CANDIDATURAS E O OLHAR DE BONS ENSAÍSTAS – O LONDON REVIEW OF BOOKS

capturar Desde quando o chanceler Bismark observou que é melhor o povo não saber como são feitas as salchichas e as leis, o interesse por esses mecanismos “ocultos” da construção do poder desperta crescente curiosidade. É certo que Marx e os filósofos já vinham explicando os grandes movimentos de classe na conformação do Estado e das transformações sociais. Mas o pão-com-manteiga recebia uma abordagem menos sistemática. Apesar do próprio Marx, em A Luta de Classes na França, no 18 Brumário de Luís Bonaparte, e nos ensaios sobre a Comuna de Paris já tratar desses mecanismos, o cotidiano “normal” da política passa a ser progressivamente uma área da ciência política (inclusive da antropologia). Ainda assim, conversa para iniciados.

Além dos próprios políticos, que podiam não teorizar, mas sabiam muito bem manobrar a prática desse jogo que existe por trás das estruturas de poder.
A London Review of Books,  que subscrevo, de vez em quando manda uma seleção de artigos ou resenhas anteriormente publicados que têm a ver com assuntos candentes do momento, na Inglaterra ou no panorama internacional (O Brasil já saiu várias vezes, mas em números normais).
Semana passada o e-mail veio com artigos sobre os antecessores do Barack Obama, seja analisando livros sobre, ou ensaios de alguns dos articulistas da LRB. São peças fantásticas. E todos os textos colocam foco em vários aspectos desse “mundo real” – e oculto – da política institucional.

O do Christopher Hitchins sobre Bill Clinton, e que pega de passagem vários aspectos da atividade política da Hillary, é uma dessas. Disseca a carreira do ex-presidente, suas ligações com os conservadores desde que, como Democrata, fazia campanha para o McGovern, lá em 1992, no Texas. O cara se aliou, de fato, aos tipos conservadores do Partido Republicano para pavimentar suas ações futuras, dez anos antes de se lançar como candidato. E Hitchins vai listando as posições que ele tomou à direita do Bush pai sobre vários temas da campanha.

Do ponto de vista pessoal, o levantamento do ensaísta inglês também é devastador. Lá pelas tantas ele diz que Bill “É um cachorro difícil de manter na varanda” (é o título em inglês do artigo), significando que, tal como o dito lulu, se passa uma cadela no cio, ele não se contém e sai atrás. Hitchens chama atenção sobre como as feministas, paradoxalmente, se uniram para defendê-lo em várias situações. E, é claro, como Hillary aprovou e supervisionou o levantamento dos podres das mulheres às quais Bill havia, digamos, prestado homenagem, para destruir a credibilidade de cada uma delas. Tema, aliás, que o Trump vem retomando…

Mas outros dois temas aparecem. O caso imobiliário Whitewater, que chegou a provocar suicídio de um dos advogados sócios do escritório – do qual Hillary fazia parte – e várias demissões na equipe presidencial. E um obscuro aeroporto em Arkansas usado para levar armas para os Contra nicaraguenses – e trazer de volta “ouro branco”. Tudo arquitetado pelo coronel Oliver North com as bênçãos do Reagan.

E mais as transações em que a política dos EUA foi usada para defender interesses das empresas ligadas ao financiamento das campanhas de Clinton, incluindo os grandes criadores de porco, e o aval às políticas do Yeltsin.

 

E mais as transações em que a política dos EUA foi usada para defender interesses das empresas ligadas ao financiamento das campanhas de Clinton, incluindo os grandes criadores de porco, e o aval às políticas do Yeltsin.

Enfim, essas e outras manobras nas entranhas da política institucional dos EUA, de um modo sintetizado de maneira bem aberta por um dos gurus intelectuais de Bill, Carroll Quigley, da Georgetown University:

“O argumento de que os dois partidos devem representar políticas e ideiais opostos… é uma ideia boba. Na verdade, os dois partidos devem ser quase idênticos, de modo que o povo Americano possa colocar para fora os canalhas em qualquer eleição sem que isso leve a nenhuma mudança profunda ou extensa. As políticas que são vitais e necessárias para a América não são mais objeto de discórdias significativas, mas se disputam apenas nos detalhes, procedimentos, prioridades e métodos”.

O interessante é que Hitchens expõe tudo isso sem adjetivos, sem xingamentos. É um trabalho praticamente de patologia forense, desnudando as entranhas do funcionamento da política dos EUA.

Ou, dito simplesmente, uma análise política da política.

Os outros artigos seguem pelo mesmo rumo.

Outro artigo cai sobre o Bush. Jenny Diski, escreve sobre o livro Bushwomen: Tales of a Cynical Species, de Laura Flanders. De Barbara Bush (mulher do papai, o Bush I), Laura (a do Bush II), Condoleeza Rice – Secretária de Estado, a outras tantas que ocuparam cargos no gabinete do Bush II (o livro começa com um relato da convenção republicana que sacramentou a primeira candidatura do George W.). Pois bem, Jenny Disk disseca o discurso das damas republicanas, mostrando como manipulavam os temas feministas para ganhar os votos das mulheres para sustentar as políticas republicanas. A manipulação dos estereótipos mais vulgares da vida feminina (bonita às vezes, sempre recatadas e do lar) recebe essa versão anti-intelectual, chocha, bem mastigada, para ganhá-las. Essas políticas conseguem às vezes aplicar de modo mais sistemático e cruel as práticas mais antifeministas e antipopulares. “A culpa é do Foucault”, diz Diski, por conta de fantástica inversão que Foucalt descreve em Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão … a horrenda história do louco que fez tudo isso e achava normal. Essa “normalidade” do patologicamente anormal e doentio se exemplifica no que disse Lyna Cheney, esposa do Vice-Presidente e mentor do Bush II, Dick Cheney, que afirmou “acreditar que a cultura americana “se afastou da razão e da realidade”, ficou contra a própria “Verdade”. E culminou com a declaração de Laura Bush de que “não havia nada de político na literatura americana”. Esse tipo de alienação está no cerne da “inteligência” oficial dos Republicanos. Infelizmente, não é privilégio deles….

Tem mais. Stpehen Greenblatt, autor do fantástico A Virada, escreveu em 1988 uma resenha do livro Ronald Reagan, the Movie, and Other Episodes in Political Demonology de Michael Rogin,  no qual o autor faz digressões freudianas sobre as projeções do Reagan em relação ao pai (um alcoólatra vendedor de sapatos), interligadas com a história e os temas dos filmes estrelados por aquele herói dos filmes B hollywoodianos. A fantástica projeção que o dito “Grande Comunicador” fazia dos personagens que representou – a maioria no contexto da Guerra Fria e da caça aos comunistas do macartismo –, e como isto se expressa nos exemplos e nas banalidades que chegavam a levar às lágrimas as plateias daquilo que Nixon já chamava de “maioria silenciosa” dos EUA.

Um ponto interessante é o comentário que ele faz sobre os pólipos intestinais do presidente, que recebeu um elaborado tratamento midiático, com a publicação dos resultados detalhados da proctocospia presidencial, e enorme cobertura televisiva da doença, cirurgia e recuperação do velhote. Tática reproduzida pelo indicado à sua sucessão, Bush pai, que também providenciou um exame do seu fiofó para “assegurar ao público que o país seria governado nos quatro anos seguintes por um babaca saudável”.

E mais artigos sobre Nixon, Nancy Reagan,   Lyndon Johnson, Franklin Roosevelt,   sobre suas mulheres – primas, secretárias e etc… e a devoção que lhe dedicavam no meio de um melée sexo-conjugal fantástico. E também sobre Jackie Kennedy, escrito por Colm Tóibín.

A minha intervenção sobre esse conjunto de artigos e resenhas da London Book Journal, para além do esforço de mostrar essa anátomo-patologia da política cotidiana, é chamar atenção para dois pontos:

O primeiro é que tudo isso pode ser feito com elegância e boa fundamentação. A grosseria não precisa substituir a ironia; a violência verbal não precisa assumir o lugar do vigor da argumentação e da fundamentação.

Isso é bem o contrário do que temos visto ultimamente, tanto na política brasileira como na internacional. A baixaria da atual campanha presidencial dos EUA surpreende quem assistiu os últimos embates brasileiros? O que vemos, lá e cá – ou cá e lá – de manipuladores de mídia, mídia manipuladora, jogo do dinheiro, violência verbal e manipulação de fatos, a criação de versões. E, confesso, fico espantado com o entusiasmo com que foi recebida a fala explosiva de Robert de Niro, que passa um tempão esculhambando o Trump.

De minha parte, também gostaria de dar um soco nas fuças de várias pessoas – tanto por razões pessoais como políticas. No entanto, compreendo que essa “solução” não resolve problema nenhum. Da mesma maneira como não acredito que a corrupção seja o problema central da política brasileira (até porque corrupção é fenômeno inerente a todas as estruturas de poder), e sim a desigualdade, não acredito que o xingamento possa fazer avançar nenhuma discussão.

O segundo ponto é que, ao contrário do que podemos ler em publicações como a London Book Journal, o New York Times Book Review e várias outras publicações – e mesmo na grande imprensa – da América do Norte e da Europa, é assombrosa a pobreza analítica desse cotidiano que constatamos aqui no Brasil. O que imitamos, infelizmente, é a cultura de manipuladores “spin doctors”, os manipuladores de informação.

Isso precisa mudar.

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