A “Biblioteca Civilizatória” e a Biblioteca como serviço público

Uma das afirmativas mais recorrentes nos trabalhos que tratam de bibliotecas públicas diz respeito ao “papel civilizatório” que esta deve desempenhar. Entende-se por “papel civilizatório”, essencialmente, a presença nos acervos de bibliotecas públicas de certa quantidade de títulos aos quais se atribui – geralmente em meio a disputas acirradas – a qualidade de comporem um “cânon” de leituras indispensáveis. Geralmente os “leiturólogos” atribuem a esse cânon a capacidade de transformar um leitor “instrumental” em um “leitor crítico”.
Quando aceitam ir mais além do cânon, os “leiturólogos” geralmente passam a argumentar sobre a necessidade de que, pelo menos, os livros sejam “de qualidade”. Ou seja, acervos cujo valor simbólico é o valorizado por aquele campo intelectual que discute e legitimiza os atributos do “bom livro” e da “boa leitura”. É uma atitude próxima à da crítica literária tradicional. Mas, no que diz respeito aos “leiturólogos” há um componente adicional autoritário que o campo da crítica muitas vezes gostaria de ter, mas não dispõe de instrumentos.
Os críticos dispõem principalmente de um poder simbólico, que incorpora ou exclui as obras no cânon, mas deixa aberta ao leitor a decisão final sobre o que ler ou não.

Os “leiturólogos” querem dar mais um passo. Pretendem estender seu poder classificatório à composição dos acervos, de fato impedindo que os frequentadores das bibliotecas tenham acesso ao que seja por eles considerado irrelevante, sem qualidade ou mesmo maléfico. O “papel civilizatório” das bibliotecas se expressaria, portanto, na disponibilização para o público tão somente dos livros “de qualidade”.
Não é uma posição nova. Apenas atualiza o que aconteceu nos primórdios da Renascença, quando “biblioteca” e “cânon” eram quase sinônimos, como mostra Mattew Battles em “A conturbada História das bibliotecas”.
Curiosamente, o embate sobre a qualidade dos livros se dá de formas bem diferenciadas entre os bibliotecários e leiturólogos formados na tradição do racionalismo iluminista – no caso, principalmente a tradição francesa e suas afiliadas – e os formados na tradição pragmática da Inglaterra do Século XIX.
Sem que as respectivas posições sejam necessariamente excludentes ou antagônicas, os primeiros valorizam muito mais a forma, a exibição de erudição e o que a crítica convenciona em aceitar como literariamente relevante, os segundos se atêm muito mais às restrições do conteúdo – moral e religioso, principalmente – que possam transparecer nos livros. Assim, a crítica racionalista e iluminista absorve positivamente Rabelais, para dar um exemplo, sem se escandalizar com a escatologia de Pantagruel e Gangântua, louva mais adiante O Amante de Lady Chatterley e Ulisses. Todos são livros que se incorporam ao cânon em função do reconhecimento de suas qualidades estéticas.
No universo anglo-saxão, entretanto, dá-se um peso muito maior ao conteúdo moral e eventualmente religioso dos livros. Evidentemente O Paraíso Perdido de Milton é não apenas um poema clássico no sentido estrito do termo, pela sua beleza e rigor formal. Mas é, antes disso, ou paralelamente a isso, uma expressão acabada da teologia puritana, sendo assim um livro edificante. O próprio Milton – acompanhado de muitos pensadores puritanos – simplesmente detestava o esteticismo, o prazer da leitura por si mesmo e não hesitava em condenar asperamente as expressões literárias de papismo, ateísmo e outras variações que se enfrentassem ao puritanismo. Para eles, a leitura que não fosse teologicamente consistente era simplesmente pecaminosa e condenada. O paradoxo provocado por essa visão é a presença da censura nos países onde a liberdade de expressão é cultivada, como nos Estados Unidos, onde a censura tentou impedir a venda – e a presença nas bibliotecas – das mesmas obras de Joyce e D.H. Lawrence tão louvadas na França. E na mesma linha de raciocínio essas pessoas tentam impedir a presença da série do Harry Potter nas bibliotecas americanas (bruxaria!).
Assim, enquanto livros “práticos” estão no fundamento da organização dos sistemas de bibliotecas na Inglaterra e nos Estados Unidos – impulsionados por um espírito prático e empreendedor, do saber para fazer e resolver problemas (inclusive emocionais) – os nossos “leiturólogos” esteticistas e adeptos das grandes filosofias, enfatizam ad nauseam a questão da “qualidade”, como garantia do papel civilizatório das bibliotecas, locus da formação do “leitor crítico”, capaz de ter uma percepção ampla da sociedade e de seu lugar nela, capacitando-o para agir de modo a transformá-la.
As duas posições representam campos de disputa intelectual que se desenvolvem segundo dinâmicas próprias. O que interessa aqui é perceber como – e em que medida – essas disputas podem interferir legitimamente nas políticas públicas, e em particular em uma política pública para bibliotecas.
Em primeiro lugar é evidente que as bibliotecas públicas devem ter disponíveis, em seus acervos, tanto os livros práticos e edificantes quanto os literária e esteticamente significativos; tantos os livros “how to do” quanto os tratados filosóficos. Enfim, uma biblioteca pública deve ser, tanto quanto possível, universal.
Essa “universalidade” da biblioteca pública evidentemente se enfrenta com os condicionantes materiais da dimensão de cada unidade, sua localização, sua inserção em um sistema de bibliotecas. Um sistema de bibliotecas supõe hierarquias e especializações eventuais. Cada biblioteca em particular, entretanto, deve ser formatada considerando as características da comunidade na qual se instala.
Aqui se introduz um conceito fundamental: a biblioteca deve estar a serviço da comunidade na qual está inserida. A biblioteca é um serviço público.
Essa proposição inverte a questão colocada tanto pelos “pragmáticos e doutrinários” quanto pelos “civilizatórios”. Não se trata de resolver a dicotomia entre as duas propostas optando por uma delas, e sim de aceitar a diversidade que se expressa na imensa pluralidade de livros existentes. O eixo dessa proposição é a caracterização da biblioteca como um serviço público.
Considerada dessa maneira, o acervo de cada biblioteca deve ir se constituindo – é um processo infindável – a partir de dois eixos: em primeiro lugar, a partir das características e da demanda de seu público; em segundo lugar, a partir da ação de seus animadores (bibliotecárias, voluntários e demais funcionários) no sentido de apontar para as possíveis alternativas de leitura para esse público.
A formação do acervo das bibliotecas públicas e seu desenvolvimento sempre implicam em escolhas. A imensa quantidade de livros publicados a cada instante torna impossível a inclusão de todos. A ideia da biblioteca universal só pode subsistir hoje como proposta a ser desenvolvida a partir da digitalização dos acervos. Em termos práticos, a “universalização possível” depende da estruturação e do alcance do sistema de bibliotecas dentro do qual cada uma delas possa se inserir. Uma biblioteca isolada será sempre uma célula ameaçada de estiolar por não conseguir atender às demandas de seus frequentadores.
As escolhas, ainda que sempre abriguem um grau considerável de arbitrariedade, devem se pautar pelos dois eixos mencionados. Ou seja, devem traduzir sempre a interação entre os responsáveis pela biblioteca e seus usuários. Uma interação que sempre deve ser positiva, com os responsáveis e animadores da biblioteca procurando não apenas atender passivamente as demandas dos usuários, mas buscando apresentar-lhes as alternativas.
As demandas dos usuários certamente refletem a posição dominante no campo da produção editorial, o que angustia os responsáveis pelas bibliotecas e indigna profundamente os “leiturólogos”, que nisso só percebem a consagração da mediocridade e do domínio do que consideram como o pior da indústria editorial, para dizer o mínimo.
A visão de que a biblioteca deve ser um serviço público atendendo em primeiro lugar às demandas de seus usuários não deve ser vista como conivente com essa situação. Ao contrário, deve simplesmente servir de base para que se abra um campo de disputa pelos “corações e mentes” do público. Essas disputas se expressam no desenvolvimento de programas e atividades de estímulo à leitura. Esses serão, sempre, expressão das convicções, da formação educacional e política de quem os implementa.
O desenvolvimento e a aplicação de programas de estímulo à leitura, entretanto, deve evitar uma armadilha: a da arrogância que desqualifica as opções dos que não leem o que gostamos e leem o que consideramos de baixa qualidade. Para disputar o “coração e a mente” do leitor alvo desses programas não se pode começar por desrespeitá-lo. Se tal ou qual livro parece medíocre, diluidor, de baixa qualidade e não responde às minhas necessidades intelectuais, nem por isso deixa de responder às necessidades emocionais, intelectuais e filosóficas de quem o lê.
A posição do administrador de uma biblioteca pública, enquanto agente do Estado, deve respeitar uma premissa simples: o cidadão tem o direito de ler o que quiser. Eu tenho o direito de não gostar do que ele esteja lendo e eventualmente posso tentar convencê-lo a mudar seus hábitos de leitura, mas não posso impor o meu gosto e minhas convicções a ele.
A arrogância do desrespeito esconde-se claramente por trás da ilusão de que, ao definir o acervo da biblioteca segundo o gosto do cânon ilustrado, está-se induzindo o leitor a ser o “leitor crítico” desejado pelos leiturólogos. A inclusão de livros feita a partir da deliberada exclusão não leva a nada. Ninguém vai começar a gostar de ler Guimarães Rosa ou Proust simplesmente porque seus livros estão na biblioteca que rejeita a presença do best-seller do momento. Ou seja, a chamada elevação do nível de leitura só pode ser alcançada com a combinação de dois fatores: educação e convencimento. Jamais por imposição e desqualificação dos que leem livros diferentes dos que gostamos.
É bobagem pensar que a imposição do cânon da qualidade resulte em melhora real. Se houvesse possibilidade de impor algo civilizatório derivado da cultura francesa eu, de minha parte, preferia impor a obrigação de que os jantares fossem sempre da forma clássica: entrada, prato principal e sobremesa. E com um belo “plateau de fromages” no final, sem esquecer os vinhos de acompanhamento.

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