A Professora Rita Olivieri-Godet ensina na Université de Rennes 2, na França. É mapeada no projeto Conexões Itaú Cultural – Mapeamento Internacional da Literatura Brasileira, e a conheci pessoalmente no Fórum das Letras, em Ouro Preto. Ela esteve há poucas semanas no Brasil, lançando seu livro “Viva o Povo Brasileiro: a ficção de uma nação plural”.
Pois bem, no último dia 8 de março, recebi o seguinte e-mail da professora Rita Olivieri-Godet:
“Estou lhe escrevendo porque fiquei sabendo que você virá para o Salon du livre agora em março.
Quando estive no Brasil recentemente, eu procurei mas não consegui comprar o romance de Maria José Silveira, “Guerra no coração do cerrado”. Como venho trabalhando sobre a representação dos índios na literatura contemporânea este romance me interessa muito. Encomendei na Livraria Cultura de Salvador e até agora nada, embora eles tenham garantido que vão me enviar e eu já tenha pago a encomenda e o envio inclusive.
Então, se houver alguma possibilidade de você me trazer um exemplar eu o comprarei e quando o meu chegar colocarei na biblioteca da Université Rennes 2. Se não for possível, continuo aguardando (im)pacientemente o exemplar que encomendei na Cultura, não tem problema, não se sinta obrigado, estou apenas tentando ver se recebo o livro o mais cedo possível”.
O livro, lançado pela Record em 2006, recebeu excelentes resenhas, e seguiu seu destino.
Como todos os livros lançados há quase dez anos – e que não estão na lista dos bestsellers ou adotados – já sumiu há muito das livrarias. Até aí, é o normal. Entretanto, espera-se que os sites de comércio eletrônico das principais livrarias possam entregar um livro da Editora Record – o maior grupo editorial trade do país – sem maiores problemas. Ledo engano. Pedido no dia 9 de março, pelo site da Livraria Cultura, o livro tem a previsão de entrega, em S. Paulo, no dia 24 de abril. Como esse blog quer ser sério, nem uso a expressão que me ocorreu na hora em li isso. Fico com um eufemismo: Lascou-se! Para que não digam que se trata de ficção da minha parte, eis o resumo do site da Livraria Cultura.
A Record tem, como sabemos, depósito em S. Paulo. Mesmo que não tivesse, certamente não levaria quase um mês e meio para trazer um livro do Rio de Janeiro para cá. Nem vi o prazo dado pela Livraria Cultura para entregas internacionais. Poupei-me do aborrecimento adicional. A professora Rita Godet já está sofrendo isso.
Ou seja, em S. Paulo, maior mercado de tudo neste país, o cliente tem que ter uma paciência bíblica para receber um livro editado há meros nove anos, presente no catálogo da editora. Imagine se o pedido é feito por algum pobre e desesperado leitor que more no interior do Piauí?
A tragédia se repete, e já virou farsa faz tempo. A distribuição de livros no Brasil é uma droga pesada, de deixar de bode até os mais fortes.
A Amazon pode melhorar essa situação. A Livraria Cultura que se cuide, pois a multinacional entrega em dois dias, em S. Paulo, depois de completado o pedido. Com desconto. O preço de capa de R$ 49,00, oferecido na Cultura, sai na Amazon a R$ 29,90, e com a possibilidade de frete grátis se outros livros forem acrescentados. Mesmo a Saraiva (que só dá desconto no cartão da loja), entrega em quatro dias úteis, com frete de R$ 1,90.
Parei por aí a pesquisa.
Mas a tragédia não para nisso. Como diz em seu e-mail, a professora Rita Olivieri-Godet está pesquisando a representação dos índios na literatura contemporânea. Bem, ela sabia que o romance da Maria José Silveira trata desse assunto. É a história de uma índia Cayapó-Panará, que viveu em Goiás no final do século XVIII e no começo do Século XIX, e que teve um papel importante, no final das contas, na dizimação do seu próprio povo, ao servir de “ponte” para convencê-los a se aldear, quando morreram de doenças e fome. Doenças muitas vezes deliberadamente provocadas pelos brancos.
Certamente a professora já dispõe de uma lista de outros romances que abordam o assunto, conseguida por indicações de colegas e alunos. Por que, se fosse contar com os mecanismos de busca do site das livrarias, estava no mato sem cachorro, perdida e não poderia nem se aldear. Lascava-se pela segunda vez.
Nesse caso, não escapa ninguém, nem o site da Amazon brasileira que, ao contrário dos EUA, não demonstra ter um mecanismo de busca decente.
Antes de tentar explicar isso, mostro alguns exemplos dos equívocos verificados rapidamente nos sites da Cultura, da Saraiva e da própria Amazon, quando se faz uma pesquisa sobre “representação dos índios na literatura”.
No site da Livraria Cultura, por exemplo, alguns livros do próprio Darcy Ribeiro – que referência mais conhecida poderia haver? – aparecem como esgotados ou nem são citados. Maíra, o grande romance sobre os impasses da aculturação, só aparece ali na edição francesa. Edição brasileira está no catálogo da Record, disponível em edição especial, e no da Global, em edição normal. Uirá sai à procura de Deus, nenhuma referência. E daí em diante. O Daniel Munduruku, autor de quase vinte títulos, só tem um de seus livros na Livraria Cultura. Ainda bem que o Daniel, esperto, montou uma lojinha no seu site, vendendo os títulos de todas as editoras que o publicam.
Em compensação, aparecem no site da Cultura títulos que me deixam absolutamente abismado. O que será que “Mestres da Humanidade”, do filósofo alemão Karl Jaspers tem a ver como esse tema? Ou “Serial Killers Made in Brasil”, “As Origens da Cabala” e, incrível, “O Dono do Mar”, do Sarney? Só posso atribuir essa presença na pesquisa à minha mais profunda ignorância do tema. Quando vi as memórias da Luiza Brunet lembrei que ela menciona uma ascendência indígena. Mas, em uma pesquisa sobre “representação dos índios na literatura”? E um livro intitulado “Jihad”? Será que os fundamentalistas islâmicos andaram recrutando guerreiros Carajás para lutar ao lado do EI? E vai por aí, e quem quiser que repita a pesquisa.
O samba do crioulo doido continua. O mesmo elemento de pesquisa no site da Saraiva apresenta o “Vade Mecum Saraiva” (e duas vezes), e o box com a “Trilogia dos 50 Tons de Cinza”. Juro! Não li o livro nem vi o filme, mas desconfio que não aparece nenhum índio brasileiro nas sessões sadomasoquistas para senhoras nessa “obra”. Será que o programa acha que o sujeito que procura livros sobre índios e literatura vai se entusiasmar e abrir a carteira quando encontra uma sacanagenzinha pelo caminho? Quando se reduz a pesquisa para “Índios”… aparece um monte de livros sobre a Índia. Tá bom, índia é feminino de índio e o programa mal ajambrado nem desconfia disso. Mas incluir o “Bhagavad Gita”, como faz o site da Amazon, já me pareceu demais.
Riam, amigos, pois é melhor que chorar. Mas a verdade é que os mecanismos de buscas dos sites das livrarias brasileiras impõem, inevitavelmente, o apelo à galhofa. Vai ver que esse é o objetivo final: compensar a incompetência com a piada.
De onde vem essa mixórdia?
Em parte, certamente, da péssima organização dos sites. Mas o pior é que as editoras brasileiras simplesmente mal sabem o que são metadados, não têm ideia de como incluir tags significativos do conteúdo de seus livros.
Bom, o resultado muito concreto disso é, certamente, perda de vendas. Como disse uma vez Richard Stark, que é diretor de “Product Data” da Barnes & Noble e coordenador dessa área do BISG – Book Industry Study Group, em uma palestra dada na Feira de Guadalajara há três anos, quando afirmou, com base em pesquisa da Nielsen nas livrarias da Grã-Bretanha, que “– Livros sem dados básicos completos e sem qualquer imagem venderam em média 385 cópias em 2011; – Livros que acrescentaram uma imagem da capa viram suas vendar subir para uma média de 1.416 (268% a mais); – Livros com os dados básicos completos mas sem imagem tiveram vendas médias de 437 cópias; – Livros com todos os dados necessários e imagens alcançaram uma venda média de 2.205 cópias”. O quanto aumentariam as vendas aqui, diante dessa situação patética dos mecanismos de busca?
Como nossa indústria editorial está simplesmente acostumada a esperar que o leitor ache e compre seus livros, sem outras ações de marketing que os descontos nos best-sellers por ocasião dos lançamentos, isso se reflete nessa situação.
Se o leitor souber o que deseja comprar, e não precisar fazer pesquisas, a Amazon vai papar tranquilamente as livrarias tradicionais. As grandes e as pequenas. Com ou sem preço fixo.
E, se seguirem o exemplo da matriz e desenvolverem melhor seu site e os mecanismos de pesquisa….
* Já acho horrível “discoverability” em inglês, mas não achei modo de traduzir o conceito. Peço ajuda aos meus caros colegas tradutores para que enviem sugestões.
Pedro,
Obrigado, mas não sou professor….
Querido Felipe José Lindoso, li seu artigo na newsletter da Publishnews e só posso lamentar tudo o que você diz, junto com você. Alguns comentários. As editoras atuais, nos critérios de seleção de autores publicáveis, parecem estar sendo guiadas apenas pela “vendabilidade” do autor ou por outros parâmetros quiçá menos confessáveis. Mas é interessante que essa preocupação marketística não se reflete na promoção do livro depois de publicado. Ou seja: antes da publicação, eles tratam o livro como uma mercadoria cuja probabilidade de venda precisa ser alta, mas depois de publicado o livro, eles não promovem a mercadoria que é deles e, em suma, a tratam como um objeto sagrado que se faz por si ou por obra e graça de algum dom supranatural. Ou então jogam nas costas do autor toda a responsabilidade da promoção de seu próprio livro, desde que ele, claro, não seja uma estrela da tevê. Dito isto, não é de admirar essa situação. Parece que ela é resultado de velhos cacoetes incuráveis, neste país cheio de tais cacoetes. A segunda observação é que os mecanismos de busca da Cultura já foram bem melhores. Depois que ela foi vendida (para quem mesmo?), a coisa virou angu. Os caras que cuidam daquilo simplesmente não entendem nadica de nada de livro. Tanto que, se eu tiver em mente exatamente o que quero comprar, vou lá e compro. Se não, deixo quieto. Quanto à sua tradução, já que você pediu sugestão, que tal a simples encontrabilidade ou a mais feinha detectabilidade? Abraço amigo.
Ivone,
Obrigado pelas sugestões. Você aponta várias questões corretas. Na verdade, como o blog é sobre o mercado editorial, nem me restringi à literatura ou aos livros de boa qualidade. Essa tragédia/farsa corta de cima a baixo o mercado editorial. Como você diz, vende quem é estrela da TV, tem filme ou novela na praça ou chega com os descontos (falsos, no meu entender) nos lançamentos.