CONCORRÊNCIA E MONOPÓLIO NO MERCADO EDITORIAL

O Departamento (Ministério) da Justiça dos Estados Unidos concretizou a ameaça feita anteriormente e instaurou processo baseado na legislação antitruste contra os chamados “seis grandes” grupos editoriais do país (que inclui a Apple, vejam), acusando-os de “conluio” para elevar o preço dos e-books quando abandonaram o sistema de vendas “por atacado” pelo chamado “sistema de agenciamento”, que foi constituído quando a Apple decidiu entrar para valer na venda de livros através do iPad. Os grupos editoriais envolvidos são Hachette Book Group, Simon & Schuster, Penguin Group, HarperCollins e Macmillan, e a Apple. Já durante a tarde de ontem, dia 11 de abril, três desses grupos (Hachette, HarperCollins e Simon & Schuster concordaram com um ajuste de conduta proposto pelo Departamento de Justiça para abandonar o “sistema de agenciamento”. A Apple já decidiu contestar a ação, assim como a Macmillan e o Penguin Group.

Em post anterior analisei como a Amazon constituiu seu ecossistema e como a tendência monopolista da varejista coloca em risco o conjunto da indústria editorial norte-americana (com possíveis efeitos no resto do mundo, a começar pela Europa, onde a Comissão Europeia segue os passos dos EUA e investiga as supostas práticas de cartelização e formação de truste das editoras e da Apple).

Só para lembrar as linhas gerais:

No sistema de vendas por atacado, o preço de capa dos livros é fixado pelas editoras mais como uma referência que rege os contratos de direitos autorais (os autores recebem uma porcentagem do preço de capa por cada exemplar vendido). Uma vez o livro adquirido pelo distribuidor ou pelo varejista, estes o vendem para o elo seguinte da cadeia (no caso do distribuidor) ou para o consumidor final (no caso do varejista), pelo preço que quiser. A lógica implícita nisso é que o varejista jamais venderá o produto com prejuízo e que esse mecanismo instala a concorrência via exclusivamente o mecanismo de preços. Quem consegue diminuir seus custos, pode se apropriar de uma margem final melhor, mesmo que venda mais barato.

No “sistema de agenciamento” o editor determina o preço de venda final e paga uma “comissão” para o varejista, na ordem de 30%. Ou seja, a margem de desconto ao consumidor final fica bem mais restrita. Esse sistema, até o momento, foi adotado apenas para a venda de e-books, que saem com o “preço de capa” final com uma redução entre 30 e 50% sobre o preço de capa dos hardcovers. Lembrando que, no mundo dos livros impressos nos EUA, o hardcover é o primeiro lançado, seguido algum tempo depois pelos paperbacks (capa mole e formato menor, “de bolso”) e por formatos ainda mais reduzidos e com papel de qualidade inferior, os produtos para o “mass market”, não aplicados a todos os livros. Ou seja, o hardcover é a primeira referência de preço, mais caro que as edições subsequentes, e o consumidor paga um “prêmio” – ou seja, um preço mais caro – para ter o livro no momento do lançamento e de qualidade física superior. Quem pode esperar, pagará preços menores.

O e-book desestruturou esse sistema. O lançamento simultâneo do hardcover e do e-book (este a preço menor), deixou um produto alternativo e lançado ao mesmo tempo (o e-book) a um preço menor que o principal produto anterior, o hardcover. E com a tendência de o e-book se tornar o produto “prêmio”, o mais cobiçado pelos leitores.

Ora, o que mostrei no post referido anteriormente, é que a Amazon usou a venda de livros como o primeiro passo para constituir um ecossistema de vendas próprio, que atualmente já inclui milhares de outros produtos. A Amazon é uma grande loja de departamentos online.

Quando lançou o Kindle, o primeiro e-reader de sucesso, a Amazon já era, individualmente, a maior varejista de livros dos EUA, e facilmente conseguiu impor a ideia de que os e-books deveriam ser mais baratos. E devem mesmo, embora a equação não seja tão simples quanto a aparência indica. Durante quase cinco anos a Amazon esteve praticamente sozinha no mercado de e-readers e e-books. A concorrência que existia antes (o Sony Reader) e a que veio depois (Nook e outros leitores), conseguiu tirar dela uma parte do mercado, mas a empresa de Seattle ainda é a maior vendedora de e-readers e e-books dos EUA (e do mundo, pelo menos por enquanto) e de livros impressos também.

A Amazon usa a pressão de preços para ampliar cada vez mais sua fatia de mercado e impor condições mais draconianas às editoras. As grandes cadeias de livros impressos dos EUA (Barnes & Noble, Borders, Books-a-Million e outras), jamais tiveram o poder de pressão que a Amazon acumulou. E havia ainda as livrarias independentes, que há mais de quinze anos sofriam a pesada concorrência dessas cadeias e vinham diminuindo sua participação no mercado.

A brecha para se contrapor ao poderio da Amazon surgiu – paradoxalmente, digo eu – quando outro gigante tecnológico entrou na parada, a Apple. Esta, para conseguir o apoio das editoras, aceitou a proposta do “agenciamento”, que é nada mais que uma versão “atualizada” do “preço fixo”, que vigorou em quase toda a Europa até poucos anos atrás, e que resiste hoje principalmente na Alemanha e na França. Na briga desses dois nhambus gigantes (Amazon e Apple), os jacus deram uma de espertos e aproveitaram para criar uma brecha melhor para si.

As questões que o Departamento de Justiça levanta são, portanto, duas: a) teria havido um “conluio” entre as editoras e a Apple; b) Esse “conluio” teria sido feito especificamente para aumentar o preço dos e-readers. Ambas situações são ilegais pela legislação antitruste americana, que proíbe terminantemente que duas ou mais empresas combinem entre si meios para manter os preços, sem que “a concorrência” possa atuar para sua diminuição.

A legislação norte-americana baseia a concorrência nesses dois pilares: que esta deve se dar fundamentalmente através do preço; e que não pode haver qualquer espécie de combinação entre empresas para estabelecer preços (ou práticas comerciais) comuns. A legislação brasileira também enfatiza o preço final como o principal vetor da concorrência empresarial.

Eu não sou ingênuo para acreditar nas declarações dos editores de que não houve conversas entre eles para negociar com a Apple a partir de parâmetros comuns, e que a própria Apple não tenha sido cúmplice disso. John Sargent, CEO da Macmillan, em declaração escrita anunciando a decisão de contestar a ação do governo dos EUA, declara: “Depois de dias de reflexão e preocupação, tomei a decisão no dia 22 de janeiro de 2010, depois das quatro da manhã, quando me exercitava na bicicleta ergométrica no porão da minha casa”. Bonito, não é? Vejam aqui a matéria do Publishers Weekly sobre a ação, e o ajuste de conduta e aqui sobre as reações.

Mas o fato é o seguinte. Sem o “modelo de agenciamento”, o processo de monopolização do comércio de livros nos EUA pela Amazon já estaria muito mais avançado, com a destruição ainda mais acelerada do resto dos varejistas.

Ou seja, a pretexto de defender o “menor preço” da Amazon, o Departamento de Justiça dos EUA quer lhe garantir o direito de prosseguir em seu processo de monopolização.

O “ajuste de conduta” já aceito por três editoras, determina especificamente que estas “não poderão ditar preços finais aos consumidores”, embora os varejistas não possam vender com desconto maior do que o recebido das editoras (mas não menciona o fato de que, se vender com o mesmo desconto, já está fazendo dumping, ou “desinventaram” custos operacionais?). Em resumo, os “defensores da concorrência” nos EUA apoiam o dumping, já que esse “beneficia” o consumidor final. Não é à toa que já se comenta que os melhores advogados da Amazon estão instalados na Casa Branca e no Departamento de Justiça. Lobby é isso aí, pessoal.

A decisão da Macmillan, da Penguin e da Apple de contestar a ação vai lançar o mercado editorial americano em turbulência, maior do que a já existente. E vai reforçar a posição da Comissão Europeia de fazer a mesma coisa por lá: fortalecer a Amazon.

Acho a Amazon uma grande companhia, mas monopólio, para mim, só o da Petrobras. E olhe lá. Certamente a concorrência por preços é saudável e beneficia o consumidor. Mas será tão saudável quando desestrutura toda a cadeia produtiva? Quando isso acontece, formam-se monopólios não regulados e quem paga o pato no fim é o consumidor.

O sindicato dos autores americanos já se pronunciou contra a prática da Amazon. Scott Turrow, seu presidente (que é também advogado, lembram?) é capaz de se meter na briga, usando o mecanismo de “friend of the Court” para meter a colher de pau dos autores nessa parada.

Resta saber se os autores auto publicados, e mais Deepak Chopra – até agora o único autor de grande sucesso que decidiu publicar um livro pela editora da varejista – vão se manifestar, sob a batuta do Kirschbaum, o contratado para ser o Publisher do sistema de editoração da Amazon.

No referido post também já dei minha opinião sobre a situação de editores e varejistas brasileiros vis à vis a Amazon. Se não se cuidarem, podem se ferrar aqui também. E, olhem, a área de Direito Econômico do nosso Ministério da Justiça é bem favorável à concorrência apenas pelo preço, apesar do CADE não gostar de monopólios ou de muita concentração.

Essa celeuma toda começa a partir de um fato: a desregulamentação total do mercado editorial nos EUA, e parcial na Europa. Na Europa, durante décadas, seja por força de lei, seja por acordo entre editores e livreiros, valia o princípio do “preço fixo”, pelo qual os descontos sobre o preço de capa são limitados nos primeiros anos de lançamento de um título.

O “preço fixo” foi sendo desmontado por pressão da Comissão Europeia, firme defensora da desregulamentação dos mercados, e resiste bravamente na França e na Alemanha.

A regulamentação de mercados é uma questão crucial para vários setores. Quando as restrições à regulamentação do sistema bancário foram desmontadas nos EUA, qual o resultado? A desenfreada especulação que acabou em 2008. O Brasil escapou precisamente porque o sistema bancário brasileiro não apenas estava saneado como também é altamente regulamentado e o Banco Central tem mecanismos para impor o “bom comportamento” aos bancos (o que, afinal, os ajuda a ganhar mais dinheiro).

Mas o mercado de livros precisa de regulamentação?

Eu acredito que sim.

Já escrevi que o “preço fixo” não é uma panaceia para os problemas de distribuição e sobrevivência das pequenas livrarias, mas é um dos componentes do que deveria ser uma política mais ampla de fomento à distribuição de livros.

Mas a questão central é que, sem regulamentação, fica aberta a estrada para o surgimento de situações monopolistas, tanto na edição quanto no varejo. As editoras (as grandes) sempre se manifestaram contra o preço fixo, contra a contribuição para o fundo de leitura e só querem que o governo compre mais livros. Está no papel delas. Mas o do Estado é de usar recursos para fazer que os livros cheguem à população que deles necessita, e garantir a bibliodiversidade. O processo de concentração é inerente ao capitalismo. No mercado editorial, o processo de concentração é contraposto pelo surgimento continuado de novas editoras – muitas vezes de vida curta – que continuam oferecendo alternativas de títulos que escapam ao interesse dos grandes grupos.

Nesse processo todo nos EUA, as editoras se aproveitaram o quanto puderam da desregulamentação. Enquanto eram as pequenas livrarias e cadeias que estavam sendo esmagadas pela Amazon, pouco se lixaram. Quando o fogo começou esquentar na rabiola delas, se mexeram. Afinal, desregulamentação só é bom quando é no dos outros.

Veremos se essa crise é oportunidade mesmo ou só o será para que a Amazon se consolide como a dona do mercado editorial. E se o mercado editorial brasileiro aprende as lições do episódio.

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