainda que Karin Schindler recebesse ofertas de outras editoras, ela preferia manter seus livros na Marco Zero, onde Maria José traduziu alguns de seus romances. Depois, foi para a Rocco.
Anne Rice ainda era uma recém-lançada romancista de temas góticos quando publicamos “O Vampiro Lestat” – que também depois foi parar na Rocco.
“A Cor Púrpura”, lançado em 1982, em 1984 ainda não tinha o reconhecimento que teve depois. Maria José o localizou e comprou por uma bagatela que estava dentro do nosso orçamento. Nem sabíamos que o livro havia sido comprado pelo Spielberg para se transformar no famoso filme.
Outro caso emblemático foi o do “Dicionário Kazar”, de Milorad Pavic. Escritor da então Iugoslávia, não havia sido traduzido para nenhum idioma. Passando pelo estande, a Maria José conversou com o pessoal, achou a ideia do romance fantástica – inclusive o fato de ter duas versões, a “masculina” e a “feminina” – e fez uma oferta dentro das nossas possibilidades. O agente do Pavic vendeu os direitos para o idioma português dentro do nosso orçamento. Foi uma dureza para traduzir. Quando o livro foi lançado pela Knopf (que adquiriu os direitos mundiais – menos para o português), a editora portuguesa teve que comprar nossa tradução. E foi um dos romances de maior sucesso da Marco Zero.
Esses foram casos de sucesso. Poderia citar muitos outros casos em que as aquisições foram prestigiosas, mas não venderam tanto. Aliás, essa história das razões pelas quais bons livros não vendem tanto quanto o merecido foi o que levou a me empenhar no conhecimento do mercado editorial.
Essa situação que você reflete, da busca pelos livros em função do desempenho de vendas, etc., há anos vêm distorcendo o papel das editoras e do mercado editorial. Os departamentos de marketing cada vez mais assumem um papel preponderante na definição das linhas editorais, e a missão das editoras, de promover esse diálogo de vozes do mundo inteiro com os leitores, fica relegada a um segundo plano, obscurecida.
André Schiffrin, que foi editor da Pantheon (fundada por seu pai), mais tarde comprada – e vendida – pela Random House, mostra a regressão, diríamos assim, do modelo em que as editoras procuravam manter um equilíbrio com o conjunto dos lançamentos, procurando mesclar livros com maior possibilidade de sucesso com títulos considerados culturalmente importantes, de modo que havia uma espécie de “subsídio interno” para novos autores, etc. Esse modelo foi substituído por uma mentalidade corporativista na qual cada livro deveria sempre alcançar objetivos de vendas cada vez maiores. Isso levou, é claro, à diminuição da busca por novos autores, autores arriscados, novas propostas. Hoje, apenas editoras menores realmente ousam. O livro de Schiffrin ao qual me refiro, “The Business of Book”, foi traduzido. Vale a pena ler. É ilustrativo.
É claro que existem exceções. No Brasil, essa mentalidade ainda não está totalmente consolidada, e vemos até mesmo grandes editores publicando alguns – poucos – autores nacionais, mas raramente com os investimentos necessários para de marketing, promoção e comercialização para que alcancem o merecido sucesso. Mas a verdade é que os investimentos vão muito mais para eventuais autores, jovens ou não, publicados pelas editoras estrangeiras, que avaliam as condições de fazer ações de marketing significativas, e recuperam parte dos advances precisamente na venda dos direitos internacionais. E as nacionais aproveitam dessa repercussão global.
O resto são os blogueiros, vlogueiros e o escambau.
É muito importante que jovens editores percebam essa situação e os perigos decorrentes. Por isso, gostei muito do seu post.
Desde quando o chanceler Bismark observou que é melhor o povo não saber como são feitas as salchichas e as leis, o interesse por esses mecanismos “ocultos” da construção do poder desperta crescente curiosidade. É certo que Marx e os filósofos já vinham explicando os grandes movimentos de classe na conformação do Estado e das transformações sociais. Mas o pão-com-manteiga recebia uma abordagem menos sistemática. Apesar do próprio Marx, em A Luta de Classes na França, no 18 Brumário de Luís Bonaparte, e nos ensaios sobre a Comuna de Paris já tratar desses mecanismos, o cotidiano “normal” da política passa a ser progressivamente uma área da ciência política (inclusive da antropologia). Ainda assim, conversa para iniciados.
Além dos próprios políticos, que podiam não teorizar, mas sabiam muito bem manobrar a prática desse jogo que existe por trás das estruturas de poder.
A London Review of Books, que subscrevo, de vez em quando manda uma seleção de artigos ou resenhas anteriormente publicados que têm a ver com assuntos candentes do momento, na Inglaterra ou no panorama internacional (O Brasil já saiu várias vezes, mas em números normais).
Semana passada o e-mail veio com artigos sobre os antecessores do Barack Obama, seja analisando livros sobre, ou ensaios de alguns dos articulistas da LRB. São peças fantásticas. E todos os textos colocam foco em vários aspectos desse “mundo real” – e oculto – da política institucional.
O do Christopher Hitchins sobre Bill Clinton, e que pega de passagem vários aspectos da atividade política da Hillary, é uma dessas. Disseca a carreira do ex-presidente, suas ligações com os conservadores desde que, como Democrata, fazia campanha para o McGovern, lá em 1992, no Texas. O cara se aliou, de fato, aos tipos conservadores do Partido Republicano para pavimentar suas ações futuras, dez anos antes de se lançar como candidato. E Hitchins vai listando as posições que ele tomou à direita do Bush pai sobre vários temas da campanha.
Do ponto de vista pessoal, o levantamento do ensaísta inglês também é devastador. Lá pelas tantas ele diz que Bill “É um cachorro difícil de manter na varanda” (é o título em inglês do artigo), significando que, tal como o dito lulu, se passa uma cadela no cio, ele não se contém e sai atrás. Hitchens chama atenção sobre como as feministas, paradoxalmente, se uniram para defendê-lo em várias situações. E, é claro, como Hillary aprovou e supervisionou o levantamento dos podres das mulheres às quais Bill havia, digamos, prestado homenagem, para destruir a credibilidade de cada uma delas. Tema, aliás, que o Trump vem retomando…
Mas outros dois temas aparecem. O caso imobiliário Whitewater, que chegou a provocar suicídio de um dos advogados sócios do escritório – do qual Hillary fazia parte – e várias demissões na equipe presidencial. E um obscuro aeroporto em Arkansas usado para levar armas para os Contra nicaraguenses – e trazer de volta “ouro branco”. Tudo arquitetado pelo coronel Oliver North com as bênçãos do Reagan.
E mais as transações em que a política dos EUA foi usada para defender interesses das empresas ligadas ao financiamento das campanhas de Clinton, incluindo os grandes criadores de porco, e o aval às políticas do Yeltsin.
A propósito da recente pseudo polêmica que surgiu depois que a CosacNaify anunciou que os saldos de estoque (cerca de 400.000 exemplares, segundo li em algum lugar) seriam picados, caso não fossem vendidos até 31 de dezembro. Por enquanto, todos os títulos estão sob venda/distribuição pela Amazon, e algumas livrarias ainda têm estoques de alguns deles.
Digo pseudo polêmica porque a marola surgiu nas publicações de pessoas que não entendem nada do mercado editorial e ficaram indignados diante da ameaça de “destruição” dos belos livros da falecida. Henrique Farinha e André Palme, no PublishNews, colocaram vários pontinhos nos iis sobre o assunto.
Na época em que a dita autopublicação acontecia somente em impresso, o esperançoso poeta, contista, ensaísta ou romancista ia até uma gráfica (que se colocava como editora, noblesse oblige) e encomendava a impressão de quinhentos ou mil exemplares (antigamente, a tiragem de mil exemplares era a mais comum, com a conversa dos gráficos de que o “preço por unidade” ficava menor). Pagava e levava a obra para casa.
Se o sujeito morasse numa quitinete, não sobrava espaço nem para o catre. Se ainda morasse com os pais, este arrenegavam a ideia, que ocupava a despensa, o eventual quarto de empregada e o quarto do desventurado autor, que somava suas imprecações contra as cruéis editoras, que não reconheciam seu talento, aos amigos que não compravam os livros. Que eram então distribuídos: papai, mamãe, irmãos, tios, tias, primos recebiam seus exemplares, devidamente autografados. Colegas de trabalho, colegas de escola, amigos vários recebiam também. Às vezes dois ou três exemplares. Ao ponto de cruzarem a rua ao verem o desditoso autor, acenando e dizendo “Já ganhei, já ganhei. Ganhei dois exemplares”.
Márcio Souza, meu amigo e autor que passou por experiência semelhante quando a UBE-Amazonas o premiou com uma edição de mil exemplares de “O Mostrador de Sombras”, seu primeiro livro, com críticas de cinema, cunhou o dito: “É mais fácil livrar-se de um cadáver que de mil exemplares de um livro”.
Multiplique-se o dilema por quatrocentos mil, uma empresa que tem que pagar armazenagem, impostos sobre o estoque (que se desvaloriza muuiiito lentamente e continua como ativo que “gera lucro”), e pode-se ter uma ideia do tamanho da encrenca.
Ora, um dos problemas da CosacNaify sempre foi o da estocagem. O projeto da editora, na minha opinião, sempre foi inviável, e só subsistia enquanto a família do Charles Cosac se dispunha a gastar uma parte dos lucros das minas em Goiás, e seu cunhado, que é grande investidor em empresas de tecnologia, também estivesse disposto a colocar uma grana na editora.
Os projetos gráfico-editoriais da editora – sempre bonitos e muito bem cuidados e produzidos – eram caros. Muito acima dos padrões do mercado editorial brasileiro. E olha que os padrões da indústria editorial (e da indústria gráfica) melhoraram muito, muito mesmo, nos últimos vinte anos. Todos os anos testemunho isso quando participo do júri do Prêmio Fernando Pini, da ABIGRAF.
Só que os deles ultrapassavam muito esse padrão. Inclusive com formatos esdrúxulos, que desperdiçam papel, por exemplo. O inevitável resultado: ou os livros eram forçosamente apresentados ao mercado com preços mais altos que os das outras editoras (e por isso vendiam muito menos que as exclamações de admiração deixavam entender), ou eram oferecidos a preços subsidiados e davam prejuízo, de qualquer maneira.
Some-se a isso a rejeição do Charles Cosac em diversificar a linha com livros que pudessem alcançar nichos mais populares e, inclusive, vendas para o governo. A história da série do “Capitão Cueca” é exemplar. Era uma série de livros para jovens que vendia, era popular e… detestada pela turma. A quantidade de diretores de vendas que passou por lá, com grandes profissionais da área, nem é bom listar.
Até quando chegou a hora da verdade. Algum, ou os três donos do dinheiro, decidiram que a coisa já estava cara demais.
É importante notar – e faço questão de afirmar isso alto e bom som – que qualidade editorial e gráfica não significam, necessariamente, preciosismo e muito menos o que se pode chamar de “over” produção e sofisticação. Na minha modesta opinião, aliás, o bom produtor gráfico e designer editorial busca alcançar resultados fantásticos e qualidade superior precisamente respeitando as contingências mercadológicas e as contingências materiais da produção. Ir além disso é coisa para quem produz livros para mesinha de centro de sala, financiados por empresas para distribuição a clientes. A Taschen, justamente famosa pela qualidade dos livros que publica, busca alcançar exatamente esse equilíbrio, ainda que haja quem torça o nariz pelo fato de poucos títulos serem impressos em cuchê, ou com capas com aplicação de vernizes especiais e coisas do gênero.
No final das contas, porém, existe a possibilidade de alternativa à destruição dos exemplares: a venda dos saldos para os atacadistas que compram ponta de estoques. E que depois revendem como livros de R$ 5,00 ou R$ 10,00 nas feiras por aí. Isso é possível supondo-se que as demandas contratuais com os autores já tenham sido equacionadas.
Fora isso, é a dura verdade de que livros são feitos de papel, e papel é celulose, matéria prima altamente reciclável.
Quem sabe, a papeleira que comprar esses livros pode lançar uma linha “premium” de papel reciclado, anunciado como “papel reciclado com os livros da CosacNaify”? Vai encontrar quem pague até mais caro por isso…
Ao ler, no dia 24 de agosto, a notícia da formalização da criação da Associação Brasileira de Licenciamento Coletivo (Abralc), tive duas reações. A primeira, um tanto irônica, de satisfação por saber que finalmente os editores fizeram autocrítica do ato insensato que perpetraram há quase quinze anos, quando fundiram a ABDR – Associação Brasileira de Direitos Reprográficos, com a ABPDEA – Associação Brasileira de Proteção dos Direitos Editoriais e Autorais.
Ato insensato porque a ABDR havia sido fundada precisamente para usar a prática do licenciamento para o combate da pirataria, enquanto a ABPDEA surgiu em contraposição a isso, defendendo a exclusividade de ações repressoras no combate ao que então se chamava de “xeroqueiros” (o que desagradava profundamente a Xerox, que apoiou a fundação da ABDR).
A segunda reação foi ao anúncio de que a CCR – Copyrigth Clearance Center fora a escolhida como modelo operacional da nova entidade, como se praticamente fosse a única alternativa tecnológica disponível. Isso não é verdade.
Mas, vamos por partes, pois acompanhei boa parte dessa discussão, nos seus inícios.
“No começo dos anos 90, a CBL – Câmara Brasileira do Livro, instalou uma Comissão para debater e apresentar propostas relacionadas com o assunto [reprografia]. A partir das informações da IPA, essa Comissão, que foi presidida por Raul Wassermann, da Summus, propôs a criação da Associação Brasileira de Direitos Reprográficos – ABDR. A ABDR foi fundada em 1992 e Raul Wassermann foi seu primeiro presidente”.
Como já disse, alguns editores rejeitaram a perspectiva de cobrar pelo licenciamento, e defendiam, na época, a exclusividade das ações de repressão.
“O resultado foi que, no ano 2000, esses editores, seguindo uma das mais lamentáveis e tradicionais tendências do mercado editorial brasileiro, resolveram fundar mais uma associação. E assim nasceu a ABPDEA – Associação Brasileira de Proteção dos Direitos Editoriais e Autorais, com sede no Rio de Janeiro. A ABPDEA deixava claro que considerava a solução da repressão como a mais correta, e divulgou amplamente o fechamento de copiadoras, prisão de “xeroqueiros”, etc.
A divisão obviamente não facilitou a vida de ninguém.
Pior, a questão acabou entrando na disputa da sucessão de Raul Wassermann na presidência da CBL, em 2002. O Sr. Oswaldo Siciliano, adversário de José Henrique Grossi, o candidato apoiado por Wassermann, comprometeu-se com a ABPDEA a apoiar suas posições, caso eleito. E foi, como se sabe.
O resultado foi que já em meados de 2003 as duas associações foram “fundidas”. Na verdade, da ABDR só sobrou o nome. As formas e métodos de atuação que passaram a ser executadas desde então foram as da antiga ABPDEA, que não faziam inveja aos da RIIA [Recording Industry Association of America – o órgão das gravadoras] a não ser pela menor capacidade econômica dos brasileiros: apreensões, prisões, fechamento de copiadoras, e liquidação dos contratos de licenciamento.
O resultado, lamentavelmente, também foi parecido com o da indústria musical: foi oferecido de bandeja ao moribundo movimento estudantil um prato feito, o da “luta contra os gananciosos editores, que pouco se importam com a formação dos jovens universitários”.
A morte do Sérgio Machado, para além do sentimento de perda de um amigo – pois assim o considerava – suscita algumas reflexões sobre a nossa indústria editorial, a partir da sua vida.
Estava no comando do grupo Record, o maior grupo editorial “trade” do país, desde 1991, quando da morte de seu pai e fundador da editora, Alfredo Machado. Sérgio, economista de formação, já estava há alguns anos trabalhando na empresa da família. A Record, fundada por Alfredo e seu cunhado, Décio Abreu, morreu naquele ano, deixando a editora nas mãos de três filhos: Sérgio, Alfredo Jr. e Sonia. A editora, fundada no âmbito e com as características de empresa familiar, continuava sob controle da família, sem capital aberto.
Um dos grandes desafios das empresas familiares, de todos os ramos, é a solução da sucessão do fundador. Todos os irmãos trabalhavam na editora, mas Sérgio e Alfredo tinham pontos de vista diferentes sob vários pontos. As divergências entre herdeiros provocam turbulência e podem mesmo por a pique a empresa. Sérgio comprou a parte de Alfredo e, com a irmã, assumiu o controle total do grupo.
Em 1997, um evento abalou a família Machado e o mercado editorial brasileiro. Sonia Machado Jardim foi sequestrada, e permaneceu semanas em poder dos seus captores. Sérgio estava nos EUA, onde fazia um curso – coincidentemente sob negociações – e voltou ao Brasil. Junto com o irmão e o marido de Sonia, Antonio Carlos, conduziram as negociações que resultaram na libertação de Sonia, em troca do pagamento de um resgate de valor não especificado.
Durante todos esses anos, o processo de concentração do setor editorial avançou muito, principalmente com a chegada de grupos editorais estrangeiros, que investiram pesadamente, seja na aquisição de empresas já existentes (Santillana comprou a Moderna; a Planeta se instalou por aqui, assim como outras espanholas, como a SM e a Oceano, e portuguesas, como a Leya). Sérgio sempre afirmava que, como comerciante, estava sempre aberto para negociações, pois comprar e vender era o que sabia fazer.
Só que, em vez de esperar que sua editora fosse comprada, Sérgio e Sonia partiram para o crescimento, adquirindo eles mesmo várias editoras nacionais. Desse modo, foram incorporadas ao grupo a Bertrand Brasil (que já era controladora da Civilização Brasileira e da Difel), a José Olympio (que faliu com os sucessores do patriarca e fundador e passou pelas mãos do BNDES e de Henrique Gregory um executivo da Xerox do Brasil), a BestSeller, comprada de Richard Civita, e mais recentemente a Paz & Terra, comprada dos herdeiros de seu fundador, Fernando Gasparian, e a Rosa dos Tempos, fundada por Rose Marie Muraro e Ruth Escobar. Paralelamente, fundou outras editoras/selos, como a Galera e a Galerinha Record, a Nova Era, BestBolso, BestBusiness e a Verus. Com isso, a Record foi firmando seu pé em vários segmentos do mercado, como o de livros infantis e juvenis, a literatura feminista, negócios, esotérica e de fantasia.
Ao robustecer sua empresa, usou a mesma tática das estrangeiras, ampliando sua ação.