Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, Diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil Pode Ser um País de Leitores? Política para a Cultura, Política para o Livro, pela Summus Editorial.
Notícia desta quarta-feira 10 de maio no PublishNews anuncia que o MEC, através do FNDE, estuda a retomada do Programa de Biblioteca nas Escolas, mas com modificações.
Segundo a notícia, o FNDE constatou a subutilização de livros nas salas de aula, e irá propor modificações para enviar livros diretamente aos alunos – tal como no PNBE – e “que as compras estariam alinhadas aos conteúdos da BNCC”.
Ora, se os livros estão subutilizados, cabe ao MEC desenvolver, ou estimular, programas de formação de professores para seu uso. Induzir os municípios a cumprir a legislação (quase uma declaração de boa vontade, por não prever punição para o prefeito que não a cumpre) que diz que deve haver biblioteca em todas as escolas do país.
Mas não, em vez de atacar o problema, prefere-se a máscara da “adequação” e da distribuição dos livros para cada aluno, estimulando o individualismo e a não discussão coletiva dos conteúdos, vivacidade indispensável para que a leitura se arraigue na vida das crianças e jovens. O que é hábito solitário não é a leitura, e sim outra coisa, que os meninos e meninas aprendem nos banheiros das escolas.
O formato anterior tinha vários problemas, é certo. Mas, ao que parece, o que irá ser adotado ainda é pior.
O formato anterior, embora fosse mais amplo, estava ainda longe de constituir um programa de acervos para as bibliotecas escolares. Ao contrário do PNLD, que apresentava livros avaliados para serem escolhidos pelos professores, as coleções eram formadas por comissões nomeadas pelo MEC. Já cansei de dizer que – independentemente da qualidade profissional e honestidade pessoal dos membros das comissões – a simples existência delas confere um poder desproporcional, antidemocrático e autoritário a essas pessoas. Esse grupo – sempre pequeno – decide o que é ”bom” e o que é “ruim” para ler, castrando professores e alunos.
O que já tinha seus problemas, repito, independentes da qualidade dos membros das comissões, pode ficar muito pior.
A proposta parece se encaminhar para a escolha dos tais livros alinhados à base curricular. O que parece bom, na cabeça dos tecnocratas de plantão, é, repito, simplesmente castrador. Onde fica o estímulo à descoberta? O incentivo à crítica, que deve ser desenvolvido desde as primeiras letras?
Essa história tem muito mais a ver com as propostas de “Escola sem Partido”, a famosa proposta do Frota, Holliday et caterva, do que com o estabelecimento de um programa de biblioteca nas escolas.
O melhor modelo que já vi, e faz vários anos, quando eu ainda trabalhava na CBL, foi o de um programa chileno. O ministério da educação de lá elaborou um vasto catálogo, que era ampliado a cada ano, com resenhas e indicações de livros, por idade, por tema, etc. Alunos e professores, juntos, escolhiam os livros dentro de uma cota financeira destinada a cada escola.
E os livros iam para a biblioteca.
Essa nova proposta ressuscita uma ideia do Paulo Renato. Para quem não se lembra, a primeira experiência foi uma “Biblioteca para os Professores”. Uma comissão de notáveis escolheu obras como “O Uraguai” do Basílio da Gama e as obras completas do Padre Vieira (vinte e tantos volumes), além, é claro de livros dos próprios sábios, para enviá-los aos professores de cinquenta mil escolas. Uma farsa.
Depois, com as primeiras edições da Biblioteca Escolar, foram selecionados livros, que eram reimpressos fora de seu formato original, uns livros em p&B de formato reduzido, que eram entregues diretamente aos alunos, com o pretexto que “estimulariam” a leitura das famílias. Livros feios, deturpados em suas ilustrações e formatos, que até hoje podem ser encontrados aos montes nas bancas/sebos do centro das cidades. Essa ideia “brilhante” foi repetida mais uma vez pelo Paulo Renato e, pior ainda, copiada pelo Cristovam Buarque. Na minha opinião, só isso seria um bom pretexto para sua defenestração, com uma administração que era mera continuidade do Paulo Renato.
Agora aparece essa pérola, bem ao gosto dos “gestores” modernosos. Como o atual alcaide de S. Paulo, que elimina bibliotecas, brinquedotecas e salas de leitura para entochar mais alunos nas escolas já superlotadas.
As bibliotecas, se não forem os locais da diversidade, do estímulo à curiosidade e ao espírito crítico simplesmente não são bibliotecas. São maquininhas de censura e castração.
É certo que acervos para bibliotecas escolares devem ser avaliados, mas com critérios bem definidos: adequação de cada livro para cada faixa etária; eliminação de textos que contenham preconceitos e erros factuais (o que é difícil de definir em termos de ficção, mas as bibliotecas incluem também o material de apoio). E os livros devem ficar nas bibliotecas, ou nas salas, com livre acesso pelos alunos. Distribuir livros para levar para casa, na minha opinião, é mera demagogia. O local público, com acesso a todos, é a biblioteca, e é nela que se estimula a bibliodiversidade.
A propósito, vale citar um trecho do artigo do Sérgio Augusto sobre o Fahrenheit 451, do Ray Bradbury, na abertura da revista Quatro Cinco Um:
“A uma reedição de Fahrenheit 451, lançada em 1979, Bradbury, ainda mordido com a retirada de palavras como “diabos” e “infernos” de uma versão juvenil encomendada pela Ballantine Books, acrescentou comentários sobre a censura, a intolerância e a secular perseguição aos livros. ‘Há mais de um jeito de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas com caixas de fósforos por aí’, lastimou, enumerando uma dúzia de minorias que se achavam no direito, ou dever, de dosar o querosene e acender o fogo.”
Agora o MEC quer queimar de vez as bibliotecas nas escolas.
A História da Aia, da escritora canadense Margaret Atwood, voltou às listas dos best-sellers nos EUA (aqui a Rocco não fez nada para promover o livro), em grande medida pela sociedade machista e retrógada retratada no romance, que lembra muito a retórica da extrema direita que chega ao poder lá, com a eleição de Donald Trump.
Além da edição da Houghton Mifflin Harcourt, existe também uma edição especial da Folio (US$ 74), ilustrada pelas irmãs Anna e Elena Balbusso, italianas com grande reputação na área.
O portal Publishing Perspectives publicou, em duas partes, entrevista com as duas irmãs (em inglês). Nos dois posts também reproduzem as ilustrações dessa edição.
Comentei o primeiro post sugerindo que fizessem uma edição autônoma das ilustrações. Como as ilustrações estão lá, tomei a liberdade de copiar todas e reproduzi-las aqui, enquanto a edição não vem. A edição da Folio é muito cara (setenta e quatro dólares, só impressa).
Agora, a capa e as ilustrações da edição da Folio.
O filme de 1990, que não é excepcional, mas é bom. Dirigida por Volker Schlöndorf, roteiro da Margaret Atwood e Harold Pinter, com Natasha Richardson, Faye Dunaway, Robert Duvall.
Consegui baixar o filme, mas a MFM bloqueou a exibição pelo YouTube. Lamento.
Há alguns dias, a autora Rosa Amanda Strauz postou no FB uma nota acerca de matéria publicada no PublishNews, assim:
“Matéria do PublishNews de 18/04 tem o seguinte subtítulo:
“Kobo adquire tecnologia que utiliza uma foto para ajudar na ‘descobertabilidade’ de e-books”.
Cuma???? DESCOBERTABILIDADE??? Onde foram parar os dicionários de sinônimos???” Veja aqui.
Os comentários que seguiram foram de vários tipos. Desde os que desprezavam o problema tradutório/sociológico levantado pela questão, até os que conversavam e davam sugestões sobre como resolver essa questão.
“Danielle Sales Tudo porque querem usar o “discoverability” do inglês… Tsc, tsc, tsc
Olivio Petit imagina Cabral justificando a calmaria.
Renato Kress Em breve seus netos entrarão na dirigibilidade-escola para improvar sua guiabilidade. Aguarde e confie
Maria Valéria Rezende Isso agora é “linguagem acadêmica” rsrs”
Como o uso de “descoverability” é muito comum no tratamento das questões relacionadas com metadados, meti minha colher de pau torta no assunto: “A questão é que os dois termos em inglês cobrem um conceito mais amplo que descoberta, por exemplo (trata-se de “tornar possível de ser descoberto”, ou “forçar ser descoberto”. O mesmo acontece com “empowerment”. Tenho absoluta certeza que podemos achar termos corretos em português, mas até hoje não consegui”.
Como a lista de palpites e comentários é grande, quem quiser acompanhar tudo vá no FB e procure os posts da Rosa Amanda. Que, aliás, sugeriu “Como minhas sugestões ficaram escondidas no meio da discussão, repito aqui: Kobo adquire tecnologia que facilita a descoberta de e-books por meio de fotos.”
Certo, traduzir uma palavra em um conceito pode resolver, em muitos casos.
Mas para entender a compreensão e as dificuldades do problema, particularmente na questão do “discoverability”, é preciso saber o que gerou o uso desse neologismo em inglês.
Note-se que não sou contra a incorporação de neologismos ao nosso português. Para além da moda atual dos anglicismos, já tivemos a época dos galicismos e outras. Em alguns casos, considero ótimos achados, até porque remetem também a raízes latinas: deletar, por exemplo, que não vejo nenhum problema em usar como sinônimo de apagar ou obliterar, para ficarmos em um exemplo.
Voltando às origens do problema.
Classificar coleções é algo bastante antigo na humanidade. E muito especialmente no que diz respeito a livros. Matthew Battles, autor do divertido e altamente informativo “Library, an Unquiet History” (há uma tradução aqui, da Planeta, infelizmente fora do catálogo) chama atenção que já a Biblioteca de Nínive, sob o reino de Asurbanípal II, os 25.000 tabletes de argila colecionados por ordem do Rei, estavam unidos por tema, cada grupo com marcação específica. As bibliotecas gregas e latinas, inclusive a famosa de Alexandria, tinham marcações coladas no umbilicus (o pedaço de madeira em torno do qual eram enrolados ao papiros), com o título e o nome do autor.
A saga prossegue, e a classificação começa a envolver censura, a definição dos livros “bons” e aqueles cuja leitura não era condizente com o saber instituído (a ideia por trás da seção “inferno” da Biblioteca Vaticana e de várias outras). A própria instauração de um método de classificação que apelava para o alfabeto (ordenamento por título ou autor pela ordem das letras) foi objeto de intensa discussão. Para a mentalidade escolástica do medievo, a classificação era “racional”, segundo as áreas de conhecimento que se ligavam harmonicamente. E la nave va…
Já no início da idade moderna, as grandes bibliotecas (como a Vaticana e a British), batalhavam com o estabelecimento de sistemas de classificação. De vez em quando brinco com bibliotecários dizendo que alguns são capazes de assassinar por conta de como classificar um livro, como mostra a trama do divertido romance do Umberto Eco, “O Nome da Rosa”.
A primeira grande virada começa a ser desenhada por Antonio Panizzi, revolucionário italiano condenado à morte em Módena e que acaba como bibliotecário do British Museum. Panizzi foi o primeiro a estabelecer que “o primeiro e principal objetivo do Catálogo”, diz Battles descrevendo seu trabalho, citando o relatório que ele preparou, “é o acesso fácil às obras que fazem parte da coleção”. E esse não era simplesmente uma ferramenta para os bibliotecários, mas um instrumento “que o público tem o direito de esperar em tal instituição”. (Battles, pg, 130). Os livros deixavam de ser o domínio dos eruditos e seu acesso passava a ser um “direito do público”. Era uma tarefa monumental, ainda baseada na ordem alfabética, com as relações temáticas dos livros especificadas. Só a catalogação da letra “A” demorou onze anos. E despertou polêmicas.
Para encurtar a história, o sistema de indexação adquiriu sua forma final nas mãos de Melville Dewey, e a invenção do Sistema Decimal de Classificação. Não vou me estender aqui sobre o assunto, de amplo conhecimento geral, e constante desenvolvimento por parte das associações de bibliotecários. De qualquer modo, o eixo da catalogação era a indexação dos títulos. Que permitia aos bibliotecários localizar os livros por temas específicos ou relacionados. Era uma ferramenta eficiente, mas muito dependente do trabalho especializado dos bibliotecários (ou conhecimento dos interessados), mesmo quando os cartões de catalogação foram colocados online.
O problema se complicou geometricamente com duas questões: a) o aumento também exponencial dos livros publicados e colocados à venda; b) além do aumento ainda mais vertiginoso dos títulos disponíveis, com a digitalização e os livros eletrônicos, apareceu também a questão dos “livros órfãos”. A própria digitalização das bibliotecas, processo iniciado pelo Google, deixou acessíveis milhões de títulos previamente confinados em coleções impressas em bibliotecas já de por si gigantescas, espalhados pelo mundo inteiro.
Pelo lado da indústria editorial, alguns problemas já eram sentidos há muito. Uma primeira questão enfrentada foi a da identificação de cada edição. Na distribuição, a identificação correta de um título é crucial para os mais diversos controles. Diferentes livros, de autores distintos, com o mesmo título; edições diferentes do mesmo título; identificação de cada tradução ou formato de um título, e por aí vai. Daí nasceu o ISBN, lá pelos anos sessenta. ISBN, para os que ainda não sabem, é o acrônimo de International Standard Book Number. É um código que usa uma identificação para cada país, para cada editora e para cada título publicado, diferenciando de forma unívoca um livro de outro, seja lá por qual fator seja (nova edição – modificações da primeira; formatos diferentes; traduções, etc. etc.).
O aumento do número de edições, formato, meios de acesso, etc. é que complicou mais e mais o problema. Imaginemos que desde a biblioteca de Nínive e seus 25.000 tabletes, até a nossa Biblioteca Nacional (com seus cerca de oito milhões de títulos), e outras bem maiores, como a questão se complicou. A nossa Biblioteca Nacional, ainda tem gargalos de catalogação, incorporação do depósito legal e outros probleminhas, mas avançou na digitalização do acervo, particularmente de obras raras, dentro de um programa da UNESCO. No que diz respeito ao mercado editorial, o número de títulos disponíveis no catálogo, aqui no Brasil, chega a várias centenas de milhares de títulos. No mundo inteiro… São vários bilhões de títulos, entre os disponíveis no mercado e os disponíveis nas bibliotecas virtuais.
Os livros estão lá. Como descobrir o texto que desejo, seja para leitura ou para pesquisa? Se fosse ler todas as fichas catalográficas para achar tudo que se refira, por exemplo, a “sistema político brasileiro”, a correlação de temas seria gigantesca, mesmo com sistemas eletrônicos, porque cada “tema” não estaria vinculado aos demais como tags de metadados.
Uma parte do problema foi solucionado com os sistemas booleanos de busca, que usa operadores lógicos para organizar as pesquisas (veja aqui uma descrição simples do uso ). Mas esses sistemas de busca ainda exigem um certo preparo técnico para serem produtivos.
Foi então que começou a preocupação com o conceito de metadados. Já escrevi vários posts sobre o assunto, que podem ser consultados no meu blog , aqui. Nem vou lista-los aqui. Basta olhar na coluna da esquerda, na seção “tags”, e poderão achar “metadados” e muitos outros “tags” semelhantes. O que é isso? É a forma pelo qual indico aos eventuais leitores quais os temas (ou o tema) que está tratado em cada post. E posso colocar quantos “tags” queira em um post, já que cada um deles pode eventualmente se referir também outros assuntos relacionados.
Pois bem, os metadados é que abriram caminho para a criação do conceito de “discoverability”. Parece que a palavra foi importada das teorias de marketing para indicar o “tempo de exposição” de um determinado produto nas prateleiras. Os marquetólogos que confirmem ou não isso.
O fato é que, aplicado ao mercado editorial, esse conceito de “tempo de exposição” torna-se extremamente elástico. Mesmo quando um determinado título saiu do catálogo, ainda pode ser localizado por um dos “tags/metadados” que estejam embutidos lá dentro. Daí que, para identificar a disponibilidade do título, existem “tags” específicos para informar isso em relação a cada título.
A questão da “discoverability” aparece, portanto, da necessidade de “deixar um título com a possibilidade de ser descoberto” com certa facilidade. Um dos meus posts que estão sob a “tag” de metadados oferece um exemplo prático de como isso poderia funcionar (o condicional é por conta do desprezo com que os metadados são ainda tratados por editoras e livrarias por aqui, comparados com os de alhures (veja aqui esse post, e repita a experiência se quiser). Evidentemente, ainda que não seja um trabalho especificamente “técnico”, a qualidade dos tags e metadados pode melhorar significativamente a “discoverability” de um determinado título.
Particularmente, considero isso fundamental para as pequenas e médias editoras. É um modo de permitir que os livros que editem tenham a possibilidade de ser descobertos por leitores interessados, para além da máquina de marketing das grandes editoras e do espaço cada vez menos nos jornais.
Essa história começou mesmo a tomar corpo com a entrada da Amazon no mercado livreiro. O Bezos descobriu (porque foi fazer o curso de livreiro da ABA – American Booksellers Association) que os livros podem ser disponibilizados através das editoras e das distribuidoras, e que a livraria não precisa tê-los em estoque para vende-los (e ainda tem mais prazo para pagar). O que fez? Contatou a Ingram e a Baker & Taylor, as duas maiores distribuidoras, incorporou o catálogo delas no seu projeto de site e investiu o que podia em tecnologia de “discoverability”, primeiro colocando os metadados disponíveis, depois aperfeiçoando isso, e praticamente fazendo as editoras desenvolveram padrões mais consistentes de metadados. É o que faz até hoje: mantém estoques mínimos, medidos pela demanda registrada no sistema e pareadas com os prazos de entrega de distribuidores e editoras, e apresenta seu imenso catálogo ao público. Isso foi o que tornou possível seu slogan inicial “A livraria com mais de um milhão de títulos disponíveis”.
Não foi ele quem descobriu essa possibilidade, mas certamente foi dos que levou essa questão à perfeição, refinando cada vez mais os metadados e manipulando-os na construção de listas de “mais vendidos”, atuando proativamente junto aos clientes/leitores (e depois aos que compram qualquer coisa na loja da Amazon), como bem sabe quem já fez uma compra nessa varejista.
Por essas e algumas outras razões fundamentais que o conceito de “discoverability” passou a circular e a ser cada vez mais importante. Não por um modismo acadêmico, mas como fruto do desenvolvimento da indústria editorial. E que tem repercussões TAMBÉM para as bibliotecas e aumento da leitura em geral: melhores mecanismos de busca geram demandas e ampliação de leitores… e pressão sobre as bibliotecas que têm verba para compras. O que não acontece por aqui, tanto pela falta de verbas como pela mania de encomendar a “especialistas” as listas de aquisições de acervo. Mas isso já é outro papo.
Por tudo isso é que a possível tradução do termo inglês fica longe de ser preciosismo ou subserviência. É uma questão de terminologia (técnica, que seja) que, tenho certeza, irá adquirir cada vez mais relevância.
Estou usando, por enquanto, descobertabilidade. Acho a palavra feia, não gosto, mas é a disponível no momento. Por isso mesmo, aceito sugestões.
Aliás, só para brincar. Outro dia sonhei (juro!) com uma tradução melhor para esse outro horror que é o “empowerment”. Quando acordei, lembrei do que tinha sonhado, mas não da palavra. E fico pensando se Hipnos, Morfeu, e os Oneiroi (os benignos) voltarão a me ajudar. Espero que o ôneiro do pesadelo não se faça presente.
Em uma longa matéria sobre Margaret Atwood, “A Profetisa da Distopia”, escrita por Rebecca Mead para o The New Yorker traduz um excelente testemunho sobre uma das maiores escritoras vivas, que mereceria não apenas o Nobel, mas todos os prêmios possíveis, mais além do Booker Prize que ganhou uma vez e foi finalista em cinco outras ocasiões.
Maria José, eu e o Márcio Souza (que a conheceu no Harbourfront Book Festival em Toronto, e trouxe seus livros) temos o enorme orgulho da Marco Zero ter sido a primeira editora a publicá-la em tradução. Margaret Atwood já era muito conhecida no Canadá, nos EUA e na Inglaterra, mas nunca havia sido traduzida para o português (nem, pelo que sabemos, para outros idiomas). “Madame Oráculo”, traduzido por Domingos Demasi, em 1984. Depois publicamos as traduções de A Vida Antes do Homem (Théa Fonseca), A História da Aia (Márcia Serra), Olho de Gato (Maria José Silveira), A Noiva Ladra (Maria José Silveira), e Vulgo, Grace (Maria José Silveira).
Só deixamos de traduzi-la quando, forçados, tivemos que vender nossa participação na Marco Zero para a Nobel, que enterrou a lista da editora, exceto alguns livros de culinária, e hoje existe publicando sabe-se lá o quê de uma empacotadora inglesa…
A Rocco, que acabou ficando com a autora (a Vivian Wyler não dormia no ponto), republicou alguns dos livros que havíamos publicado, com novas traduções, e continuou publicando os que se seguiram.
Nunca li essas novas traduções. A de The Handmaids Tale, por nós publicado como A História da Aia, romance distópico sobre um EUA fundamentalista evangélico, transformado em República Gilead, voltou com força para a lista dos best-sellers nos EUA. Aqui, ao que parece, continua escondido. O novo título dado ao livro é “O Conto da Aia”. Para nós, como editores, o “tale” em inglês, nesse caso, está mais para “história” (no sentido que usamos de “contar histórias” e não “contar contos”(sic)). Bem, cada tradutor tem uma margem de escolha. Mas hoje, uma autora como a Margaret só leio no original.
A capacidade técnica, a imaginação, a maestria na construção de personagens que fazem de Margaret Atwood uma grande autora não estão nunca distantes de uma tomada de posição implícita no texto, como exemplificado por esse trecho da matéria do The New Yorker:
“Como seus antecessores vitorianos, Atwood não se afasta da ideia de que o romance é um lugar onde se pode explorar questões de moralidade. Em um e-mail que escreveu para mim, “Você não pode usar a linguagem e evitar as dimensões morais, já que as palavras têm tanto peso (lírios que apodrecem versus ervas daninhas, etc.) e todos os personagens têm que viver em algum lugar, mesmo que sejam os coelhos de A Longa Jornada (Watership Down), e têm que viver em alguma época… e têm que fazer escolhas”. O desafio, ela assinalou, é evitar o moralismo: “Como você se engaja sem bancar o pregador e reduzir os personagens a simples alegorias? Um problema perene. Mas quando grandes temas sociais são realmente grandes (Doutor Jivago), os personagens agirão dentro – e sofrerão a influência – de tudo que está a seu redor”.
Para mim, é uma definição perfeita do labor do romancista, ontem, hoje e sempre. Se um romance não trata de personagens que vivem em um contexto no qual a escolha das palavras tem peso, e as escolhas dependem da sociedade e do momento em que vivem, esse é um romance descarnado. Pode satisfazer o ego dos autores (quantos vivem assim na literatura contemporânea?), mas não subsistirão.
No início deste ano, Margaret Atwood recebeu o “Lifetime Award” do National Book Critics Circle, por seu trabalho como crítica e resenhista. Foi pouco depois da posse do laranja, no dia em que ele anunciou sua primeira tentativa de barrar imigrantes. Logo no começo de seu discurso, Atwood brincou: “Ainda bem que não me barraram na fronteira” e, no final, assinalou, depois de jocosamente comentar a sensibilidade dos autores sobre qualquer coisa que pareça desmerecedora do talento de cada um, esquecendo os elogios. Como reporta Rebecca Mead:
“Por que me dedico a uma tarefa tão dolorosa?” – disse ela. “Pela mesma razão pela qual dou sangue. Todos temos que fazer o que pudermos, porque se ninguém contribui para esse empreendimento meritório, então não haverá nada, justamente quando é mais necessário.” Estamos em um desses momentos, ela advertiu: “A democracia americana nunca foi tão desafiada”. As condições necessárias para uma ditadura, assinalou Atwood, incluem o emudecimento da mídia independente, o que impede a expressão da contradição ou de opiniões subversivas; os escritores fazem parte dessa frágil barreira que se antepõe entre o controle autoritário e a democracia aberta. “Ainda existem lugares neste planeta onde quem for surpreendido lendo vocês, ou mesmo a mim, pode ser submetido a penalidades severas”, disse ela. “Espero que logo haja menos lugares como esses”. Sua voz caiu para o tom de sussurro teatral: “Não estou segurando a respiração”.
Nem nós. Nem os autores de verdade. Lá, como aqui, vivemos uma democracia ameaçada pela truculência. E o mínimo dos mínimos que podemos fazer é deixar nosso protesto e nosso testemunho. Por escrito.
Um dos temas mais permanentes nas discussões do mercado editorial e livreiro – aqui e alhures – é o papel e destino das livrarias independentes e das grandes cadeias. Essa discussão se intensificou com o surgimento da Amazon (e olhem que a varejista foi fundada em 1994, com início das atividades de comércio eletrônico em 1995 – já são 22 anos).
Naquele momento era observado o auge do crescimento das grandes cadeias de livrarias nos EUA. As livrarias independentes as tinham como inimigo principal, e as notícias contabilizavam o fechamento de inúmeras lojas nas grandes e médias cidades.
É bom lembrar que, por aqui, a cadeia dominante era a Siciliano (que provocou polêmicas, discussões e gritos ao exigir maiores descontos, na voz de seu controlador, exatamente depois do Plano Real, com a sincera alegação de que ganhava dinheiro com a inflação e que agora as editoras tinham que ajuda-los a recuperar suas margens…). Hoje, comprada a preço de xepa de feira pela Saraiva, o nome da rede é história.
História como nos EUA é o nome da Borders e outras cadeias menores, que não conseguiram concorrer com a Amazon. A própria Barnes&Noble anda mal das pernas há anos, embora seu controlador jure que resistirá. E as livrarias independentes voltaram a florescer na gringolândia, graças a estratégias empresariais e institucionais, através da ABA – American Booksellers Association, como já mencionei várias vezes por aqui.
Na Europa, por sua vez, a Amazon enfrenta problemas, com um severo escrutínio das autoridades reguladoras do continente. E, surpreendentemente, a W. H. Smith, uma cadeia de livros que andou tropeçando, mostrou lucros no ano passado.
Na França e outros países do continente, a lei do preço fixo demonstra sua força e mantém vivas as livrarias independentes. Mas, também como já mostrei aqui, por trás da lei existe um sólido aparato que reúne editores, livreiros, e as “grandes superfícies”, em um comitê que supervisiona a aplicação da lei. Um dos aspectos importantes dessa legislação é que parte dos descontos concedidos pelas editoras às livrarias está condicionado a ações de promoção da leitura.
No entanto, a Amazon continua lépida e fagueira em seu crescimento. Já abriu algumas lojas físicas (modo de dizer, já que as lojas aplicam uma tecnologia muito mais avançada que a disponível em outros varejistas). Além da loja inicial em Seattle, a varejista tem outras em Boston, San Diego, Portland e New York – onde já são várias. E essas são livrarias – a Amazon já experimenta com verduras e alimentos, e agora saiu a notícia que fará o mesmo com eletrodomésticos e roupas. Mike Shatzkin, aqui levanta a possibilidade de que a Amazon se torne a maior varejista – de tudo – nos EUA, e a prazo relativamente curto. Veremos.
Uma das características das lojas da Amazon é a seleção de livros em exibição. De onde veio essa seleção? Bidu: do histórico de compras acumulados pelo site naquela região. Nada de livreiros que “conhecem” seus clientes e mantêm uma seleção de acordo com os gostos dos seus frequentadores. Bezos não se dá a esse luxo, e tudo é definido por algoritmos. Para ele, os dados são mais preciosos que qualquer subjetividade, e definem cada passo a ser dado.
Dito seja de passagem e fora do tema imediato: Amazon já é a maior editora de livros traduzidos dos EUA, e há muito o KDP é o dominante na autopublicação, embora aí ainda tenha concorrentes sérios, tanto de propriedade de outras editoras como independentes.
Voltando à nossa questão inicial.
Todo essa aparente cabeça de cera para voltar à questão inicial. O que acontece por aqui e será que se abre uma janela de oportunidade para as livrarias independentes do Bananão?
A CBL comemorou seu aniversário de 70 anos com um evento no Teatro Frei Caneca, um show do Pedro Camargo Mariano e coquetel. Uma boa quantidade de representantes do mercado editorial esteve presente. Nem vou comentar algumas ausências significativas, talvez devidas à multiplicidade de entidades e disputa entre as muitas que existem no setor.
O Secretário de Cultura de S. Paulo, José Roberto Sadek esteve lá, representando o governador; Danilo Santos de Miranda, Diretor Regional do SESC foi outra presença significativa. Christian Santos, o novo diretor da área do MinC também se fez presente.
Dos sete últimos presidentes, seis estavam presentes: Alfredo Weiszflog, Ary Benclovicz, Armando Antongini, Raul Wassermann, Oswaldo Siciliano, Rosely Boschini e Karine Pansa, além do atual, é claro. Faltou o Altair Brasil, já falecido.
Depois dos discursos protocolares, o show do Pedro Mariano, filho do César Camargo e da Ellis, foi muito aplaudido pelos segmentos mais jovens da plateia (eu preferia os pais, mas a mãe, infelizmente, não está mais disponível), e um coquetel bem servido.
Mas quero comentar o vídeo que foi exibido, em particular as entrevistas dos ex-presidentes.
Cada um buscou ressaltar o que considerava aspectos importantes da sua gestão.
Qual minha surpresa quando vi e ouvi o Sr. Oswaldo Siciliano afirmar que ele e sua diretoria “fizeram gestões junto ao Senador José Sarney” para conseguir a desoneração do PIS/PASEP COFINS, que “complementaria a imunidade já concedida ao livro pela Constituição”.
É certo que a desoneração aconteceu quando o Sr. Oswaldo Siciliano era presidente da CBL.
Só que não foi fruto de nenhuma gestão dele nem de sua diretoria.
Eis os fatos, que posso relatar porque deles sou efetivamente um dos protagonistas e testemunha.
Na noite do dia 1 de dezembro fui ao lançamento do livro “História da Galiza – Uma Memória dos Avôs Europeus” do prof. Ramón Villares, presidente do Consello da Cultura Galega. Conversando brevemente na hora do autógrafo, perguntei como estava caminhando a situação da solicitação da Galiza de fazer parte, como membro consultivo, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP. Radiante, ele me informou que o pedido havia sido aprovado em novembro.
Conheci o prof. Villares quando o Conexões Itaú Cultural – Mapeamento Internacional da Literatura Brasileira fez um de seus encontros em Santiago de Compostela, em 2011. Como presidente do Consello, ele participou das mesas e hospedou o evento com grande categoria, juntamente com a Universidade de Compostela, sob iniciativa da Carmen Villarino, que é uma das pontes da cultura galega no Brasil.
Um ano depois o prof. Villares esteve no Brasil e, lá no Itaú Cultural, fez uma palestra sobre as políticas de difusão da cultura galega, sobre o que escrevi um post aqui, sentindo-me humilhado pela pobreza da política cultural do Itamaraty diante do que faz pela difusão de sua cultura no mundo uma comunidade autônoma espanhola com apenas três milhões de habitantes.
Nessa ocasião ele mencionou a solicitação do Consello da Cultura Galega para ingresso na CPLP.
Devo dizer que me senti muito mais em casa em Santiago de Compostela, falando galego, que em Lisboa, onde os lusos engolem sílabas, falam para dentro e perco a metade do que dizem. O galego é muitíssimo parecido com a entonação do brasileiro. Andei pelo mercado e conversei com vendedores, que nem estranharam meu sotaque (e lembro a observação do Walter Benjamin de que é nos mercados e feiras que se escuta a voz popular).
Como muitas formas românicas das comunidades autônomas espanholas, o galego se desenvolveu como língua do povo, e o movimento dos intelectuais para seu reconhecimento como idioma de cultura só se firmou no século XIX, com Rosalía de Castro. Outros grande nomes da literatura galega incluem Ramón Del Valle-Inclán, Álvaro Cunqeiro e, mais recentemente, Manoel Rivas, que já tem um de seus livros publicados por aqui (“O Lápis do Carpinteiro”).
Meu único problema é com a ortografia oficial, que emprestou muitos fonemas do castelhano, tornando a leitura meio confusa. Mas há resistência ao uso dessa ortografia, e espero que a entrada na CPLP ajude a encaminhar melhor o problema. É bom lembrar, entretanto, que nosso idioma é simplesmente a evolução do galaico medieval, que se separa do castelhano aí entre os séculos XII e XV.
No entanto, transcrevo abaixo, em galego, o comunicado do Consello de Cultura Galego sobre o ingresso na CPLP. O link para a publicação original está aqui.
“O Consello da Cultura Galega foi admitido esta mañá do 1 de novembro na Comunidade dos Países en Lingua Portuguesa (CPLP), durante a XI Conferencia de Xefes de Estado e de Goberno da entidade, en calidade de Observador Consultivo. Culmina así un dilatado proceso de tramitación iniciado en 2010 para “facer máis visible a lingua e cultura galegas no exterior”, en palabras de Ramón Villares, presidente do Consello da Cultura Galega. O CCG é a primeira institución galega en formar parte da CPLP.
O estatus de Observador Consultivo supón que Galicia poderá estar presente nas xuntanzas temáticas da CPLP, trocar información dentro desa rede de Estados e entidades internacionais e servir de ligazón permanente entre a CPLP e a cultura e lingua galegas. O beneficio para o país, segundo Villares, é “facer visible que Galicia é a fonte da que nace a lingua portuguesa e é un xeito de ser recoñecidos polo mundo lusófono”.
O Consello da Cultura Galega foi a primeira institución galega en solicitar a inclusión na CPLP, xa en 2010. A iniciativa foi potenciada coa aprobación por unanimidade no Parlamento Galego, en 2014, da Lei Valentín Paz Andrade para o aproveitamento da lingua portuguesa e vínculos coa lusofonía, en cuxo artigo número 3 sinálase que “se fomentará a participación das institucións en foros lusófonos de todo tipo”.
A Comunidade dos Países en Lingua Portuguesa é un “foro multilateral orientado á cooperación entre os seus membros”, e foi creado en 1996. Nel participan todos os Estados que teñen a lingua portuguesa como oficial e moitas outras entidades vinculadas ao ámbito da lusofonía e intereses estratéxicos, económicos, sociais ou culturais compartidos.”
Traduzir é perigoso”, diria, parodiando Guimarães Rosa, sobre o tema que será objeto da primeira mesa do Conexões Itaú Cultural – Mapeamento Internacional da Literatura Brasileira – que começa hoje, dia 9 e segue até a próxima sexta-feira. A mesa sobre Grande Sertão:Veredas conta com a presença de Alison Entrekin, Berthold Zilly e da professora Sandra Vasconcelos, da USP e do Fundo Guimarães Rosa do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade. Eu terei a tarefa – difícil, mas honrosa e agradável – de mediar essa mesa.
O currículo dos tradutores é admirável. Alison Entrekin já enfrentou a tradução de “Cidade de Deus”, do Paulo Lins, dos romances do Chico Buarque e de muitos outros autores brasileiros. Berthold Zilly tem no currículo traduções de Euclides da Cunha e Raduan Nassar, entre outros. E a professora Sandra Vasconcelos é especialista em Guimarães Rosa, autor em torno do qual se organiza a mesa.
Ora, se traduzir é perigoso, retraduzir, então…
É o caso dos dois tradutores participantes da mesa. A primeira tradução de GS:V para o inglês, feita por Harriet de Onís e James Taylor é amplamente criticada. Guimarães Rosa, ainda que reconhecesse as deficiências da primeira tradução, admitiu ter ficado satisfeito pela possibilidade de ter leitores de língua inglesa com acesso ao seu livro mais importante. Particularmente, visto da perspectiva de hoje, acredito que a tradução, que apresenta GS:V quase como uma aventura de faroeste, fez mais mal que bem para a recepção da obra roseana em inglês. Riobaldo como caubói não ilustra… Desse modo, a tradução a ser empreendida por Alison Entrekin seguramente representará um novo ponto de partida para a recepção da obra em inglês.
A primeira tradução para o alemão, feita por Curt Meier-Clason, também foi sujeita a críticas, embora em muito menor grau que as feitas à tradução dos EUA. Registre-se também duas traduções para o espanhol, a mais recente feita por Florencia Garramuño e Gonzalo Aguilar, além de traduções para o italiano, francês e vários outros idiomas. A mais recente, pelo que sei, foi para o hebraico, pelo professor Erez Volk.
O que desejo destacar, no entanto, é o seguinte:
Em primeiro lugar, que as traduções de um grande escritor como Guimarães Rosa passam a constituir parte do corpus crítico do autor. Cada uma delas é, de certa forma, uma análise crítica do romance. Gregory Rabassa, o grande tradutor do português e do espanhol nos EUA, disse em algum momento que o tradutor é o leitor mais atento e crítico da obra de um autor. De fato, uma tradução de qualidade representa, sempre, uma abordagem crítica e criadora a partir do original. Não estou querendo entrar na polêmica tradicional que se perde discutindo se tradução é transposição – a mais fiel possível, é claro – ou uma “recriação” da obra em outro idioma. Acho essa discussão meio ociosa. O que gosto de destacar é que, de fato, cada tradutor lê criticamente o livro para torná-lo acessível ao leitor de outro idioma. Essa tarefa é um componente fundamental da construção de uma verdadeira República Mundial das Letras.
O segundo ponto é que cada tradução responde não apenas a avanços e desenvolvimentos das técnicas tradutórias e das investigações linguísticas, como também responde a circunstâncias históricas e sociais específicas da sociedade do idioma de chegada. Desse modo, cada tradução reflete – em maior medida, se melhor feita – as condições de recepção social existentes naquele momento, naquela sociedade (ou nas que compõem um grupo linguístico). Alison Entrekin também, em outro encontro do Conexões, e em escritos seus, mencionou as dificuldades de adaptar as gírias e expressões do “Cidade de Deus” para que fossem compreendidas tanto pelos leitores dos EUA como os da Inglaterra, da Austrália e de outros países anglófonos. Dentro de mais anos, nova tradução do mesmo romance do Paulo Lins exigirá, eventualmente, outras soluções.
No post que publiquei no dia 19 de outubro, sobre as investigações no PNLD, mencionei que anteriormente ao sistema de escolha dos livros pelos próprios professores, os que eram adquiridos pelo programa eram escolhidos por Comissões de representantes de secretarias e do MEC. Mencionei também fatos deprimentes que soube que aconteceram na época, sem citar nomes nem empresas.
Quero deixar explícito que essas cenas deprimentes não afetavam todos os membros das comissões. Os “espertos” das editoras que forneciam os livros já sabiam quais eram os mais frágeis e que poderiam ser convencidos pelos métodos pouco ortodoxos.
É bom deixar claro também que, nos casos que conheço de perto, esse tipo de prática nunca passou pelo meu conhecimento (o que não pode dizer que não tenham existido, mas nunca soube de nada).
Em outras ocasiões, além desse post, já declarei várias vezes que tenho verdadeira alergia a essa história de selecionar livros para aquisição de acervos, sejam de livros escolares, sejam para acervos de bibliotecas públicas. É sobre isso que desejo refletir um pouco.
O primeiro ponto é afirmar que estou longe, muito longe, de aceitar que a corrupção seja o “método preferencial” de ação junto aos agentes públicos. A maioria absoluta dos funcionários públicos que conheci é constituída por pessoas íntegras, dedicadas ao trabalho e que não cedem às tentações da corrupção.
Essa mania nacional, que não vem de hoje, de achar que a corrupção é a raiz de todos os males do país é, na minha opinião, um enorme equívoco.
A corrução é intrínseca a todas as estruturas de poder. Não só é um componente da economia capitalista, e sim um fenômeno constituinte de sistemas de poder.
Mas não quero fazer digressões aqui sobre corrupção em geral. No caso das comissões para escolha de livros, o problema pode ter características bem próprias, e longe dos casos deprimentes em que dinheiro e favores trocam de mãos.
Vejamos alguns exemplos que provocam minha alergia às comissões:
– A “SÍNDROME DO LIVRO BOM”. Um segmento especial dos estudiosos do livro e da leitura – que costumo chamar de leiturólogos – sustenta, invariavelmente, uma coisa meio nebulosa que chamam de “bons leitores” e que são bons leitores porque leem os “livros bons”. É uma tautologia curiosa. Os “bons leitores” se formam lendo o livro que os leiturólogos já definiram previamente como “bons”. A categoria dos “livros bons” se distingue, desde logo, por ser excludente: bestsellers, por princípio, não podem fazer parte dessa categoria; livros que sejam informativos também são largamente excluídos da categoria. “Livros bons”, por sua vez, são sempre de literatura e ensaios bem fundamentados sobre assuntos profundos. Ao terminar a leitura de um “livro bom”, o “bom leitor” tem seu intelecto e sua alma alçados a um nível superior. Mas, sobretudo, o “livro bom” é aquele que o leiturólogo qualifica como tal. E, portanto, seleciona para ser adquirido para acervos, etc. É o subjetivismo de uma categoria específica de leitores que define o “livro bom”.
Na área dos livros didáticos e escolares, “livro bom” é sempre aquele que expressa a corrente pedagógica mais “moderna ou “avançada”, da qual que o professor-comissário-avaliador faz parte.
Valem exemplos de como se processa a exclusão feita pelos leiturólogos.
Pouco tempo depois de iniciada a avaliação sistemática dos livros didáticos, com a malfadada classificação por estrelas, as pesquisas de uso dos livros enviados pelo MEC revelou enormes dificuldades. Os livros bons que alcançassem três estrelas eram o quente do construtivismo. Livros que tivessem uma ou duas estrelinhas eram razoáveis. Sem estrelas, eram os livros mais tradicionais. Pouco importa que a imensa maioria dos professores não estivesse capacitada para usar os avançadíssimos métodos construtivistas. A indução dos livros estrelados aumentava a solicitação deles pelos professores (imaginem a pressão, subjetiva e objetiva, para que adotassem os livros considerados como melhores pelos professores-doutores avaliadores). Resultado: muitos acabavam sendo deixados de lado por quem não sabia como usá-los.
A editora Marcela Neublum, convidada pelo Publish News, fez sua primeira incursão à Feira de Frankfurt, com o compromisso de relatar suas impressões de neo-marinheira no maior evento editorial do mundo. Foram seis posts bem escritos e divertidos, nos quais ela conseguiu retratar bem tanto o gigantismo como a diversidade e os desafios de estar ali.
Em sua última coluna, publicada na segunda-feira 24, Marcela Neublum termina com algumas reflexões. Apesar da coluna estar no ar no site, transcrevo o que comentarei em seguida:
“E se, em 2017, você enviasse à Feira aquele seu editor que há anos faz os livros da sua editora acontecerem? E se, em 2017, você incluísse em sua agenda reuniões com editoras menores, não tão conhecidas pelo mercado? E se, em 2017, de cinco projetos com possibilidade de lucro, você aprovasse um pensando apenas em divulgar um ótimo novo escritor ou imaginando as consequências reais que aquele conteúdo poderá gerar no seu leitor?”
Marcela, essa foi uma observação bem pertinente.
Como ex-sócio de uma editora que sobreviveu dezoito anos até ser engolida no turbilhão, estive – juntamente com a Maria José Silveira e o Márcio Souza – várias vezes na Feira. Depois do falecimento da Marco Zero, ainda voltei muitas outras, como diretor da CBL, como curador do Conexões Itaú Cultural – Mapeamento Internacional da Literatura Brasileira e como editor da Machado de Assis Magazine – Literatura Brasileira em Tradução.
Sua última observação – “questionamento” – você diz que seria importante aprovar pelo menos um projeto “pensando apenas em divulgar um ótimo novo escritor, ou imaginando as consequências reais que aquele conteúdo poderá gerar no seu leitor”.
Pois bem, Marcela, quero dizer – e transmito também a experiência da Maria José e do Márcio -, que garimpar pelos corredores da Feira olhando com atenção os estandes menores pode render não apenas a “descoberta de novos autores”, como oportunidades de ótimos negócios.
As condições em que viajávamos para Frankfurt eram bem precárias. Geralmente ficávamos na casa de amigos, na maioria das vezes arranjados pelo Teo Mesquita, proprietário da única livraria que vendia livros brasileiros, portugueses e da África lusófona em Frankfurt. E nossa “verba” para aquisições era reduzidíssima.
Por isso mesmo, nada de entrar em leilões ou tentar comprar bestsellers. Íamos atrás precisamente do novo, do inusitado. Não apenas na Feira, é claro.
Nosso amigo Domingos Demasi apareceu um dia na editora com um paperback de “Lady Oracle”. Márcio Souza havia conhecido a Margaret Atwood em um festival literário em Toronto. Como resultado desse contato, Karin Schindler – sua agente, um ouro de pessoa – nos vendeu os direitos de “Madame Oráculo”, que é primeiro livro traduzido da autora que escreve em inglês e já tinha muito prestígio no Canadá, nos EUA e no Reino Unido. Desde então, até a morte da Marco Zero, Margaret Atwood ficou conosco. Ainda que Karin Schindler recebesse ofertas de outras editoras, ela preferia manter seus livros na Marco Zero, onde Maria José traduziu alguns de seus romances. Depois, foi para a Rocco.
Anne Rice ainda era uma recém-lançada romancista de temas góticos quando publicamos “O Vampiro Lestat” – que também depois foi parar na Rocco.
“A Cor Púrpura”, lançado em 1982, em 1984 ainda não tinha o reconhecimento que teve depois. Maria José o localizou e comprou por uma bagatela que estava dentro do nosso orçamento. Nem sabíamos que o livro havia sido comprado pelo Spielberg para se transformar no famoso filme.
Outro caso emblemático foi o do “Dicionário Kazar”, de Milorad Pavic. Escritor da então Iugoslávia, não havia sido traduzido para nenhum idioma. Passando pelo estande, a Maria José conversou com o pessoal, achou a ideia do romance fantástica – inclusive o fato de ter duas versões, a “masculina” e a “feminina” – e fez uma oferta dentro das nossas possibilidades. O agente do Pavic vendeu os direitos para o idioma português dentro do nosso orçamento. Foi uma dureza para traduzir. Quando o livro foi lançado pela Knopf (que adquiriu os direitos mundiais – menos para o português), a editora portuguesa teve que comprar nossa tradução. E foi um dos romances de maior sucesso da Marco Zero.
Esses foram casos de sucesso. Poderia citar muitos outros casos em que as aquisições foram prestigiosas, mas não venderam tanto. Aliás, essa história das razões pelas quais bons livros não vendem tanto quanto o merecido foi o que levou a me empenhar no conhecimento do mercado editorial.
Essa situação que você reflete, da busca pelos livros em função do desempenho de vendas, etc., há anos vêm distorcendo o papel das editoras e do mercado editorial. Os departamentos de marketing cada vez mais assumem um papel preponderante na definição das linhas editorais, e a missão das editoras, de promover esse diálogo de vozes do mundo inteiro com os leitores, fica relegada a um segundo plano, obscurecida.
André Schiffrin, que foi editor da Pantheon (fundada por seu pai), mais tarde comprada – e vendida – pela Random House, mostra a regressão, diríamos assim, do modelo em que as editoras procuravam manter um equilíbrio com o conjunto dos lançamentos, procurando mesclar livros com maior possibilidade de sucesso com títulos considerados culturalmente importantes, de modo que havia uma espécie de “subsídio interno” para novos autores, etc. Esse modelo foi substituído por uma mentalidade corporativista na qual cada livro deveria sempre alcançar objetivos de vendas cada vez maiores. Isso levou, é claro, à diminuição da busca por novos autores, autores arriscados, novas propostas. Hoje, apenas editoras menores realmente ousam. O livro de Schiffrin ao qual me refiro, “The Business of Book”, foi traduzido. Vale a pena ler. É ilustrativo.
É claro que existem exceções. No Brasil, essa mentalidade ainda não está totalmente consolidada, e vemos até mesmo grandes editores publicando alguns – poucos – autores nacionais, mas raramente com os investimentos necessários para de marketing, promoção e comercialização para que alcancem o merecido sucesso. Mas a verdade é que os investimentos vão muito mais para eventuais autores, jovens ou não, publicados pelas editoras estrangeiras, que avaliam as condições de fazer ações de marketing significativas, e recuperam parte dos advances precisamente na venda dos direitos internacionais. E as nacionais aproveitam dessa repercussão global.
O resto são os blogueiros, vlogueiros e o escambau.
É muito importante que jovens editores percebam essa situação e os perigos decorrentes. Por isso, gostei muito do seu post.
Parabéns e boa sorte em sua carreira.
Políticas públicas para o livro e o mercado editorial