“O Vazio da cultura (ou a imbecilização do Brasil)”

Esse título foi a matéria de capa da revista CARTA CAPITAL desta semana.

Mino Carta, começa seu editorial afirmando que “há muito tempo o Brasil não produz escritores como Guimarães Rosa ou Gilberto Freyre, […] pintores como Cândido Portinari […] historiadores como Raymundo Faoro […] polivalentes cultores da ironia como Nelson Rodrigues […] jornalistas como Claudio Abramo e mesmo repórteres como Rubem Braga e Joel Silveira. Há muito tempo…“

Mais adiante, a matéria de capa, assinada por Rose Pavan (“O Belo não está à venda – A submissão ao mercado impede que a arte relevante apareça“), segue pela mesma toada. O pacote sobre o assunto prossegue com uma crítica ao filme O Som ao Redor, escrita desde Nova York por Francisco Quinteiro Pires, um ensaio do filósofo Vladimir Safatle (“Relativa prosperidade, absoluta indigência“), outro ensaio de Daniela Castro sobre o mercado de artes plásticas e termina com uma entrevista do prof. Alfredo Bosi (“A esperança em tempos de magra colheita“).

Um pacotaço. Escrito por pessoas que admiro e respeito (embora não conheça a crítica de artes) em uma revista que sobressai diante da mediocridade ou da pura má fé das outras semanais.

Mas quero aproveitar a oportunidade para discutir algumas coisas, especialmente, neste texto, a matéria de Rosane Pavan.

E bom começar por uma observação do prof. Bosi: “Não me parece que se sustente hoje a ideia de que haja uma cultura brasileira, nacional, única e homogênea. Seria necessário reconhecer a existência de tempos e espaços diferenciados: há uma cultura letrada ou erudita, uma cultura popular de cunho folclórico, uma cultura de massa ou indústria cultural, que atinge várias classes e, por hipótese, uma cultura criadora individualizada. Cada uma tem seu dinamismo próprio, embora as interações não sejam poucas“. Em outro momento, diz o professor que “Hoje, certamente, os meios de instrução superior são muito mais acessíveis aos jovens de talento. Fiquemos à espera de criadores do mesmo nível. Há boas promessas. Quem viver verá“.

O professor Bosi toca em um ponto essencial de análise, que parece ter sido esquecido pelos demais. É ilusão pensar em um “vazio da cultura“ em abstrato, e lamentar a suposta ausência de grandes nomes nos diferentes campos da produção cultural contemporânea. Ao criar uma contraposição entre grandes nomes do passado, por exemplo na música popular, com “a repetida glorificação do amor besta hoje promovida por Ivete Sangalo, Claudia Leitte e outros sucessivos semideuses da malhação musical“, comparação que vai se repetindo nas outras áreas das artes, Rosane Pavan faz exatamente o contrário do que pede o prof. Bosi e mistura alhos com bugalhos.

Diz a jornalista, mais adiante: “Por que deveríamos ter por válida uma obra como a de Paulo Coelho, quando, para a vida da cultura, ela conta apenas como um dado da sociologia?“

Sinceramente, não consigo entender essa dissociação. Aparentemente a jornalista quer dizer que as obras da “baixa cultura“ não merecem a atenção da crítica. De certa maneira, tem razão. A crítica das artes, como diz Bourdieu, está dentro do campo específico do que analisa. Ou seja, é coisa para os iniciados e interessados especificamente nela. Paulo Coelho não está dentro do radar dos críticos da alta literatura (talvez só para ser negado como autor literariamente relevante). Mas, como assinala corretamente o professor Bosi, embora haja dinamismos próprios, as interações não são poucas. Isso não diminui em nada sua importância como produtor de bens culturais. Ou seja, sua importância para a cultura e para a sociologia da cultura.

Uma das coisas que mais me custou, quando comecei a refletir sobre questões de políticas públicas para a cultura, foi aprender a deixar de ser arrogante e pensar que apenas os meus parâmetros fossem capazes de valorar os livros. Nunca li Paulo Coelho, nem pretendo empreender essa aventura, e nem vou usar o argumento simplório de que ele é elogiado por intelectuais e políticos de outras plagas (lembram quando o Chirac fez menção a ele em um discurso oficial aqui no Brasil, depois de tê-lo condecorado?). A questão é mais simples. Para uma certa camada de pessoas, os livros de Paulo Coelho – e de tantos outros autores do gênero – respondem às suas necessidades intelectuais e emocionais. Não às minhas, mas sim às dessas pessoas. A questão do Paulo Coelho não se resolve desqualificando o autor, seus livros e quem os lê. Não falta inteligência aos leitores do Paulo Coelho e similares, que não são imbecis, como sugere a matéria. Elas simplesmente encontram ali o que buscam, muito embora possam fazer isso condicionados pelos mecanismos da indústria cultural.

Isso é bom para o “nível intelectual“ do país ou simplesmente sintoma de imbecilização?

Nem uma coisa, nem outra.

Trata-se, simplesmente, de um fenômeno da sociedade capitalista, que induz à leitura desses livros. Sociologicamente falando, sim, pode-se dizer que, se mudarem as condições sociais, outros tipos de livros servirão de alimento para determinados tipos de leitores. Em sociedades fundamentalistas religiosas, o que será – e é – oferecido será a versão mais cretinizante das doutrinas. No experimento do socialismo “real“ o que era disponibilizado, por sua vez, era a propaganda mais chula do “realismo socialista“.

Isso tudo não impediu e nem impede que crentes de todas as religiões produzam obras literárias e filosóficas do mais alto nível, e que a literatura de qualidade também haja florescido sob o tacão estalinista.
Paulo Coelho, como Ivete Sangalo, Claudia Leitte, Michel Teló e outros mencionados na matéria, quase certamente não estão preocupados com a (des)valorização que a crítica lhes faça. Simplesmente, como aponta o prof. Bosi, estão dentro de outra esfera, sujeitos a outra dinâmica.

O contexto histórico é fundamental. Se hoje o mercado é vilipendiado (ou incensado, dependendo da perspectiva), o que dizer dos mecenas do Renascimento. Alguém, em sã consciência, acha que Michelangelo, Da Vinci e outros foram financiados pelos Médici, pelo papado ou por outros mecenas, porque esses queriam deixar obras fundamentais para a humanidade? De jeito nenhum. Financiavam os artistas por conta de seu projeto de poder e dominação, e sorte dos grandes renascentistas terem achado quem os sustentasse. Escandalizar-se pelo fato das grandes coleções de arte e muitas outras atividades da chamada “alta cultura“ serem financiadas hoje pelos bancos e pelas grandes empresas é patético, e só revela uma indiferença à história da arte. Trata-se, simplesmente, do mesmo mecanismo presente em todas as sociedades de classe. O poder brilha com a produção artística, e os dominados se viram como podem, geralmente com aquilo que as elites consideram de segunda categoria, “não arte“.

No Estadão de sábado 2 de fevereiro, no Sabático, Silviano Santiago discorre sobre a imensa quantidade de ex-votos de cera, muitos de altíssima qualidade, inclusive três encomendadas a Orsino Benintendi pelos amigos de Lourenço de Médici para comemorar sua sobrevivência ao atentado dos Pazzi, que foram derretidos no decorrer dos tempos para a fabricação de velas banais. Esses ex-votos, e muitos outros exemplos, foram estudados em uma coletânea de ensaios publicado pelo Instituo de Pesquisas Getty, sob o título de “Ephemereal Bodies“.

Faço essa menção para lembrar que o que sobreviveu da época foram as obras em mármore e outros materiais nobres encomendadas pelos senhores mecenas. E pergunto, qual a diferença entre esses corpos efêmeros e muito do que se faz hoje e se fez pelos séculos afora?

As condições para que determinadas obram sobrevivam, se tornem clássicas ou simplesmente desapareçam, não dependem da vontade dos autores ou dos críticos da época. O ensaio A Virada, de Stephen Greenblatt, é um belo exemplo de como o acaso se manifesta na descoberta de um livro essencial para a compreensão da filosofia de Demócrito, pelas mãos de um amanuense corrupto e secretário de um dos papas mais terríveis da história (o primeiro João XXIII), e que é um dos textos fundamentais da modernidade.

Em uma sociedade de classes, embora democrática, pensar que “a arte“ possa refletir o todo de um país é, no mínimo, ingenuidade.
Existe, de fato, uma enorme ausência, ou insuficiência, na ação do Estado na questão cultural. Mas não por falta de estímulo à “grande cultura“ e sim pela falta de condições de alcançar o conjunto dos bens e produtos culturais.

As políticas públicas de cultura deveriam financiar sobretudo o acesso da população aos bens culturais, do modo mais abrangente. O cidadão, que paga impostos, tem o direito de poder retirar, nas bibliotecas públicas, o livro que desejar ler, seja Paulo Coelho, Zilbia Gasparetto ou Padre Marcelo. Mas o Estado tem também o dever de manter pessoal capacitado para mostrar a esse cidadão – respeitando sua vontade – que existem outras alternativas. E o acervo deve ter todas essas alternativas, de Graciliano Ramos e Guimarães Rosa a Platão e Marx. Se há realmente algum risco de imbecilização nacional, este resulta precisamente da timidez de abrir esses espaços de acesso aos livros, ao cinema, às obras de arte, à música erudita e a tantas manifestações da cultura e das artes populares.

Sinceramente, eu me pergunto o que esse conjunto de matérias elitista traz de bom como análise da cultura brasileira, seja da “alta“ como da “baixa cultura. A matéria simplesmente ignora o que acontece no dito “andar de baixo“ e sua autora parece que não prestou atenção ao que disse o professor Bosi.

O que percebo em nosso país é, principalmente, uma enorme diversidade e dinamismo cultural. Como falar de cultura sem mencionar o rap e o hip-hop na música? Quem sabe se a linguagem fragmentada de muitos dos MCs que estão por aí não é a forma contemporânea de um Guimarães Rosa? Movimentos como os saraus de poesia que acontecem pela periferia de S. Paulo talvez não sejam do gosto do erudito poeta Claudio Willer, citado para desancar o Paulo Coelho na matéria, mas quem já foi ao sarau da Cooperifa sabe perfeitamente que não está diante de um público imbecilizado, ainda que eventualmente possa ser um público que assista, também, à Vênus Platinada.

Talvez ainda existam pessoas tão encerradas em torres de marfim que vivam exclusivamente no mundo da chamada alta cultura. O comum dos mortais não é assim, e absorve os mais variados bens culturais.

É fácil mencionar a militância pró mediocridade de boa parte da imprensa. Mas a lição deveria começar por casa. Este número da Carta Capital – que, repito, é a melhor revista semanal do país e a que leio todas as semanas – não tem nenhuma resenha de livro. Menciona os autores canônicos para contrapô-los ao lixo, tem colunas de culinária, estilo e, como dizia Ivan Lessa, cuida da “horta da Luzia“ de filmes antigos. Mas não achou nenhum romance que valesse a pena ser comentado para os leitores.

Bem, pelo menos há uma coerência nisso. A redação deve achar que tudo que se publica hoje no Brasil é lixo.

6 comentários em ““O Vazio da cultura (ou a imbecilização do Brasil)””

  1. Ótimo texto. Mas devemos lembrar que a Carta Capital contribui para a mediocrização do país quando evita críticas ao governo por razões ideológicas, fato mais grave até do que a ausência de resenhas literárias.

    1. Prezado Juca, obrigado por comentar.
      Devo dizer, no entanto, que não concordo quando diz que a Carta Capital não critica o governo. Critica, sim. O que não faz é seguir a pauta, essa sim ideológica, do PIG.

  2. Prezado Felipe,
    É a primeira vez que leio um texto de sua autoria; primeira vez também que vejo o véu que cobria meus olhos erguido com sutileza só encontrada numa argumentação sólida.
    Parabéns e obrigado.

  3. Faz tempo que desgosto da maior parte da arte moderna exposta nos museus e presto muita atenção nos muros da cidade, pois eles contém “grafites” extremamente criativos e até “pichações” de nível incomum. Talvez o problema da valorização ou desvalorização desmesurada dos diferentes autores esteja na escolha de quem deve ser patrocinado para o favorecimento de interesses que estão além da habilidade artística e pouco tem a ver com esta.

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