No post Sem editores o livro não vive, sem tradutores, não viaja tentei mostrar como a vida editorial de uma obra é fundamental para seu reconhecimento e sua transformação em um “clássico”.
Quero aproveitar a oportunidade para fazer uma “demonstração reversa”: o exemplo de um livro que teria tudo para se tornar um clássico comparável ao de Cervantes, e importantíssimo para a consolidação do português como idioma literário, e que perdeu essa oportunidade por conta de circunstâncias políticas que se refletiram sobre seu destino editorial.
Trata-se da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, relato das aventuras que esse português passou pela Ásia e Oceania durante décadas, e onde apresenta uma visão “por dentro” do ciclo das navegações: pilhagens, portugueses escravizando portugueses e roubando uns aos outros, extrema violência e cobiça e outras pérolas do gênero.
O livro foi publicado pela primeira vez em Portugal em 1614, depois do autor já ter morrido havia 31 anos.
As circunstâncias políticas que menciono são as seguintes:
1 – Os Lusíadas, publicado em 1572, é um panegírico das navegações lusitanas. Em 1580 Portugal passa a ser governado por Filipe II da Espanha, e a obra camoniana assume cada vez mais o papel de sustentáculo ideológico do nacionalismo português;
2 – Fernão Mendes Pinto escreveu a Peregrinação entre 1569 e 1578, e recebeu uma tença (pensão) do soberano espanhol que governava Portugal. Além do mais, vinculou-se, no fim da vida, aos jesuítas, o que o colocava sob suspeita para uma boa parte do resto do clero e da nobreza portuguesas. A Ordem de Jesus sempre foi polêmica e controversa.
A história das edições da Peregrinação é significativa disso. Teve um sucesso inicial fulgurante (dezenove edições em seis línguas), logo depois entrou em um limbo editorial. Edições esparsas, geralmente reproduções da edição de 1614. Somente em 1908-1909 aparece uma “edição popular” em Lisboa e, até a restauração democrática em Portugal, há notícias, no século XX, de apenas cinco edições (além da mencionada popular), três das quais reproduzindo o original, sem tratamento crítico. Ou seja, só para eruditos. Apenas a quinta edição do século XX, de 1961, preparada por Antônio José Saraiva, traduz um esforço para tornar Fernão Mendes Pinto acessível ao leitor moderno (cf. “Prefácio” de A. J. Saraiva, op. cit. pg. XLVI e sgs.). A edição em português atual preparada pela escritora Maria Alberta Menéres, foi lançada em 1971, nos estertores do salazarismo.
Tudo o contrário dos Lusíadas e obviamente também do Dom Quixote de Cervantes.
Para muita gente mais capacitada que eu, a Peregrinação é um marco importantíssimo na consolidação do português como forma literária em prosa. No entanto, até hoje é um personagem semiclandestino na literatura portuguesa, e só foi editado pela primeira vez no Brasil em 2005.
Tive o enorme prazer e a honra de ser o editor da Peregrinação no Brasil. Passei mais de vinte anos tentando fazer isso, desde que era sócio da falecida Marco Zero. Somente em 2005 a Nova Fronteira, então ainda sob a direção de Carlos Augusto Lacerda, topou a parada, graças também a um incentivo do programa de apoio à edição de autores portugueses do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. A edição, em dois volumes, era a reprodução, com notas adicionais e ortografia atualizada, da preparada pela prof. Maria Alberta Méneres, em dois volumes. O professor Arno Wehling escreveu uma introdução e eu, que fui o responsável final da edição, escrevi também uma apresentação, da qual reproduzo abaixo vários trechos nos quais dou uma versão explicativa de sua trajetória editorial. O livro continua no catálogo da Nova Fronteira.
Vamos lá ver de perto o destino do Fernão e de sua obra.
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[Fernão Mendes Pinto]abre seu livro queixando-se, “da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória; porque vejo que, não contente de me por na minha Pátria logo no começo da minha mocidade, em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns sobressaltos e perigos de vida, me quis também levar às partes da Índia, onde em lugar do remédio que eu ia buscar a elas, me foram crescendo com a idade os trabalhos e os perigos”.
Fernão Mendes Pinto foi buscar o remédio, mas o que apresentou a seus leitores foi a brutal descrição das barbaridades cometidas entre os próprios portugueses e para com as populações asiáticas, que certamente não se encaixava com a visão heroica que se aprestava para ser construída precisamente naquele momento, quando o domínio português começava a mostrar seus sinais de esgotamento como ação estatal organizada, e passava a existir quase apenas como suporte para a ação dos mercadores – legítimos e piratas – que assumiam o comando da presença portuguesa na Ásia. Efetivamente, Antônio de Farias, o personagem de boa parte da Peregrinação, não cabia no molde do herói camoniano nem se encaixava na estátua do Vasco da Gama erigida pelo seu tetraneto na casa da Câmara de Goa.
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No Rio de Janeiro, aí pelo começo dos anos oitenta, uma companhia de teatro popular portuguesa, “A Barraca”, apresentou no teatro Glauce Rocha várias montagens de peças portuguesas contemporâneas. Entre elas, uma curiosa e divertida Peregrinação que, para mim, apresentava pela primeira vez o paralelo de vida e obra entre o galego (Camões) e o alentejano (Fernão).
São contemporâneos quase perfeitos. Não há data certa do nascimento de Fernão Mendes Pinto, embora se calcule tenha sido 1510. Seria, então, 14 anos mais velho que Camões, nascido em 1524.
Fernão Mendes Pinto passa vinte e um anos continuados na Ásia, entre 1537 e 1558. Camões divide sua experiência asiática/africana em duas etapas (1549/1551 e 1553/1570). Mas este se inscreve totalmente na estrutura portuguesa oficial, na ventura e na miséria. Fernão Mendes Pinto, por sua vez, embora embarque inicialmente numa frota oficial, oscila permanentemente entre funções oficiais e extraoficiais e o comércio (legítimo e corsário) privado. “Era em 1654 um traficante que ganhara muitas riquezas navegando entre o Japão, a China e o Pegú, durante longos anos”, relata Antônio José Saraiva, citando correspondências dos jesuítas, aos quais o “traficante” tinha se ligado naquele ano, financiando uma missão destes ao Japão e a construção de pelo menos uma igreja em Malaca.
Camões regressa definitivamente a Portugal em 1570 e dois anos depois publica seu poema épico. Fernão Mendes Pinto, já há muitos anos retornado, só terá seu livro publicado em 1614, trinta e um anos depois da sua morte, acontecida em 1583, três anos após a de Camões. Tinha, antes de morrer, recebido uma tença de Felipe II, o espanhol que então ocupava também o trono português.
Não se trata, aqui, nem mesmo de fazer resumo das biografias dos dois literatos. Pretendo apenas assinalar alguns marcos que permitem situar o ambiente social e político da trajetória dos dois, para adiante considerá-los em função da apreciação dos pósteros sobre as respectivas obras.
É necessário, entretanto, acrescentar mais um personagem nessa história. Dom Miguel de Cervantes, um pouco mais novo que os dois portugueses (nasceu em 1547), e que publicou seu Quixote em 1605. Morreu onze anos depois, em 1616.
(Curioso notar que os três literatos foram também soldados e aventureiros, prisioneiros e feridos – Camões cego, Cervantes maneta e Fernão Mendes Pinto açoitado e escravizado várias vezes – dando azo à confirmação do mote renascentista: naquela época os homens tinham que fazer de tudo e saber de tudo, nada de especialistas).
Cervantes assume na literatura em castelhano o papel de grande fundador. Tal como se estabeleceu que seria o papel de Camões para o português. Ora, poderia perguntar mais tarde o Conselheiro Acácio, se FMP escrevia em prosa, como Cervantes, porque o alentejano não assume o mesmo papel nas letras lusas?
Diz Antônio José Saraiva: “O Autor da Peregrinação e a sua obra confundem-se à primeira vista: Fernão Mendes Pinto é para nós o herói da Peregrinação. Mas não deve esquecer-se que o Fernão Mendes da Peregrinação é uma criação literária do Autor do livro. Se não houvesse documentos a autenticar a existência de Fernão Mendes Pinto nada nos garantiria que este não fosse uma pura personagem de romance, como o Guzmán de Alfarache de Mateo Alemán”.
Aí está, na minha opinião, a chave da questão. Cervantes não tem medidas e liquida o fabulário medieval com personagens declaradamente ficcionais. Fernão Mendes Pinto torna-se ele mesmo personagem de um texto que oscila entre o relato autobiográfico e a mais pura invenção.
Fernão Mentes? Minto!
E, para o Portugal subjugado pelos Habsburgos, mente sobretudo naquilo que era mais caro e fundador do nacionalismo português: a conquista da Ásia não foi simplesmente um feito heroico, a hipocrisia da missão religiosa transparece quase que a cada página da Peregrinação e Antônio de Faria, o personagem de maior destaque de quase metade do livro certamente não foi feito nos moldes heroicos de Vasco da Gama.
Essa oscilação parte, certamente, do fato de que grande parte do livro se baseia efetivamente no relato de uma vida. Novamente Antônio José Saraiva assinala que a Peregrinação constitui “uma das primeiras informações de conjunto acerca do Extremo Oriente – com o atrativo especial de ser uma informação em forma romanesca e sugestiva para os espíritos pouco dados a leituras áridas”.
Compreender essa oscilação é crucial para o desfrute dos leitores de hoje e ajuda a explicar os fados do livro.
É relato de fatos verídicos? Certamente. A grande maioria dos fatos descritos, as indicações geográficas, da fauna e da flora mencionadas já foram conferidas por historiadores.
É mentira? Certamente. Além de exageros e imprecisões, vários críticos assinalam relatos fantásticos inseridos no texto. Aqui, entretanto, cabe desde logo uma observação. O relato renascentista não distinguia o visto pessoalmente pelo autor do que lhe fora dito por terceiros ou lido alhures. E certamente Fernão Mendes Pinto não vai diferenciar vários mitos que lhe são relatados – e que são claramente mitos de origem ou de explicação de posturas religiosas – como se fosse um moderno antropólogo. Essa indiferenciação é muito comum na literatura da época. Carlo Ginzburg, no seu ensaio O Queijo e os Vermes cita o exemplo do Il Cavalier Zuanne de Mandavilla, livro apreendido na biblioteca do moleiro acusado de heresia pela inquisição, como “o famoso livro de viagem, escrito em meados do século XVI e atribuído a um fantasmagórico sir John Mandeville”. Uma mostra galhofeira disto nos é dada por Umberto Eco no seu romance Baudolino. Em pleno Renascimento, a distinção entre o “real” e o imaginário naquela sociedade fortemente marcada pela crença no relato fantástico do Deus que nasce de uma virgem fecundada por um anjo, não era fácil de ser feita.
Entretanto, essa oscilação entre o relato factual e a criação literária que está presente na Peregrinação termina por abrir o espaço para que o livro entre numa espécie de limbo: é lido e admirado pelos especialistas, mas jamais teve a divulgação que merecia. E muito menos se promove junto ao grande público a importância do livro para a consolidação do português como idioma literário.
É esse espaço que torna possível, e no ambiente de decadência do poderio marítimo e imperial de Portugal, até necessário, que se promova a ocultação da Peregrinação. Ou alguém seria ingênuo de pensar ser possível que o reinado decadente do século XIX e a república claudicante do século XX se orgulhasse da obra de Fernão Mendes Pinto? Isso para não mencionar a ilusão salazarista do Portugal “avozinho” das colônias, vendendo aqui no Brasil o papel “civilizatório” do domínio português.
Para todos, quanto menos se falasse da Peregrinação e mais se louvasse Os Lusíadas, melhor.
Ao fim e ao cabo, tanto Fernão Mendes Pinto quanto Camões pagaram o pato. O primeiro, oculto, e o segundo transformado numa verdadeira tortura nas aulas de gramática nos dois lados do Atlântico.
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A estrutura da Peregrinação como sátira – e dentro do gênero de romance picaresco que teve seu auge no Siglo de Oro da literatura da Península Ibérica – é reconhecido amplamente pelos especialistas. Sempre, porém, notando-se essa ambiguidade de gênero que transparece na obra.
O conteúdo acerbamente crítico do livro, por exemplo, é assinalado por Rebecca Catz: “Só ele, no desabrochar da era do imperialismo europeu, teve a grande coragem, o discernimento e a perspicácia de pôr em dúvida a moralidade das conquistas ultramarinas, as quais condena como atos de bárbara pirataria, em ofensa a Deus. (…) Na filosofia de Mendes Pinto, a missão de conquistar era inspirada pela cobiça e mascarada pela hipocrisia; e a missão de converter estava condenada desde o começo porque os Portugueses tiveram plena consciência de que pecavam contra Deus, violando os seus mandamentos. (…) O maior santo católico do seu tempo, Francisco Xavier, é obliquamente apresentado na obra como um sacerdote-guerreiro que instiga os homens ao combate. O retrato de Francisco Xavier contrasta com o dos sacerdotes pagãos, aos quais é proibido trazer ‘qualquer coisa que tire sangue’”.
Antônio José Saraiva sintetiza magistralmente o cul-de-sac em que meteram Fernão Mendes Pinto na história da literatura em língua portuguesa, no seu Prefácio: “Hoje em dia Fernão Mendes Pinto pode considerar-se um desconhecido. Não só porque a Peregrinação deixou de ser lida fora de Portugal, mas porque os leitores portugueses nem sempre se dão conta do rico conteúdo que o livro encerra. Os eruditos continuam a discutir o problema da veracidade ou autenticidade da informação geográfica da Peregrinação. Uns batem-se a favor, outros contra. E esquecem o essencial: que a Peregrinação é, antes de mais, uma obra de arte de grande classe, uma das maiores criações romanescas saídas da Península Ibérica. É como obra de arte ou, mais precisamente, como expressão de uma consciência e de uma realidade através da ficção, que me parece que importa considerá-la, marcando o seu lugar e o seu significado dentro da história do romance na Península Ibérica e dentro da história das ideias na literatura europeia”.
A publicação da Peregrinação no Brasil assume, assim, a importância singular de apresentar ao nosso público uma das obras capitais da formação do nosso idioma como língua literária, até agora inédita nas nossas praias. Somos também herdeiros do caldo de cultura e desenvolvimento social que lançou aquele pequeno povo da fímbria atlântica da Europa na conquista dos mares nunca dantes navegados, e não podíamos mais ser cúmplices na ocultação desta peça vital do que é também a nossa formação.
Ao contrário de Camões e de Cervantes, a obra de Fernão Mendes Pinto não caminhou pelas Américas, e perdeu aqui também a oportunidade de crescer com sua leitura, como diz um velho adágio.
Ler o livro vale a pena, pois certamente não é pequena a alma do autor.
Referências:
Saraiva, Antônio José, “Prefácio”, à Peregrinação, de FMP, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1961, p. VII e sgs.
Ginzburg, Carlo, O Queijo e os Vermes, Companhia das Letras, SP, 1987.
Catz, Rebecca, “Para uma compreensão da Peregrinação”, in Peregrinação, (edição de Maria Alberta Menéres), Ed. Afrodite, Lisboa, 1989.
Um comentário em “Como a política e as condições sociais podem atrapalhar a “viagem” de uma obra”