TRADUZIR É PERIGOSO

Traduzir é perigoso”, diria, parodiando Guimarães Rosa,  sobre o tema que será objeto da primeira mesa do Conexões Itaú Cultural – Mapeamento Internacional da Literatura Brasileira – que começa hoje, dia 9 e segue até a próxima sexta-feira. A mesa sobre Grande Sertão:Veredas conta com a presença de Alison Entrekin, Berthold Zilly e da professora Sandra Vasconcelos, da USP e do Fundo Guimarães Rosa do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade. Eu terei a tarefa – difícil, mas honrosa e agradável – de mediar essa mesa.

O currículo dos tradutores é admirável. Alison Entrekin já enfrentou a tradução de “Cidade de Deus”, do Paulo Lins, dos romances do Chico Buarque e de muitos outros autores brasileiros. Berthold Zilly tem no currículo traduções de Euclides da Cunha e Raduan Nassar, entre outros. E a professora Sandra Vasconcelos é especialista em Guimarães Rosa, autor em torno do qual se organiza a mesa.

Ora, se traduzir é perigoso, retraduzir, então…

É o caso dos dois tradutores participantes da mesa. A primeira tradução de GS:V para o inglês, feita por Harriet de Onís e James Taylor é amplamente criticada. Guimarães Rosa, ainda que reconhecesse as deficiências da primeira tradução, admitiu ter ficado satisfeito pela possibilidade de ter leitores de língua inglesa com acesso ao seu livro mais importante. Particularmente, visto da perspectiva de hoje, acredito que a tradução, que apresenta GS:V quase como uma aventura de faroeste, fez mais mal que bem para a recepção da obra roseana em inglês. Riobaldo como caubói não ilustra… Desse modo, a tradução a ser empreendida por Alison Entrekin seguramente representará um novo ponto de partida para a recepção da obra em inglês.

A primeira tradução para o alemão, feita por Curt Meier-Clason, também foi sujeita a críticas, embora em muito menor grau que as feitas à tradução dos EUA. Registre-se também duas traduções para o espanhol, a mais recente feita por Florencia Garramuño e Gonzalo Aguilar, além de traduções para o italiano, francês e vários outros idiomas. A mais recente, pelo que sei, foi para o hebraico, pelo professor Erez Volk.

O que desejo destacar, no entanto, é o seguinte:

Em primeiro lugar, que as traduções de um grande escritor como Guimarães Rosa passam a constituir parte do corpus crítico do autor. Cada uma delas é, de certa forma, uma análise crítica do romance. Gregory Rabassa, o grande tradutor do português e do espanhol nos EUA, disse em algum momento que o tradutor é o leitor mais atento e crítico da obra de um autor. De fato, uma tradução de qualidade representa, sempre, uma abordagem crítica e criadora a partir do original. Não estou querendo entrar na polêmica tradicional que se perde discutindo se tradução é transposição – a mais fiel possível, é claro – ou uma “recriação” da obra em outro idioma. Acho essa discussão meio ociosa. O que gosto de destacar é que, de fato, cada tradutor lê criticamente o livro para torná-lo acessível ao leitor de outro idioma. Essa tarefa é um componente fundamental da construção de uma verdadeira República Mundial das Letras.

O segundo ponto é que cada tradução responde não apenas a avanços e desenvolvimentos das técnicas tradutórias e das investigações linguísticas, como também responde a circunstâncias históricas e sociais específicas da sociedade do idioma de chegada. Desse modo, cada tradução reflete – em maior medida, se melhor feita – as condições de recepção social existentes naquele momento, naquela sociedade (ou nas que compõem um grupo linguístico). Alison Entrekin também, em outro encontro do Conexões, e em escritos seus, mencionou as dificuldades de adaptar as gírias e expressões do “Cidade de Deus” para que fossem compreendidas tanto pelos leitores dos EUA como os da Inglaterra, da Austrália e de outros países anglófonos. Dentro de mais anos, nova tradução do mesmo romance do Paulo Lins exigirá, eventualmente, outras soluções.

É legítimo perguntar como isso é possível se o original permanece “imutável”. Ora, essa “imutabilidade” do texto é relativamente ilusória. Já usei o exemplo da edição comemorativa do IV Centenário da publicação do “Don Quijote”.  Essa edição reproduz facsímiles de várias páginas da primeira publicação. São praticamente ilegíveis para o leitor contemporâneo. Foram quatro séculos de trabalhos editoriais, que normatizaram ortografia, pontuação, apresentação (mancha) do livro, de acordo com o desenvolvimento da indústria editorial e dos hábitos dos leitores. Os paratextos (glossários, notas críticas, etc.) são hoje indispensáveis para a apreciação do leitor contemporâneo. No caso do Cervantes, é curioso notar, muitas palavras colocadas no glossário são de uso corrente no nosso português brasileiro, mas já de difícil compreensão para os leitores hispanofalantes. Bráulio Ribeiro citou, em um post de Denise Bottman, no FaceBook, a presença do vocábulo “nonada” lá no meio do “Don Quijote”, na página 591 da edição do IV Centenário. Denise também mencionou que essa palavra está presente em um glossário de frases organizado por João Ribeiro no século XIX.

Assim, pode-se dizer que o texto “continua o mesmo”. Mas, na verdade, tanto sua apresentação como sua percepção – vocabular, léxica e social – também vão se transformando no decorrer dos séculos.

E nem vou entrar na já multissecular discussão das traduções e interpretações dos clássicos gregos e latinos.

As “retraduções”, então, são, de certa forma, duplamente perigosas: têm que enfrentar e dar conta não apenas das novas camadas de percepções dos textos originais, como das “leituras tradutórias” antecedentes.

Para terminar essas digressões sobre a mesa – que será interessante e divertida – lembro dois artigos recentemente publicados no The Guardian, de Londres.

Rachel Cooke, em matéria recente (24 de julho)  comenta sua tentativa de ler uma nova tradução do “Bonjour Tristesse”, de Françoise Sagan, para o inglês. Diz ela que simplesmente não conseguiu ler a nova tradução, feita por Heather Lloyd para a edição da Penguin Modern Classics, de tão acostumada – e fascinada – com a abertura da mesma obra em inglês na tradução de Irene Ash, que ela leu na adolescência. “O choque foi tremendo, desorientador”, disse ela. Traduzir é perigoso…

Outro artigo é de Alice Kaplan, (14 de outubro)  comentando a diferença no título da tradução de “L’Étranger” do Camus, traduzido por Cyril Connolly. O mesmo romance tem dois títulos: “The Outsider”, na edição inglesa de Hamish Hamilton, e “The Stranger”, na edição da Knopf nos EUA. Diz ela que muita tinta já rolou para explicar isso. “Podemos imaginar, por exemplo, que no melting pot de Nova York, a editora do emigrante Knopf tinha uma sensação de estranhamento que o levou a preferir The Stranger, enquanto o editor inglês, Hamish Hamilton, era mais consciente da exclusão social – e daí The Outsider”.

Plausível, não? Só que errado. A explicação é que se trata mais do resultado de um quiprocó editorial do que qualquer outra coisa.

Finalmente, o artigo da Rachel Cooke me faz lembrar que, seja no original ou nas traduções, é o leitor que dará a palavra final na apreciação do livro. Cada romance só se realiza plenamente na multiplicidade de leituras que pode provocar. Se não consegue isso, tanto o original como as traduções correm o risco de se transformar em objetos de arqueologia literária, apenas para satisfação de eruditos. O livro não lido ou rejeitado pelos leitores é um livro morto.

Traduzir é perigoso.

 

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