Era assim que amigos, conhecidos ou quem estivesse envolvido com a presença de sua editora (ou do país) na maior feira de livros de mundo se despediam de Peter Weidhaas que, por 25 anos, foi o diretor da Austellungs und Messe, a empresa de propriedade dos editores e livreiros alemães. É também o título do livro em que ele relembra essa experiência.
Quando conheci Weidhaas, no processo de preparação para a participação do Brasil como tema da Feira de Frankfurt de 1994 (em 1992), ele era, para mim, uma espécie de “todo-poderoso” do evento. O que Peter decidisse, estava decidido. Já fora à Feira antes, mas não o conhecia pessoalmente.
O livro lança luz sobre a trajetória que o levou a essa posição e o que estava subjacente à sua concepção das feiras de livro e de sua importância para a difusão do livro e da leitura.
Até 1968, a Feira do Livro de Frankfurt era exclusivamente de negócios: expositores de vários países chegavam lá para vender e comprar direitos autorais. Em 1968 – um ano que não terminou em muitos lugares – os estudantes alemães organizaram vários protestos durante a feira. Essas manifestações tiveram como resultado, a médio prazo, uma reformulação do escopo da feira, tarefa que foi feita a partir de quando Weidhaas assumiu sua direção, em 1975. Um dos pontos centrais dessa reformulação empreendida por Weidhaas foi a de transformar a Feira também em um evento cultural da maior importância.
O também é importante. Uma feira de livros é uma feira de negócios, é para vender. É completamente diferente, nesse sentido, de um festival literário.
O livro, entretanto, é mais que um objeto. Tem um caráter simbólico e cultural extremamente forte. O que os estudantes alemães reclamavam era do predomínio do negócio de best-sellers na Feira. E essa reclamação tem que ter eco na direção responsável de uma feira de livros, pois o mundo dos livros não vive apenas dos best-sellers. A diversidade das ofertas do mundo dos livros corresponde à diversidade do mundo real. Como papel aguenta tudo, existem livros para todos os gostos.
Weidhaas começou a trabalhar na Feira na área da promoção internacional, a da difusão dos livros alemães em outros países. Nessa condição, ele percebeu um componente importante do mercado internacional de livros e de direitos autorais: o predomínio dos anglo-saxões e, em particular, da indústria editorial americana. É tragicômico o capítulo em que descreve as dificuldades que teve para montar exposições de livros alemães nos EUA. E quando assumiu a direção da Feira de Frankfurt, uma das primeiras críticas veio de herr Unseld, da Suhrkamp Verlag, a propósito da exposição de livros alemães que ele organizou (antes de assumir a direção da Feira) na França. A exposição, que Weidhaas organizou com o lema de “Uma sociedade viva” (a alemã), obviamente mostrava a diversidade de opiniões, tendências e rumos a partir dos livros expostos. Unseld atacou: “A exposição não faz sentido. […] Não representa bem o idioma alemão nem os interesses alemães”. Isto é, não representava, para ele, os interesses dos editores alemães.
Weidhaas resolveu contra atacar em profundidade (o ataque de Unseld não foi o único). A reação contra sua presença na direção da Feira refletia a velha posição de manter o evento exclusivamente como um fórum de negócios. Mas, diz ele: “Os livros precisam de discurso; necessitam do conhecimento pessoal dos estrangeiros ligados ao livro e de seu pano de fundo cultural e social para poder emigrar de um editor para o outro. […] Os direitos de publicação não podem ser negociados com base em simples dados em uma máquina de fax e e-mail. Precisam das pessoas que estão por trás dessas coisas, pessoas que se encontram, conhecem bem uns aos outros, ganham confiança uns nos outros, e falam muito entre si. Isso é o que faz sentido na existência das feiras, para serem um meio para o comércio e distribuição do livro”.
A forma que Weidhass encontrou para responder a essas necessidades foi a da construção de “Temas” que permitissem o diálogo de culturas e proporcionassem o pano de fundo para o desenvolvimento dos negócios.
Os “Temas” respondiam também a uma demanda da sociedade pós 1968: a Feira de Livros de Frankfurt se tornaria, com eles, um foco de discussões culturais, sociais e políticas que iria mais além dos best-sellers, tornando-a assim relevante não apenas para os negócios como também para o debate intelectual.
Logo no primeiro ano de sua administração ele instituiu, ainda de forma tímida, esse conceito, com o tema do “Ano das Mulheres”, que preparou o terreno para o lançamento, em 1976, da América Latina como tema focal.
Talvez muitos não se lembrem, mas esse evento foi crucial para o chamado “boom” da literatura latino-americana no mundo inteiro. Gabriel Garcia Márquez já tinha sido lançado com sucesso, mas a Feira de Frankfurt e as discussões, debates e apresentações de autores latino-americanos provocaram uma verdadeira avalanche de autores do continente no mercado internacional de direitos autorais e da venda de livros.
A tese de Weidhaas de estabelecer um foco central para as atividades culturais da feira tinha se comprovado na prática. Os negócios aumentaram na Feira de Frankfurt, o número de expositores e de visitantes, a cobertura da imprensa. E, obviamente, não foram apenas os autores de literatura latino-americana que se beneficiaram desse novo ambiente. O crescimento da Feira de Livros de Frankfurt continua ininterrupto até hoje. Os “temas” evoluíram para o convite dos países como ponto central dos debates culturais da Feira, e tratarei disso mais tarde.
A trajetória não foi fácil, os problemas inúmeros: Rushdie e a fatwa iraniana contra o escritor, a queda do Muro de Berlim e a dissolução dos países do chamado “socialismo real” (com a diminuição do número de editoras de propriedade dos respectivos Estados, que compravam muitos direitos e ocupavam bastante espaço na Feira), o surgimento e crescimento dos meios eletrônicos; o conflito quase permanente com os editores americanos e ingleses em torno da localização de seus estandes na Feira são alguns exemplos.
Esse último ponto vale mencionar, pois reflete duas questões que Weidhaas teve que enfrentar. A primeira delas diz respeito à política de misturar os diferentes componentes da feira (gêneros e áreas de publicação para os editores alemães, e as representações nacionais) de modo que os “mais fortes” atraíssem tráfego de visitantes para a área dos “mais fracos”. Os americanos não queriam nem saber disso. Sempre exigiam que a sua localização fosse a melhor possível, sem considerar que, como componentes mais fortes da área de negócios da Feira, todo mundo iria para sua área, independentemente de onde estivesse. O privilégio aos americanos (que levavam de reboque os ingleses) em detrimento dos outros países (e não falo apenas dos países do chamado “terceiro mundo”, mas também daqueles europeus com línguas diferentes: os noruegueses são tão “desprezíveis” quanto qualquer outro país de menor importância econômica, por exemplo) acabava sempre prejudicando os demais grupos de expositores. Weidhaas ganhou e perdeu batalhas nesse sentido.
O segundo aspecto é o da diferença de interesses entre a administração da Feira, com esse objetivo de equilíbrio e estímulo à diversidade, e o imediatismos que se manifestava com muita frequência na direção da Associação de Livreiros e Editores Alemães – dona da Feira e da empresa que a organizava. Esses conflitos institucionais também provocaram situações de estresse continuado, que Weidhaas teve de administrar usando inclusive algumas características da legislação societária alemã, que lhe davam uma margem de atuação independente (como administrador), em relação aos donos da empresa. E como a feira continuava com sucesso crescente, a solução de mandá-lo embora nunca foi executada – apesar de aventada várias vezes.
Weidhaas se aposentou em 2000, depois de dirigir vinte e cinco Feiras do Livro de Frankfurt. Atualmente participa de reuniões de um consórcio informal de organizadores e responsáveis pelas feiras de livros de vários países. A CBL chegou a participar de uma ou duas dessas reuniões e depois não mandou mais representantes para esses eventos. Pelo visto, não tem o que transmitir nem o que aprender.
O livro de Peter Weidhaas (que já foi traduzido para vários idiomas, inclusive o chinês), está disponível em inglês na Amazon.