(Des)acordo ortográfico

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Um dos assuntos dos últimos dias foi o adiamento da etapa final da dita Reforma Ortográfica para 2016. Três anos a mais. A ABL bateu os pés e anunciou que não irá mais propor à ONU a proposta de que o português seja idioma de trabalho oficial da entidade.

Sou vítima de reformas ortográficas – eu e todos alfabetizados antes de 1971. Quando frequentava a escola primária, d. Elza Freitas Pinto, minha professora do primeiro ano do Grupo Escolar Barão do Rio Branco, em Manaus, nos ensinava pelas regras ortográficas enunciadas pelo vocabulário ortográfico de 1943, que quase foram reformadas em 1945, por um acordo ortográfico entre Brasil e Portugal (que falava também em nome de suas colônias, pois ainda era o paizinho do lusotropicalismo), mas que acabou por não ser retificado pelo Brasil.

Só o vocabulário do primeiro parágrafo já me denuncia. Quem sabe, hoje, o que é “curso primário” e “grupo escolar”?

Essa ortografia era o inferno dos “acentos diferenciais”, uma profusão de diacríticos que, obrigatoriamente, deviam ser usados para diferenciar palavras “homônimas homófonas homógrafas”. E tome a aprender que o particípio passado do verbo poder devia ser grafado com circunflexo (pôde), e que o presente do indicativo o dispensava. Pode? E era preciso saber as regras direitinho. Caso contrário, o ditado (ainda fazem isso no curso fundamental?) vinha cheio de marcas vermelhas.

Em 1971, um baita alívio. Eu já estava no ginásio (sabem o que é?) quando foi decretada a extinção da maioria dos acentos diferenciais, e a coisa ficou bem mais fácil.

Tudo isso com o pano de fundo das pinimbas entre a Academia de Ciências de Lisboa e a nossa Academia Brasileira de Letras. A lisboense, mais provecta (fundada em 1779, no reinado da Maria Louca, a mãe do frangófilo D. João VI), se achava – e se acha – dona da língua. Afinal, como poderia dizer o Conselheiro Acácio, se é português, é de Portugal. A ABL, caçula, se enchendo de ares pelo tamanho da população brasileira, também quer mandar no pobre do português. Afinal, Portugal é praticamente equivalente a Pernambuco, em área e população.

Um exemplo das briguinhas é o acordo frustrado de 1945. Dizia-se que os brasileiros teriam que fazer modificações mais profundas (em relação ao vocabulário de 1943), que os portugueses. Daí nosso ínclito Senado Federal não querer ratificar o acordo.

Chagamos a 1990. Ah, 1990! Governo Sarney. Governo do poeta e romancista, “cultor da língua” e mentor, com José Aparecido e Antonio Houaiss, do novo acordo. Sarney não conseguiu assiná-lo, pois o ato formal deu-se apenas quando Collor já estava no poder. Mas toda a tramitação e o esforço diplomático brasileiro se deram em seu governo.

Não vou nem entrar aqui nos meandros dessa negociação.

Nos discursos, os principais objetivos do acordo ortográfico seriam facilitar o intercâmbio de livros entre Brasil, Portugal e PALOP (Países de Língua Oficial Portuguesa) e facilitar a adoção do português como língua de trabalho das Nações Unidas e seus órgãos.

Disputas linguísticas a parte, esses dois objetivos são balelas. O tal acordo foi construído a partir da imensa vaidade de Antonio Houaiss, que convenceu seus pares da ABL dessa conversa, envolveu Aparecido e Sarney e foi abraçado pelo Itamaraty como ponto de trabalho na tentativa de influenciar os países africanos ex-colônias de Portugal. Inventaram a CPLP – Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa para tanto. Afinal, ficaria muito feio criar um organismo que tivesse como escopo atrair para uma esfera de influência brasileira, as “ex-colônias” africanas. A experiência francesa da francofonia foi a inspiradora da manobra.

Essa história do português como língua oficial dos países emancipados da colonização portuguesa na África e na Ásia (Timor Leste) é um absurdo. O português só é falado homogeneamente em Portugal e no Brasil. Em todos aqueles países o português é falado tão somente pelas elites, e na maioria dos casos não consegue ser usado nem mesmo nas relações entre os governos e os cidadãos. Em todos eles se desenvolvem extensos programas de educação bilíngue, onde o português entra como segundo idioma, depois das línguas locais.

Evidentemente, o esforço de escritores e políticos dos países recém independentes de manter o português como língua franca oficial foi altamente louvável. Se não fosse a ação de Pepetela e de outros, calhava que adotavam alguma das línguas locais como idioma oficial, o que acentuaria o isolamento dos novos Estados. O português como língua oficial, e pouco importa que adotassem a ortografia lusitana.

O argumento de que é necessária a unificação para que o português possa ser adotado como língua de trabalho da ONU é patético. A ortografia do inglês também varia entre a dos EUA e a da Inglaterra e ex-colônias. As diferenças léxicas e sintáticas também são significativas, não apenas entre os dois países, como também entre as dezenas de outras nações onde o inglês é falado (aliás, nos EUA não existe a caracterização do inglês como “língua oficial”. Isso só entrou na pauta da extrema direita americana na pueril tentativa de impedir a crescente influência dos falantes de espanhol por lá). Existe “acordo ortográfico” entre EUA e Inglaterra, mais Canadá, Austrália, Nova Zelândia e sabe lá quantos mais países da antiga commomwealth? Nada.

Essas diferenças não impedem nem dificultam o uso do inglês, não apenas como língua de trabalho oficial da ONU como também como o principal idioma de diplomacia e dos negócios. O português não é ainda adotado como língua de trabalho simplesmente porque não é relevante para o funcionamento da ONU. Será adotado, eventualmente, se o Brasil conseguir a almejada cadeira permanente no Conselho de Segurança, e isso se a diplomacia trabalhar muito e não ficar perdendo tempo com essa balela da unificação ortográfica. Quando o embaixador português falar cimeira e o brasileiro disser cúpula, os taquígrafos registrarão cada uma e os tradutores para o inglês traduzirão as duas para summit e estamos conversados.

As diferenças ortográficas nunca impediram a circulação de livros de Portugal no Brasil e vice-versa. Os fatores condicionantes desse intercâmbio são outros. Passei a juventude lendo traduções do inglês, francês, alemão e outros idiomas menos votados em edições portuguesas. Na época, nos anos sessenta e setenta, as negociações internacionais de direitos geralmente cediam as traduções para o idioma português sem distinção geográfica, e as editoras lusitanas estavam mais bem posicionadas para negociar muitas traduções.

O desenvolvimento da indústria editorial brasileira liquidou com essa história. Hoje, os direitos de tradução são negociados separadamente para o Brasil e Portugal, salvo raríssimas exceções. Mas ainda tenho, na biblioteca, várias edições da “Livros do Brasil – Lisboa”, na Coleção Dois Mundos.

O segmento editorial onde o acordo ortográfico teria importância é o dos livros escolares. E nesse, acontece o seguinte. O sistema escolar português, com sua serialização, estruturas curriculares, etc., é a base do adotado nos países africanos, nessa área ainda presos à estrutura colonialista. A diplomacia brasileira nada fez para ajudar tecnicamente os países africanos a desenvolver seus próprios currículos e sistema educacionais. O resultado, obviamente, é que as editoras portuguesas dominam o mercado de didáticos nesses países, direta ou indiretamente.

Além do mais, os recursos para a preparação e edição dos livros escolares são provenientes sobretudo da União Europeia e do Banco Mundial. Os recursos da União Europeia só podem ser usados pelos seus países membros. No caso, Portugal e a Inglaterra, que tem seus pezinhos bem plantados no ensino de idiomas. Os do Banco Mundial que, em tese, poderiam ser disputados pelas editoras brasileiras, ninguém sabe deles por aqui.

Ou seja, essa história de que a unificação ortográfica facilita a circulação de livros na “comunidade lusófona” é bobagem. Até porque, por exemplo, quando se trata de livros infantis, o problema decorrente do uso de putos e raparigas em Portugal não é de ortografia…

Seja como for, para o bem e para o mal, esse bendito (des)acordo ortográfico já está solidamente implantado no Brasil. O MEC há anos exige que essa ortografia seja usada nos livros escolares. Os custos de adaptação já foram absorvidos pelas editoras por conta do mercado interno, e da exigência do MEC, e não devido à possibilidade de aumentar as vendas em Portugal e África. Os jornais também já adotam a nova ortografia.

No segmento de literatura e não ficção, os novos livros já são editados na ortografia houaissiana. Reedições, obviamente, só dos livros que vendem bastante. Os antigos continuam com tremas e hifens à moda anterior.

Se Portugal – tal como o Brasil em 1945 – bater o pé e voltar atrás no uso da nova ortografia, isso não afetará em absolutamente nada nem a reinvindicação do português como idioma de trabalho nem a circulação de livros daqui pra lá e de lá pra cá.
O triste é que não se pode nem usar a expressão do bardo inglês: Much ado about nothing, ou muito barulho por nada (em versão ortograficamente neutra) porque, infelizmente, muita grana já rolou, muitos especialistas vivem de “esclarecer” o acordo e muitas vaidades continuam em jogo.

Da minha parte, os problemas ortográficos são resolvidos, nessa altura da vida, pela equipe de Mr. Gates. O Office tem corretores para todas as versões do português, além de dezoito versões de inglês, vinte e uma de espanhol, quinze do francês, dezesseis de árabe, duas de azeri e bósnio (em alfabeto latino e cirílico, seja lá onde falem azeri), cinco de chinês, além de um belo sortimento de outros idiomas como o canuri, o cherokee, o concani, o divehi, o edo, o mapudunguen e sei lá quantos mais. Provavelmente uma é ferramenta usada em todos os organismos internacionais, e se algum dia eu escrever alguma coisa nessas línguas o Office corrige a ortografia, embora não possa garantir a inteligibilidade.

Recuso-me a entrar no tipo de discussão como a expressada sobre o acordo por professores lusos em uma revista de pedagogia: “Objecto de polémica, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa está em vias de entrar em vigor. Alguns, considerá-lo-ão um passo em frente no projecto de unificação ortográfica da Língua Portuguesa como fundamento da unidade da lusofonia; outros, pelo contrário, hão-de considerá-lo como uma cedência da potência colonizadora aos países colonizados, sobretudo ao Brasil, uma vez que os restantes países lusófonos utilizam a grafia portuguesa.” (TAVARES, Manuel; RICARDO, Maria Manuel C.. Breve história do acordo ortográfico. Rev. Lusófona de Educação, Lisboa, n. 13, 2009 .

Eu vou lá me meter numa “cedência da potência colonizadora” dessas? Cáspite.

No mais, meus caros, como dizia o Poeta da Vila, o que nós falamos “com voz macia, é brasileiro, já passou de português”.

13 comentários em “(Des)acordo ortográfico”

  1. BRILHANTE! Por falar em primário e ginásio, será que hoje ainda se faz “composição a vista de um quadro” ou redações tipo “minhas férias”, “o livro que mais gostei” e outras coisas dessas? No ginásio (perdão), eu, Pedro Bandeira e um monte de santistas ilustres tinhamos o Padre Geraldo para quem escrever a palavra “adorar” sem ser dirigida a Deus era pecado e para quem erro de concordância resultava em nota zero na redação.

  2. Teria muito para dizer, mas não acho o sítio apropriado.
    Como português que vive no Brasil, o seu texto é extremamente injusto, pois generaliza, possivelmente sem conhecimento de causa.
    Pessoalmente, acho que roça a xenofobia.
    Sinto muito pelos seus sentimentos, os meus são de ter uma língua escrita unificada na medida do possível. Meus e de muitas outras pessoas que não consideram a língua portuguesa como uma língua de um país, mas sim como uma língua com história e de futuro. Uma língua que poderia contribuir para unificar, não para dividir.
    Nem gosto de comentar muita coisa, mas sinto muito… este post deixou-me muito triste.
    Obrigado

    1. A ironia é que a maioria dos Portugueses que vivem em Portugal são contra o acordo ortográfico. Havendo Escritores que recusaram-se a aplicar este acordo. A maioria das pessoas com quem falo acreditam que este acordo favoreceu o Brasil. Eu pessoalmente acho que o Brasil e Portugal são dois Países independentes por isso podem ter duas línguas diferentes, tal como o EUA e a Inglaterra.

    1. Claro que há quem defenda a aplicação do acordo em Portugal. E quem não o aceita. O post não trata disso, de fato. Manifesto a opinião de que é inútil para os propósitos para os quais foi pensado, e inútil e complicador para quem lê as coisas nos dois países. Inútil até porque as exceções são tantas que eu nem entendo as reações lusitanas.
      De mais, não tenho nem sombra de chauvinismo. Tem quem fala na “cedença da metrópole às ex colónias”, e continua se achando dono da língua. A língua que falamos não é do governo brasileiro nem do português, e muito menos das academias.

      1. Não se trata tanto de haver “quem defenda a aplicação do acordo em Portugal”. O que acontece é que, como pode ver na análise do artigo de JPS (mas também aqui, por exemplo: http://www.ciberduvidas.com/textos/acordo/13863), a adoção do acordo é hoje generalizada na sociedade portuguesa, tal como o é na brasileira, e como tal é um processo irreversível (e finalmente, acrescentaria eu…).

        Há fatias da população que sempre se opuseram (e sempre se oporiam, fosse ele qual fosse, e sempre se oporão no futuro) a qualquer acordo entre países, mesmo que apenas no âmbito da ortografia, porque veem esse desiderato como não desejável ideologicamente. E infelizmente, com isto, desenterram esqueletos antigos: os dos nacionalismos e independências (como se hoje ainda se pusessem em causa, mesmo nos PALOP…), os das lideranças e propriedades (“a língua é nossa, é de matriz europeia, etc”, lê-se a alguns portugueses mais radicalizados), e, essencialmente, os da xenofobia generalizada (que acaba por ser o motor do descontentamento no caso de muitas pessoas).

        Mas se atentar nos dados que o JPS e eu lhe deixamos aqui, por verificar que isso não é o mais representativo, na realidade, do que se passa neste momento num e no outro país. E é por isto que outros comentadores criticaram o ter dado voz a essas franjas radicalizadas e isolacionistas que necessariamente sempre se fariam ouvir em Portugal e no Brasil (e em qualquer outro país). Hoje, essa análise não corresponde à realidade.

        Sendo português, sempre fui muitíssimo bem recebido no Brasil e tratado como estrangeiro de estatuto especial, sempre no bom sentido. E tenho por hábito receber frequentemente brasileiros por cá, que invariavelmente me dizem o mesmo. Uma mão lava a outra.

  3. Lindoso,
    Quem fala sobre “a cedência da metrópole às colónias” é contra o AO.
    Quem é a favor do AO em Portugal sabe que uma frase dessas releva ignorância, estupidez.
    O problema é que vc e muitos outros brasileiros que se dedicam ao assunto, dão valor a quem é contra, e às frases de quem é contra, e ignoram quem é a favor, e às frases de quem é a favor.

    1. JPS

      Só para deixar claro. O “(des)acordo” é fato consumado aqui. Esse adiamento não quer dizer nada mais que a obrigação de redação de ofícios e outros documentos oficiais na ortografia (des)unificada fica adiada. O MEC, que é o que importa, e a imprensa, já o adotam. Se Portugal e os países africanos voltarem atrás também não acontece nada.
      O que eu acho é que é simplesmente inútil para o que se propõe. Por isso não volto mais ao assunto. Quem o defende e o ataca que gaste tinta e tempo.

  4. Para que os leitores brasileiros não fiquem a pensar que a maioria dos portugueses é a favor do AO90 deve referir-se que os inquéritos costumam apontar para 60-70% das pessoas que são contra. O que os “quadros de expansão” não reflectem é a oposição (ou não) por parte dos falantes comuns da língua. Em jornais e empresas é o poder de direcção que determina que se passa a utilizar o AO90 (normalmente com muitos erros, fruto da “caça às consoantes”). I.e., basta uma única pessoa decidir, ignorando o que pensam jornalistas e leitores. Muitos jornalistas, no twitter e facebook, por exemplo, utilizam a norma estável pré-AO90, apesar de terem de escrever de outra forma por imposição hierárquica no seu trabalho.

    De facto, como é dito no artigo, as motivações são “balelas”, não fazem sentido. A maioria dos defensores do AO em Portugal nem entra em argumentação pois têm o poder político e a inércia do seu lado. Não há harmonização, há um compromisso de tremas e consoantes, que unifica alguns termos (presumindo uma alteração fonética dos mesmos em Portugal), mas cria também novas divergências, nem este AO vai alterar o que quer que seja em termos de publicação de livros entre os dois países. Os grandes “argumentos” políticos eram vazios. De um modo geral, sobra o “porque sim” e a indiferença.

  5. Ai, ai, ai. Melhor cada um ficar com a sua opinião e não querer matar os outros por suas opiniões. Eu também fiz primário e ginásio, e me orgulhava de tirar sempre 10 em “português” (análise, ortografia, gramática & tal), era craque em redação, acentuação, crase, tremas etc etc. O que me aflige agora é essa mania que sei lá donde saiu de inventarem que não se pode dizer “do” ou “da” em certos casos (não me ocorre nenhum exemplo neste exato momento). Mas fico satisfeita porque ninguém se lembrou (acho eu) de eliminar o apóstrofe. Portanto, em vez de dizer “de o” ou “de a”, diga-se d’o ou d’a. Por falar em ortografias e por aí afora, o que acontece com quem resolver usar a velha ortografia? Com trema e tudo? Multa, queimam-se os livros, tortura… ou o quê? Você já reparou que pouca gente sabe usar o conjuntivo (basta ler qualquer revista semanal pra encontrar muitos exemplos / e não sei se a coisa ainda se chama “conjuntivo” ou se terão inventado outro nome)? Sobre o “des-acordo”… acho besteira discutir a coisa. Tá feito. Se fosse reversível, até valeria a pena questionar um e outro aspecto, mas parece que não é. Idéia sem acento está mais pra… ah, sô. Ninguém parar de escrever ou ler por causa d’umas regras.

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