A política cultural do Estado brasileiro – responsabilidade basicamente do Itamaraty – é, para usar um adjetivo caridoso, simplesmente insuficiente. Os números, a estrutura disponível para suas ações demonstram isso, e a comparação com outros países chega a ser humilhante. A pretensão de assumir um papel mais relevante através de mecanismos de “soft-power” – entre os quais a cultura é muito importante – fica assim comprometida.
Comecemos por uma breve análise descritiva dos instrumentos institucionais disponíveis na estrutura do Itamaraty.
A estrutura do Departamento Cultural do Itamaraty, o órgão da Chancelaria encarregado de administrar as ações de política externa na área, revela alguns pontos interessantes.
A estrutura do DC está conformada por cinco divisões e uma Coordenação de Divulgação. As Divisões são: 1) Promoção do Audiovisual (DAV); 2) Acordos e Assuntos Multilaterais Culturais (DAMC); 3) Operações de Difusão Cultural (DODC); 4) Temas Educacionais (DCE) e 5) Promoção da Língua Portuguesa (DPLP).
A própria estrutura evidencia que, no âmbito operacional, os instrumentos de ação são setorizados e incluem ações institucionalizadas (acordos culturais, organismos internacionais multilaterais, cooperação na área de educação, programa de estudantes-convênio, negociação e administração da execução dos acordos culturais bilaterais, etc.), sob a responsabilidade de duas divisões, a DAMC e a DCE, além de incluir parte das ações da DPLP.
Das duas divisões voltadas diretamente para a ação cultural no exterior (DODC e DAV), a segunda está dedicada especificamente a um segmento da cultura brasileira, a do audiovisual. O pessoal do cinema, aliás, sempre agiu de forma muito mais decisiva que os demais setores culturais, e consegue articulações institucionais mais funcionais que o segmento da literatura, por exemplo.
A outra divisão atua principalmente atendendo às demandas elaboradas pelos diversos postos (embaixadas e consulados), através de seus programas de difusão cultural. A experiência observada indica que os programas elaborados pelos postos (quando existem) respondem muito mais às preferências intelectuais, artísticas e culturais dos chefes de missão que a um planejamento proativo de difusão cultural gerado na chancelaria. Evidentemente alguns postos desenvolvem programas de grande importância e de caráter abrangente. O observado mais comumente, entretanto, é que os programas privilegiados refletem as idiossincrasias dos titulares: se gostam de literatura, mais ações nessa área; se de musica, mais atividades ligadas ao segmento, e assim sucessivamente.
Essas observações podem estar distorcidas por falta de informações mais gerais. Isso também, por si só, revela uma falha de comunicação da eventual abrangência e da qualidade das ações de política externa cultural.
Uma atenção especial, no caso, merece ser dada à Divisão de Promoção da Língua Brasileira. A Rede Brasil Cultural é formada pelos Centros Culturais Brasileiros, Núcleos de Estudos Brasileiros e Leitorados.
As estruturas mais formais e fortes são os Centros Culturais Brasileiros, atualmente vinte e quatro, divididos em seis na África, treze na América (apenas um na América do Norte, no México), três na Europa e dois no Oriente Médio. Há que lembrar que, entre 1994 e 2002, muitos centros importantes foram fechados, entre os quais os de Bogotá, Berlim e Paris. A retomada da instalação dos CEBs aconteceu a partir de 2003, com ênfase significativa nos países africanos. É importante destacar que os CEBs “concentram-se no ensino da língua portuguesa”, embora abranjam “também” outras atividades culturais.
Abaixo dos CEBs existem os Núcleos de Estudos Brasileiros. Com apenas um professor de português que também atua como animador cultural, conta apenas com cinco núcleos que operam em quatro países.
O programa de Leitorado também é administrado pelo DPLP, e conta atualmente com “mais de quarenta” professores universitários que atuam em instituições estrangeiras de ensino superior, em 28 países. Cada Leitor recebe uma bolsa adicional do Itamaraty, além dos benefícios previstos nos acordos com as universidades, e o DPLP procura também “promover convergências” entre as atividades culturais promovidas pelos postos e os leitorados.
Finalmente cabe mencionar o CELPE-BRAS, o certificado de proficiência em língua portuguesa (oferecido em quatro níveis), exigido para os candidatos dos programas de estudantes-convênio, tanto na graduação como na pós-graduação.
Em resumo, as ações de política externa na área cultural se articulam em três níveis separados: o primeiro, institucional, que se dá na operação da participação do Brasil em organismos multilaterais da cultura, inclusive a UNESCO e os programas do Mercosul Cultural, administra os convênios e acordos culturais; o segundo, responde a demandas dos postos, além de manter um programa de passagens para viagens e missões culturais específicas de artistas brasileiros, envia exposições e participa de eventos culturais internacionais (feiras, congressos e exposições) de acordo com demandas de outras áreas do governo ou dos postos. Inclui uma única e exclusiva área específica de difusão sistemática, vinculada ao audiovisual, com o apoio da Ancine e da Secretaria do Audiovisual do MinC; o terceiro é o dos cursos de português no exterior, através dos CEBs, núcleos e leitorados.
O que fazem outros países.
O pouco que o Brasil faz assume proporções humilhantes se comparado com ações e mecanismos institucionais de outros países.
França. O país dispõe de dois instrumentos de ação cultural no exterior. A Alliance Française, fundada em 1883, é o mais antigo e espalhado. São mais de 800 Alliances Françaises, em 137 países. O segundo instrumento é o Institut Français, que o Ministério do Exterior declara ser o “motor das ambições de soft power da França”. O Institut Français é de fundação mais recente (2010), é financiado pelo governo, e está presente em todos os países com os quais a França mantem relações diplomáticas.
Alemanha. O Instituto Goethe é o braço de atuação do governo alemão na área cultural. Fundado em 1951, é financiado pelo Ministério das Relações Exteriores. O site do Goethe afirma ter mais de 170.000 alunos e participantes de atividades em seus centros espalhados por 80 países.
Espanha. O Instituto Cervantes, ainda que nos anos recentes haja sofrido com as restrições econômicas da crise europeia, seu orçamento em 2013 alcançou quase noventa milhões de Euros, dos quais 68% foram transferências orçamentárias e o resto resultante dos ingressos dos cursos de espanhol. Está presente em 86 cidades de 43 países de todos os continentes, e os números do exercício de 2013 são impressionantes: 15.336 cursos de espanhol (entre gerais e especiais e de formação de professores), com um total de 237.937 alunos. A rede conta com 60 bibliotecas e um acervo de 1.250.694 volumes. Os centros do Instituto Cervantes apresentaram, em 2013, 2.422 projeções de filmes, 384 concertos, 527 conferências, 168 colóquios, 129 mesas redondas, além de representações teatrais, semanas culturais, oficinas e outras atividades.
Portugal. O Instituto Camões. Além das atividades culturais, o Instituto Camões assumiu, desde alguns anos, a função de agência de cooperação do governo português, além da promoção da língua e da cultura de Portugal no exterior. São trinta e oito centros de língua portuguesa, mais trinta e cinco cátedras espalhadas por todos os continentes. A “Rede Camões” apresenta 785 pontos, entre centros culturais, cátedras, atividades conveniadas e outras formas de atuação. O Instituto Camões está integrado à estrutura do estado, no Ministério dos Negócios Estrangeiros.
O caso de Portugal é exemplar. O PIB de Portugal, em 2012, foi de US$ 228.872 milhões, e o do Brasil de US$ 2.350.889 milhões, segundo o Banco Mundial. Ou seja, o de Portugal é menos de 10% do PIB brasileiro, menor mesmo que o PIB estadual do Rio Grande do Sul, que naquele ano alcançou US$ 252.500 milhões. E o país também sofre com a crise europeia.
Por isso mesmo, comparar os 785 pontos de ação do Instituto Camões com o que o Brasil apresenta em termos de ações continuadas denota simplesmente que nosso país pensa pequeno e age pequeno em termos de política externa na área da cultura. Uma comparação dessas desmerece totalmente o discurso sobre a importância da projeção internacional do Brasil.
Por conta das deficiências da diplomacia cultural brasileira, o apoio às iniciativas – pessoais e institucionais – que procurem suplementar as debilidades da diplomacia devem ser apoiados, pelo menos com competência, sem discriminação e com eficiência. Os autores brasileiros vêm sendo cada vez mais chamados para eventos internacionais, seja por suas editoras estrangeiras, seja por vários tipos de instituições. A maioria estrangeira, que paga os custos das viagens e da presença dos autores.
Por isso mesmo fiquei muito preocupado com o trecho final da entrevista do escritor Luiz Ruffato sábado passado, no Estadão, por ocasião da divulgação de lançamento de seu último romance.
Entrevistado por Ubiratan Brasil, a última pergunta foi assim respondida pelo autor:
“Passados alguns meses desde seu discurso na abertura da Feira de Frankfurt, em que você foi mais contestado que propriamente os dados ali apresentados, o que ficou de positivo e negativo daquela experiência?
Meu discurso foi o de alguém que acredita no papel que o intelectual deve exercer no âmbito das sociedade Ninguém contestou a sério os dados ali comentados que mostram um Brasil machista, homofóbico, racista, sexista, hipócrita, violento, intolerante. Os ataques pessoais que sofri e as represálias oficiais só comprovam os meus argumentos.”
Escrevi dois posts sobre o discurso do RufFato na Feira de Frankfurt. O primeiro, logo no dia seguinte, está aqui. O segundo, no qual fazia um balanço geral da Feira, pode ser lido na íntegra aqui. No primeiro me solidarizo com o discurso do autor, ressaltando que o caráter polêmico fazia bem para a presença do Brasil em Frankfurt. No segundo post, reiterando meu apoio ao discurso, fiz mais algumas observações, depois de comentar também a fala do Paulo Lins no encerramento da Feira.
A primeira observação foi precisamente sobre o ex-abrupto do Vice-Presidente Michel Temer, que falou logo depois de Ruffato, na abertura, e entremeou suas palavras com uma velada ameaça e o lamento por sua obra poética não ter sido devidamente avaliada. Escrevi: “Não entendi. A estrutura do discurso [do Rufatto] corresponde exatamente ao que o Lula sempre disse: depois de 500 anos de opressão “pela primeira vez na história desse país”, se fazia algo para mudar a condição da população mais pobre. Acho que deviam era faturar a coincidência do discurso do Rufatto com o do Lula, da Presidente Dilma e da propaganda oficial.”
Observei também sobre o discurso do Ruffato, em complemento às minhas observações do primeiro post: “O segundo ponto a ser observado no discurso do escritor, e de forma negativa, foi o uso exclusivo da primeira pessoa do singular. É até compreensível que Rufatto quisesse destacar sua experiência pessoal. Mas é bom lembrar que essas angústias expressadas no discurso, a responsabilidade dos escritores diante de uma realidade angustiante, não é exclusividade dele.”
O preocupante, porém, é a última frase da entrevista no Estadão, onde Ruffato diz que sofre “represálias oficiais”. E falou disso depois de passar várias semanas no exterior.
O autor, porém, não explicitou quais foram essas represálias, nem o jornalista procurou se informar junto ao Itamaraty e ao Ministério da Cultura sobre o assunto.
Esse é o tipo de coisa que não pode ficar no terreno das insinuações e do disse-que-disse. É grave demais.
Está em jogo o profissionalismo do Itamaraty, que não pode deixar que posições dos autores impeça o devido apoio a ser dado para quem – junto com outros autores, em vários países – faz o trabalho complementar ao deles, que é o de apresentar o país através de sua literatura, com todas as nossas contradições, problemas e belezas. Não dá para sucumbir ao ufanismo da época da ditadura, e há que reconhecer que, apesar do muito que foi feito, muito mais ainda falta fazer. O mesmo pode ser dito do Ministério da Cultura.
O autor, Ruffato, precisa explicitar o que entende por represálias oficiais, e os dois ministérios esclarecer esse assunto. Na ambiguidade é que não dá para ficar.