A próxima chegada da Amazon no Brasil, que vem sendo cozinhada desde o começo do ano, com negociações entre os representantes da empresa de Seattle e editoras brasileiras e anúncio (informal) de algumas iniciativas, como a venda do Kindle por R$ 199,00, certamente terá um impacto significativo no mercado editorial brasileiro, tal como aconteceu em outros países.
Ainda não se sabe com certeza se a Amazon vai se limitar inicialmente à venda de livros eletrônicos (e também se já incluirá outros produtos entregues via web, como músicas e filmes) ou se também irá incluir os livros impressos, adquiridos online e entregues pelo correio ou por courriers. A conhecida secretividade da empresa contribui para especulações, inclusive sobre a quantidade de editoras que já assinaram contratos com ela.
Recentemente Mike Shatzkin publicou alguns posts muito interessantes sobre a trajetória da empresa, procurando responder, basicamente, a duas perguntas: a) Quando vai terminar de crescer a parcela da Amazon no comércio de livros (nos EUA)? E b) Quem vai sobrar? Veja aqui e aqui, se quiser. Um terceiro post, igualmente importante, trata do impacto da iniciativa do site Pottermore, da J.K. Rowlings, que vende seus livros sem DRM (Digital Rights Manager) e, desse modo, elimina a questão da interoperabilidade dos e-readers. Nesse último caso, além do mais, a autora do Harry Potter conseguiu o que alguns achavam impossível: o tráfego é feito através do site da empresa, encaminhado pela Amazon ou por qualquer outro varejista eletrônico. Ou seja, não é preciso estar no ecossistema “amazonian” para adquirir o livro.
Vou tentar resumir as questões do Shatzkin, evidentemente centradas no mercado dos EUA, para depois fazer observações sobre o impacto em nosso mercado.
Shatzkin enfatiza o fato de que a estratégia de começar o negócio pela venda de livros foi basicamente a de ter uma ferramenta de aquisição de clientes, e não um fim em si mesmo. Trabalhando com o estoque das editoras, da Ingram e da Baker & Taylor, a Amazon aperfeiçoou a “experiência do cliente” a um nível não alcançado antes, e “enganchou” uma base formidável de compradores para todos os demais produtos que foi paulatinamente oferecendo. Contou com a fartura de recursos proporcionada pela primeira “bolha” da Internet, mas soube aproveitá-la bem, aliás com extrema competência.
As editoras ficaram felizes da vida com mais esse varejista, que foi paulatinamente aumentando seu market share. Quando lançou o Kindle, a posição da Amazon já era forte o suficiente para impor ao conjunto das editoras seus termos de venda dos livros eletrônicos. E aí a coisa começou a complicar. Naquela ocasião já se percebia que a Amazon estava não apenas sufocando as livrarias independentes, mas também prejudicando as grandes cadeias, como o falecimento recente da Borders e outras movimentações no mercado americano estão confirmando.
A Amazon usou amplamente as vantagens de armazenamento, distribuição e POD (Printing on Demand) das grandes distribuidora. A Ingram tentou, em 2007, estender as facilidades dos mecanismos de venda online para outros varejistas, e lançou um projeto chamado I2S2, que era uma plataforma similar à que oferecia à Amazon, para os outros. A Amazon, nessa ocasião, teve peso suficiente para fazer o projeto abortar, e seus concorrentes não dispuseram dessa ferramenta.
O lançamento do Kindle reforçou a estratégia da Amazon de modo exponencial. De fato, a empresa praticamente criou um enorme mercado a partir do que era apenas incipiente (o leitor da Sony não tinha conteúdo suficiente para oferecer). Aumentou sua base de clientes e o poder de fogo da empresa. Acredito que o mesmo possa acontecer similarmente aqui: o Kindle a R$ 199,00 vai forçar todos a se mexerem. A Positivo está fazendo um esforço – via grupos de compra – para testar preços mais baratos para seu leitor, mas não se sabe se terá fôlego e recursos para aguentar esse tipo de concorrência.
A Amazon usa com extrema agressividade e eficiência sua política de preços na ação dupla de “enganchar” os clientes, envolvendo-os em seu ecossistema, e pressionar as editoras por margens maiores. Sem nenhuma dúvida fará isso no Brasil.
Se resolver entrar de imediato na venda de livros impressos, a Amazon enfrentará aqui algumas dificuldades que não encontrou em outros lugares, e a principal é a da logística. A precariedade da nossa distribuição é conhecida e não merece comentários adicionais; o POD, que é amplamente usado nos EUA, (inclusive para diminuir os custos de logística) também é precário por aqui. Mas já existe uma estrutura montada, que a Amazon pode aproveitar (Correios e courriers). Aí é questão de fôlego financeiro para equacionar o problema e oferecer um serviço tão bom ou melhor do que o oferecido pelas cadeias de livraria existentes.
Um fator de dificuldade para o fortalecimento da Amazon no mercado brasileiro é o das compras governamentais, extremamente significativas para o setor de livros educacionais e cada vez maiores para a literatura, também. Como as negociações da Amazon são todas feitas com exigência de confidencialidade, é difícil saber os detalhes. Mas um dos pontos do modelo que ela vem oferecendo para as editoras brasileiras é que estas não poderiam oferecer condições melhores de venda e preço para outros clientes. Quem vende para o governo vai aceitar isso? Se aceitar, pode ter certeza que a Amazon vai usar essa cláusula para exigir as mesmas condições que o FNDE tem para suas compras. Vai ser hilário…
Outro panorama aventado por Mike Shatzkin para o crescimento da Amazon no mercado internacional é o do crescimento de seu braço editorial. Atualmente a “editora” Amazon é insignificante, comparada com as tradicionais. Mas a contratação do veterano Kirschbaum para dirigi-la mostra um empenho em fazer isso crescer. Por enquanto, ainda não conseguiu atrair grandes autores, a exceção conhecida sendo o Deepak Chopra. Mas, se contratarem grandes nomes da ficção e começarem a lançar as traduções diretamente nos mercados onde tem presença, como na Espanha, na França, e no Brasil?
Shatzkin assinala – já em uma resposta a um comentário ao seu post – que o avanço da Amazon nos outros mercados pode ser controlado por legislação local de preços.
Ou seja, o chamado “preço fixo” pode vir a ser uma defesa contra os ímpetos monopolistas da Amazon. A chegada dessa empresa pode até modificar a opinião sobre o assunto por parte das grandes editoras, até hoje refratárias à ideia, e também das cadeias, que usam a liberdade de preços para fazer, em menor escala, o que a própria Amazon faz. Duvido que tenham fôlego para aguentar a capacidade de fogo de descontos da Amazon…
O último post de Shatzkin comenta a iniciativa da J. K. Rowling, de vender as versões de e-books do Harry Potter sem o DRM. Ele assinala que em janeiro, no encontro do Digital Book World, Matteo Berlucchi, da Anobii (um varejista baseado no Reino Unido que é parcialmente de propriedade de três grandes editoras) declarou que só com a eliminação do DRM ele poderia vender para os proprietários do Kindle. Shatzkin chama a apresentação de “presciente” e congratula Charlie Redmayne, o CEO da Pottermore, por ter coragem de provar que isso é possível. A alternativa do Pottermore é uma espécie de “marca d’água” eletrônica incrustrada na cópia vendida, que apenas identifica quem a adquiriu. Diga-se que tanto o DRM quando essa “marca d’água” são possíveis graças ao desenvolvimento do DOI – Digital Object Identifier, programa patrocinado pelas grandes editoras, com o apoio da Associação Internacional de Editores, e desenvolvido em meados dos anos 1990.
Evidentemente todas essas questões estão sendo consideradas pelas grandes editoras brasileiras. Mas nada que passe pela coordenação das entidades do setor (CBL, SNEL, ABRELIVROS), e muito menos pelas redes de livraria. Espero que todos se lembrem das observações do filósofo e economista alemão do século XIX que assinalava o caráter extremamente predador das empresas capitalistas atuando em um mercado “livre”: o capitalismo sobrevive e cresce depois das crises, mas as crises chegam inevitavelmente e resultam em concentração e diminuição da concorrência. O impulso monopolista da Amazon é irrefreável se for enfrentado por cada empresa isoladamente. Assim, que não esperem que o fogo esteja lhes lambendo para que comecem a pensar em soluções legais e institucionalizadas que possam evitar o rumo monopolista que a Amazon costuma imprimir à sua atuação.
Uma última e singela observação: as disputas acerca das práticas da Amazon chegaram ao campo judicial e político nos EUA. Em um primeiro nível, a ação contra o modelo de “agenciamento” que as grandes editoras conseguiram impor depois da chegada da Apple no mercado, em plena evolução. A outra é a denúncia de que a Amazon só dá dinheiro para os Republicanos, o que é complicado lá no bipartidarismo deles. O site do San Francisco Chronicle publicou matéria sobre o assunto, já em 2005. De lá para cá, ao que parece, piorou.
Post muito bom!
Boa análise de negócio, sem demonizar a Amazon.
Vejo muitas matérias retratando a Amazon como o grande vilão. Não sabem que para chegar onde estão hoje, essa empresa acumulou prejuízos por longos anos. E também se esquecem de mencionar os benefícios que trazem para o consumidor. Como usuário do Kindle, achei a experiência de uso excelente. Também costumam falar sobre como é ruim o leitor ficar “preso” ao ecossistema da Amazon, mas estar assim “preso” significa que o leitor pode comprar direto do aparelho com apenas 1 clique. Ou seja, a compra do arquivo se torna a primeira opção, contra a opção de pirataria.
O meu ponto é que a Amazon chegou onde está por oferecer um ótimo serviço para os clientes. E ainda mais, ela pode acabar abocanhando margens maiores, mas é melhor para as editoras trabalharem com margens reduzidas do que perderem as vendas para pirataria.