Dia 29 de outubro é o “Dia Nacional do Livro”. Foi instituído por ser a data em que a Real Biblioteca foi transferida para o Brasil, em 1810. E não faltam efemérides relacionadas com o livro: 27 de fevereiro é o “Dia do Livro Didático” (não se sabe a razão da escolha da data); 18 de abril é o “Dia do Livro Infantil”, instituído em homenagem ao nascimento de Monteiro Lobato; e 23 de abril é o “Dia Internacional do Livro e do Direito de Autor”, instituído oficialmente pela UNESCO em 1996, embora a data já fosse comemorada como tal na Catalunha (Espanha) desde 1926. É a data do nascimento de Cervantes e da morte de Shakespeare e de nascimento ou morte de outros autores menos votados. A história com Shakespeare envolve uma “licença poética”: ele morreu em 23 de abril de 1616, mas a Inglaterra ainda adotava o calendário Juliano e, portanto, estava dez dias atrasada. Enfim…
Eu tenho certa bronca com efemérides e com “eventos”. Essa história de comemorar o “dia do…” é, o mais das vezes, pretexto para esconder o assunto nos outros trezentos e sessenta e quatro dias do ano. A mesma coisa com os eventos: existem vários festivais, feiras e outros “eventos comemorativos e celebratórios” que podem esconder a ausência de políticas públicas, no caso, a respeito do livro e da leitura.
Por isso a pergunta: podemos comemorar?
Acho que sim, embora sem muuiiito entusiasmo. Mas com esperanças renovadas.
Explico-me.
Como minha meia dúzia de leitores sabe, sou um batalhador pela constituição de políticas públicas para o livro e leitura, e considero que a ausência de um sistema de bibliotecas públicas eficiente é uma das causas dos baixos índices de leitura do Brasil. E mais, que a ausência de bibliotecas e de outras políticas de acesso ao livro são responsáveis também, em grande parte, pelo fenômeno do analfabetismo funcional: as pessoas aprendem a ler (mal e porcamente, muitas vezes) na escola, e perdem essa habilidade pela falta de uso, tanto utilitário quanto por prazer, informação e lazer. Reconhecem placas de ônibus por um fenômeno de Gestalt, não precisam ler para trabalhar ou para se desenvolver no trabalho, e não tem onde ter acesso a livros de outras espécies.
A sociedade brasileira aprendeu, desde o início do Século XX, que a educação é essencial para o desempenho no mundo do trabalho, para “melhorar de vida”. Isso em parte é decorrência do desenvolvimento do capitalismo no país, que exige uma força de trabalho mais capacitada. Mas é também o resultado de uma introjeção ideológica na população da importância da educação. Educação formal, por suposto.
Essa introjeção gera demandas e exigências. Primeiro foram as demandas pela expansão do sistema escolar. Desde os anos 50 do século passado, pelo menos, não há prefeito que tenha coragem de inaugurar um conjunto habitacional sem que haja escolas públicas por perto. Hoje essas demandas estão em pleno processo de “qualificação”: não basta que existam escolas, a luta é pela escola de qualidade.
Entretanto, essa demanda pela educação não incluiu a demanda pela educação continuada e pelo acesso aos livros e à leitura. Bons filhos da Península Ibérica, nos iludimos com o aspecto formal da educação. Formou, tem o diploma ou o certificado, e está tudo bem.
Obviamente essa é uma vidão simplificada que esquece o esforço de milhões de pessoas que continuam tentando por melhorar sua qualificação e seus conhecimentos depois que saem da escola. Mas ainda voltarei a esse aspecto um pouco mais à frente.
O fato é que a demanda pela biblioteca não acompanhou a demanda pela escola. A exigência de bibliotecas não é uma reivindicação que se aproxime da reinvindicação por escolas. A demanda por bibliotecas – centro de informação e formação continuada após a escola – não está introjetada na consciência social com a mesma força que a demanda por escolas.
É preciso lembrar sempre que as bibliotecas modernas nascem do utilitarismo inglês e norte-americano. Os respectivos sistemas foram construídos com base na compreensão de que nas bibliotecas públicas o cidadão poderia encontrar o conhecimento que buscava, a formação moral, ética e religiosa que precisava (esse lado religioso e moral das bibliotecas foi muito presente nas denominações protestantes “clássicas”), e também o lazer e a reflexão não formal proporcionados pela literatura.
O lado moralista e religioso do “livro bom” sempre esteve paralelo à pretensão democrática da universalidade da oferta nas bibliotecas. As lutas contra a censura, contra a imposição de listas de “livros bons” elaboradas seja por clérigos, autoridades públicas ou “especialistas”, sempre esteve na pauta dos que consideram que a biblioteca é, em primeiro lugar, um serviço público à disposição dos cidadãos que as sustentam com seus impostos e não um instrumento de controle do Estado, da religião ou da pseudo sapiência.
Felizmente, nos últimos anos, tem aumentado de forma consistente a consciência social da importância da biblioteca. Camadas cada vez mais amplas da população passam a demandar que haja bibliotecas públicas decentes como parte do dever do Estado, tanto quanto a educação, saúde e segurança.
Por sua vez, as instâncias governamentais começam a compreender que a questão do acesso ao livro é necessariamente objeto de uma política de Estado.
O resultado disso são ações concretas que vem sendo desenvolvidas ou planejadas.
Comecemos por baixo, pelos municípios. A proliferação de feiras de livros nos últimos anos é também um sintoma de demandas por parte da população. Tão importante quanto o aumento das feiras de livros, festivais literários e semelhantes, é o aumento dos recursos que os municípios e os estados tem destinado para que professores e alunos da rede pública adquiram livros nessas ocasiões. O mesmo se dá com o aumento de recursos orçamentários municipais e estaduais para aquisição de acervo para bibliotecas.
O governo federal, por sua vez, depois de muito falar, finalmente decidiu tomar ações concretas para o estabelecimento de políticas públicas que facilitem o acesso ao livro por parte da população. Os programas de aquisição de acervo de forma descentralizada, o Programa do Livro Popular, o Programa de Apoio às Traduções e o Programa de Apoio ao Circuito de Feiras de Livros são alguns dos pontos em etapa de finalização pela Fundação Biblioteca Nacional, sob o comando do Galeno Amorim.
São programas importantes que tenho acompanhado, e sou testemunha das dificuldades operacionais e burocráticas existentes para sua efetivação, que vem sendo vencidas com determinação e habilidade pela FBN.
Esses programas farão um contraponto importantíssimo aos já desenvolvidos pelo MEC em relação ao livro escolar. O PNLD e seus “filhotes” – PNLM, Biblioteca na Escola e acervos para os programas de EJA (Educação de Jovens e Adultos) são muito importantes e vem sendo aperfeiçoados e a perspectiva é que, no futuro, tenham uma integração melhor com os programas de acesso mais amplo desenvolvidos pelo Ministério da Cultura e pelos Estados e municípios.
Essas são as razões de otimismo que permitem que comemoremos o Dia Nacional do Livro.
Só não esqueçamos que os desafios são imensos; que essa percepção social da importância das bibliotecas públicas é ainda incipiente; que as dificuldades burocráticas e operacionais de se desenvolver programas em um país com quase seis mil municípios e oito milhões de quilômetros quadrados são enormes.
Por tudo isso, comemoremos, sim. Mas permaneçamos conscientes de que essa pauta está muito longe de ser satisfatoriamente resolvida em nosso país.