Plágio, mentiras e o programa do Livro Popular

A Fundação Biblioteca Nacional divulgou, esta semana, resolução embasada no parecer da Comissão composta por membros do Conselho Interdisciplinar de Pesquisa e Editoração (CIPE), instituída para averiguar a reclamação da tradutora Denise Bottman sobre plágios e apropriação indébita do trabalho intelectual, praticada pela Editora Martin Claret ao inscrever vários títulos do seu catálogo no Cadastro Nacional de Títulos de Baixo Preço.

O parecer opinou pela “exclusão preventiva” das obras questionadas até que o assunto fosse julgado pelas instâncias judiciais pertinentes. O conselheiro Ivan Teixeira, em voto em separado, pediu a exclusão da Editora Martin Claret do cadastro, mas foi voto vencido.

A decisão da presidência da FBN, argumentando que a exclusão só pode ser feita “pela autoridade judicial competente”, optou por remeter o problema para o Ministério Público, sem suspender o cadastro das obras questionadas.

O imbróglio merece uma análise mais detalhada.

Temos, em primeiro lugar, a atuação valorosa de Denise Bottman que, no seu blog naogostodeplagio vem apontando as falcatruas de várias editoras que se apropriam de traduções antigas para republicar os livros, às vezes até sem nenhuma maquiagem. Denise Bottman exerce um importante papel ao apontar essas fraudes. Muitas delas podem até não se caracterizar como ilegalidades, do ponto de vista formal (casos em que a própria tradução já é de domínio público), e várias são “obras órfãs”, há muito fora do mercado. No entanto, essas exigiriam licença do detentor dos direitos autorais para sua republicação. Em um e outro caso, entretanto, verifica-se gravíssimo estelionato moral e infringência à lei dos D.A., que reza explicitamente que o reconhecimento da autoria não pode ser furtado ao seu titular. Denise enfrenta bravamente editoras que cometem, no mínimo, essa infringência de negação de autoria das traduções. Um verdadeiro estelionato moral.

Essa a primeira parte da questão.

A segunda parte decorre da inscrição, por parte da Editora Martin Claret, de obras cuja autoria foi fraudulentamente declarada, fraude detectada por Denise Bottman e objeto de representação feita por ela junto à FBN e ao Ministério Público. Fraude reconhecida, em relação a vários títulos, pela própria responsável pelo Departamento Editorial da Martin Claret, Taís Gasparetto, que anunciou à imprensa que os títulos suspeitos seriam retirados do catálogo e substituídos por novas traduções. Ou seja, a representante da Editora Martin Claret reconheceu que a empresa havia mentido ao cadastrar as obras no portal da FBN.

O edital para a inscrição de obras no programa de livros de baixo custo é claro ao explicitar que a Editora é responsável pela veracidade das informações prestadas, inclusive quanto à autoria e a legalidade da edição cadastrada.

Ao mentir, portanto, a editora claramente infringiu um dispositivo explícito do edital. Isso, por si só, deveria bastar para a exclusão pelo menos das obras mencionadas, do portal da Fundação Biblioteca Nacional.

Toda a atitude da FBN no caso, entretanto, vem se respaldando na inexistência de decisão judicial que determine a retirada do mercado de obras irregulares.

Ora, como diria o Conselheiro Acácio, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Em nenhum momento Denise Bottman solicitou que as obras denunciadas fossem retiradas do mercado por ato administrativo da Fundação Biblioteca Nacional. Foi solicitado que fossem excluídas de um programa que, entre outras características, usa recursos públicos para que as bibliotecas adquiram os livros cadastrados no portal da FBN.

A retirada de um título do mercado é realmente algo muito complicado e que deve ser objeto do maior cuidado. Aceitar que alguma ação administrativa retire de circulação no mercado um determinado título é uma afronta direta aos preceitos constitucionais da liberdade de publicação, de opinião e do que mais seja. Permitir essa ação no âmbito da administração é instituir a censura, coisa que termina sempre nas costas da liberdade de expressão. É inadmissível que qualquer instância administrativa determine a retirada do mercado, impeça a venda de qualquer título. Isso só pode ser feito por decisão judicial e temos inclusive projetos de lei tramitando no Congresso para impedir que sejam cometidos abusos em nome da privacidade, o que tem justificado a censura a biografias. O que pode até começar com boa intenção inevitavelmente será mais tarde usado por algum esbirro para exercer censura moral ou política.

Medidas administrativas para a retirada de livros de circulação, portanto, são um limite que não pode ser transposto por quem preza a democracia, a liberdade de opinião e o direito de publicação. Todas são cláusulas constitucionais colocadas na Carta Magna como resultado de lutas, com o sangue de brasileiros, presos e torturados na luta pela democracia, contra a censura e o arbítrio da ditadura militar, e que devem ser intransigentemente defendidas.

Mas será disso que trata o caso do programa da FBN?

Evidentemente que não.

Vejamos essas questões mais de perto.

O programa do livro de baixo custo e o repasse de verbas para que as bibliotecas públicas adquiram diretamente os livros que desejarem constitui um avanço importantíssimo da gestão do governo da Presidente Dilma, da administração Ana de Hollanda e da ação de Galeno Amorim na presidência da FBN.

O programa faz parte do projeto de substituir a aquisição de livros para bibliotecas públicas a partir de listas elaboradas por “especialistas”. Agora são as próprias bibliotecas – através de seus administradores e usuários – que passam a ter o poder de decidir a aquisição dos acervos.

Para participar do programa, entretanto, as editoras devem cadastrar os livros com informações fidedignas sobre a autoria e sua capacidade de publicá-los.

E a Editora Martin Claret faltou com a verdade sobre alguns dos títulos cadastrados.

Ora, o que acontece nos programas governamentais de aquisição de livros sujeitos à avaliação do conteúdo? Esse tipo de atitude resulta na imediata desqualificação do livro para aquisição pelo programa governamental.

O que acontece na eventualidade de uma empreiteira mentir nas informações cruciais de uma licitação? É imediatamente desqualificada.

Tanto no primeiro caso quanto no segundo, a punição é afastar o infrator da condição de fornecedor do Estado. Podem continuar vendendo livros nas livrarias, podem continuar fazendo obras para particulares. Não são retirados do mercado: simplesmente não fornecem para o Estado.

É isso que a Fundação Biblioteca Nacional deveria ter feito. Ao constatar uma mentira nas declarações da Editora Martin Claret, deveria desqualificá-la como fornecedora de livros para um programa que usa verbas públicas, assim como deveria fazê-lo em qualquer outro caso semelhante.

Não se pede, no caso, que a FBN se arrogue o direito de emitir resolução definitiva sobre a violação de direitos autorais, e sim que garanta a integridade de seu programa de aquisições de livros com recursos públicos.

Um dos posts que Denise Bottman fez sobre o assunto ela argumenta que a FBN deveria avaliar a documentação de todo e qualquer livro que fosse inscrito. Em comentário que fiz ao post, chamei atenção para isso ser simplesmente inviável. São milhares de títulos. Mesmo um exame superficial exigiria meses e meses de uma análise puramente burocrática dessa documentação.

Pior ainda: quem está disposto a mentir, mente também na documentação. Obrigar o exame prévio dos títulos inscritos seria tão somente instituir uma kafkiana e inútil burocracia.

Vejam bem: quero deixar explícito que sou contra a suposta análise da “qualidade” dos livros por parte da administração da FBN ou de comissões nomeadas. Isso seria simplesmente voltar ao reino dos ditos “especialistas”, leiturólogos que se arrogam o poder de decidir o que os usuários das bibliotecas podem ler. Por isso mesmo defendo que qualquer livro possa ser inscrito no cadastro, obedecendo aos requisitos do edital.

Qual a solução?

Certamente não existe solução perfeita. Uma das medidas aventadas nas discussões do programa do livro popular foi que o Portal da FBN abrisse espaço para resenhas e críticas de leitores. Desse modo, elogios poderiam ser feitos; análises dos títulos poderiam ser conhecidas; e denúncias e críticas dos títulos de má qualidade inscritos também estariam presentes. Publicadas sem qualquer restrição que não a dos bons modos. Certamente nem todos os títulos seriam avaliados, elogiados ou condenados. Mas o espaço estaria aberto para pessoas atentas alertarem bibliotecários e usuários sobre qualidades e defeitos de títulos. Sem interferência de comissões ad hoc, mas contribuindo para a qualidade das aquisições, fossem essas feitas por particulares ou por bibliotecas.

A luz do sol, a exposição das críticas, perfeitamente factível com os meios eletrônicos disponíveis é a única alternativa viável e democrática para que se depurem os títulos apresentados. E que se constate a existência eventual de fraudes como as denunciadas pela Denise Bottman. Que, então, depois de depuradas do cadastro, seriam encaminhadas, pela Fundação Biblioteca Nacional, por dever de ofício, ao Ministério Público.

São sei a razão pela qual o portal não acolheu a sugestão de abrir o espaço de críticas para os leitores. Mas esse é um aperfeiçoamento que precisa ser urgentemente providenciado, como uma das maneiras possíveis para ajudar a sanear o programa.

Também é necessária a urgente reformulação da decisão sobre os livros cadastrados com informações falsas. A consultoria jurídica da FBN apontou a mira para um problema que não existe. Ninguém quer censura, nem retirar publicações do mercado. Queremos, sim, a integridade e o aperfeiçoamento do programa do livro popular, e a consolidação do Cadastro Nacional do Livro de Baixo Preço.

6 comentários em “Plágio, mentiras e o programa do Livro Popular”

  1. isso, felipe, sua sensatez, sua lucidez, sua capacidade de expressão são maravilhosas.

    é exatamente isso o que vc diz – no fundo, a fbn está se furtando a seu papel institucional, e certamente todas as bibliotecas do programa vão considerar que ela está dando sua chancela aos livros inscritos, vão julgar que lhes estão sendo ofertadas obras lídimas.

    abraço
    denise

  2. “Certamente não existe solução perfeita. Uma das medidas aventadas nas discussões do programa do livro popular foi que o Portal da FBN abrisse espaço para resenhas e críticas de leitores. Desse modo, elogios poderiam ser feitos; análises dos títulos poderiam ser conhecidas; e denúncias e críticas dos títulos de má qualidade inscritos também estariam presentes. Publicadas sem qualquer restrição que não a dos bons modos. ”

    Caro Lindoso,
    ótimo artigo. Só faço, não um reparo pois a idéia é muito boa, mas uma nota sobre o parágrafo acima: tanto o portal onde esses comentários poderiam ser feitos e o comentadores correm o risco de serem processados caso denunciem ou até mesmo critiquem de forma mais veemente, livros ou editoras.
    Experiência própria.

  3. Não se pode acusar sem provas, que podem ser, documentais, testemunhais e periciais.
    Para o caso apontado, já que a FBN está envolvida, seria prudente que o fato fosse levado ao Ministério Público Federal que, com certeza, abriria um inquérito civil e em seguida poderia ingressar com uma ação contra o suposto infrator requerendo uma perícia e o juiz é quem decide a questão através de uma sentença, condenatória ou não.
    Todo acusado tem o direito de defender-se até a última instância.
    É preciso termos o cuidado para não difamarmos, caluniarmos e injuriarmos alguém.

    1. Não nego o direito de defesa no post. Defendo o direito (e mais, o dever) da FBN excluir de compras públicas obras sobre as quais pairam dúvidas sobre a legitimidade da autoria. Esses livros podem continuar no mercado até que a justiça se manifeste. O FNDE, por exemplo, faz os livros submetidos aos programas de aquisição do MEC passarem por um controle de qualidade…

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