Por ocasião da posse de Marta Suplicy no Ministério da Cultura, tanto a nova ministra como a Presidenta Dilma, nos respectivos discursos, manifestaram a importância do respeito ao direitos autoral e à justa remuneração dos criadores por seu trabalho intelectual.
Isso deve ter deixado autores e editores terem bons sonhos. Pelas manifestação iniciais, os exageros e incongruências da proposta da finada administração Gil/Ferreira de modificação da Lei de Direito Autoral, e que haviam sido limados na proposta da Ministra Ana de Hollanda, pareciam estar definitivamente sepultados.
Mas, na mesma ocasião, tanto a Presidenta quanto a Ministra declararam a disposição de promover e ampliar os meios de expressão da chamada cultura digital, ponto importante para o desenvolvimento da criatividade e, também de acesso de amplas camadas aos bens culturais.
Os editores e escritores só prestaram atenção na parte dos discursos que lhes interessava. Os ativistas do digital – aqui entendido como acesso grátis ao conteúdo digital – trataram de se mobilizar e pressionar a nova ministra em torno de sua agenda.
Aqui preciso deixar bem claro algumas coisas.
Em primeiro lugar, sou totalmente favorável à ampliação de todos os acessos aos bens culturais através dos meios digitais. Considero os livros eletrônicos – que não farão desaparecer os livros impressos – um avanço na difusão da leitura.
Por outro lado, no entanto, e em diferentes ocasiões, já observei que essa ideia do “grátis” no ambiente digital é uma falácia. Os provedores de serviço são os grandes ganhadores econômicos e políticos dessa história. Para ler este post, os leitores tiveram que ter acesso à internet, que alguém pagou. O PublishNews tem seus custos de hospedagem e armazenamento, assim como eu em meu blog. A única coisa grátis aqui é meu trabalho, feito por que me possibilita difundir minhas observações sobre o mercado editorial.
No entanto, essa ideologia do grátis (aqui tida como uma visão destorcida e instrumentalizada da realidade) como sendo a grande virtude da Internet, ganha cada vez mais força. E é uma ideologia tentadora: ocultar os custos de acesso e de manutenção da infraestrutura digital, e quem investe e como ganha dinheiro com isso, é uma operação ideológica das mais bem sucedidas, provocando uma grande distorção na percepção dos usuários da Internet.
Tome-se por exemplo a história das licenças do Creative Commons, e a polêmica resultante da retirada do “selo” dessa licença do site do MinC.
A Lei de Direitos Autorais em vigor estabelece, explicitamente, que “Não serão objeto de proteção como direitos autorais de que trata esta Lei: […]IV – os textos de tratados ou convenções, leis, decretos, regulamentos, decisões judiciais e demais atos oficiais.” Ou seja, os documentos públicos, o conteúdo dos sites do governo e coisas do gênero simplesmente não estão protegidos. Podem, portanto, ser livremente reproduzidos, o que torna desnecessário o selo do “Creative Commons” para isso. A Ministra Ana de Hollanda tinha toda razão em retirar esse selo do site do MinC, até porque transferia para uma instituição de caráter privado o uso de conteúdos que, legalmente, não estavam sujeitos à proteção da Lei de Direitos Autorais.
Os autores, por sua vez, têm plena liberdade de permitir o uso de suas obras, segundo o artigo 30 da Lei: “No exercício do direito de reprodução, o titular dos direitos autorais poderá colocar à disposição do público a obra, na forma, local e pelo tempo que desejar, a título oneroso ou gratuito”. A única cláusula restritiva a isso, segundo a legislação, é que o autor não pode abdicar dos seus direitos morais.
Evidentemente para todos os que vivem e trabalham sob a égide da Lei, que esta tem pontos falhos e precisa ser modernizada, em vários aspectos, inclusive regulando pontos ausentes, como o das obras órfãs, por exemplo.
Mas daí a autorizar, sob os mais variados pretextos, a liberação compulsória e sem remuneração do uso de obras protegidas vai uma longa distância.
Para autores e editores, a grande questão da proteção de Direitos Autorais sempre esteve vinculada a alguns pontos específicos:
Primeiro, a produção de cópias piratas, entendidas como tais as contrafações produzidas por pessoas ou empresas que usam o conteúdo protegido, omitindo ou falsificando sua origem, de modo a eludir o pagamento de direitos ou, no mínimo, o reconhecimento dos direitos morais dos autores. O caso mais comum desse tipo de infração é o do uso de traduções em novas edições com a falsificação do nome do tradutor. Denise Bottman, em seu blog “Não Gosto de Plágio” tem denunciado repetidos casos desse tipo.
O segundo tipo de infringência, muito mais comum, é o da reprodução através de meios mecânicos (ou eletrônicos) das obras, sem licença dos autores, embora não haja negação de autoria ou plágio. É a velha cópia reprográfica (a xerox, que a empresa detesta que seja assim identificada) e a mais recente reprodução por meios digitais.
Um terceiro ponto, de reivindicação mais recente e já obedecida em vários países, é o da remuneração pelos empréstimos dos livros feitos por bibliotecas públicas. Nos países nórdicos, na Alemanha, no Canadá e em alguns outros países, as bibliotecas públicas recebem recursos específicos para remuneração de autores e editores pelo empréstimo de livros.
A solução universalmente aplicada pelo mercado internacional é o licenciamento. Cobra-se pelo uso dos trechos, seja lá por que meio for feita a reprodução.
No Brasil, entretanto, os editores há dez anos tem adotado uma atitude desastrosa, de perseguição criminal dos infringentes, sem abrir espaço para os licenciamentos, como era a proposta inicial da ABDR. Desde 2003 as novas direções da entidade se colocam pura e simplesmente na posição de repressoras, gerando imensa insatisfação, principalmente entre estudantes. Vide o recente caso do site “Livros de Humanas” e as repercussões que teve.
Essa atitude dos editores (e a ausência, na prática, dos autores nessa discussão, por desconhecimento, falta de representatividade de suas associações e falta de mobilização dos editores) criou um caldo de cultura que favorece em extremo as posições do pessoal do “conteúdo grátis”.
Essa dispersão de esforços, e uma atitude relaxada em relação ao problema podem levar a consequências complicadas. O projeto da nova Lei de Direitos Autorais será revisado pela equipe da nova ministra. E quem se movimenta são os órfãos do projeto Gil/Juca Ferreira.
Se autores e editores não se cuidarem, logo poderão se defrontar com o renascimento da proposta feitas pelo Ministério naquele momento, e, o que é pior, com o apoio e a mobilização da opinião pública desinformada e mobilizada contra a ganância das editoras.
É hora de acabar com a passividade, agir como verdadeiros representantes da indústria editorial e mobilizar os autores na defesa de seus direitos para garantir os meios de que o trabalho intelectual seja efetivamente remunerado e continue a mostrar a diversidade cultural e a bibliodiversidade da literatura e da ensaística brasileira.
Caro Lindoso e leitores.
São muito esclarecedoras suas informações. E contribuem para a desmistificação em torno desse tema. E penso que precisamos ir mais longe.
Uma das primeiras coisas a fazer é verificar que, embora a condição de “autor” una todos os criadores, seja de obras de artes visuais, seja de fonogramas, passando por livros e roteiros, nem todos se posicionam de igual maneira no mercado.
E nem todos auferem os frutos de uma Lei de Direito Autoral feita para beneficiar, particularmente, os editores musicais.
Quero dizer isto mesmo: não dá para, simplesmente, defender sem questionamentos a voz mais forte desse lobby de não mudança, representado pelas editoras musicais.
Sei porque li, reli e comentei o projeto da gestão Gil/Juca Ferreira.
E – exceto pelo que se propõe de mudança no art. 46 – não vi nenhuma ameaça a autores de imagens e textos para livros.
(Abaixo, reproduzo a versão atual).
Mas, por outro lado, vejo que avanços estavam desenhados na proposição, como a ideia de constituirmos uma sociedade de arrecadação de direitos autorais para os escritores. Havia, até mesmo, proposta de investimentos públicos para quem quisesse constituir uma sociedade assim.
Hoje, cada um de nós autores – de imagens e de textos – dependemos única e exclusivamente da editora/do editor como nosso mediador de recebimento de direitos autorais. Mas estes mesmos já não têm mais controle sobre a contrafação de seus livros. E hesitam em aderir ao mercado digital, com temor de não controlarem o que vai ser feito com seus livros. Essa ilusão a indústria de música já perdeu: ela não controla a contrafação. E insiste em uma política policialesca (combate à pirataria). Mas, nem por isso, os consumidores de música baixada gratuitamente na internet deixam de comprar música pelos mecanismos convencionais. Estudos feitos nos Estados Unidos comprovam isso.
Enfim: o modelo de produção, distribuição e consumo baseado na fábrica de discos não existe mais. E não existe faz algumas décadas. Por isso, as editoras musicais trataram de criar mecanismos de arrecadação dos retransmissores (rádios, emissoras de televisão, academias de ginástica, e assim por diante). Montaram um respeitável aparato no Ecad. E redistribuem direitos aos autores que identificam. O problema deles – apontado nas últimas quatro CPIs sobre o tema – está em não identificarem compositores que não são tocados nas rádios que eles monitoram.
Então, do que precisamos? Organizarmo-nos em uma sociedade de autores com capacidade para identificar os usos de nossas obras em quaisquer lugares que elas sejam colocadas à disposição do público (pela Internet).
Em todo o mundo, as sociedades de autores criam poder para beneficiarem TODOS os criadores. No Brasil, a Lei de Direitos Autorais foi feita para a indústria fonográfica. E só o ECAD da indústria fonográfica está organizado. Precisamos – os escritores de conteúdo para livros, e nossos associados (editores e sites que disponibilizam conteúdo) estar organizados em uma sociedade poderosa.
Tudo que é sólido desmancha no ar. E o livro de papel – que persistirá por séculos, assim como os quadros de pintores, as fotografias impressas, etc. – está sendo substituído cada vez mais por livros digitais.
Os leitores digitais vão ganhar isenção de impostos do mesmo jeito que o papel de impressão ganhou.
Uma defesa cega da lei atual não vai nos levar a esse passo adiante: organizarmo-nos em sociedade(s) que possam recolher direitos autorais.
Nossos livros não precisam ser lidos apenas onde chegam fisicamente (de papel). Podem chegar a preços infinitamente mais baratos a consumidores do mundo todo (mas principalmente no mundo da língua portuguesa) por frações de centavos. De que me adianta receber 10% de direitos autorais por mil livros publicados, com preço de capa de R$ 20,00? Prefiro receber R$ 0,001 por milhões de acessos. Mas quem vai controlar esses acessos? É isso que precisa se construído. Se um site coloca à disposição o conteúdo de minha obra (como uma emissora toca uma música do Roberto Carlos), ele deve receber por isso (nem que seja em publicidade). E me pagar, proporcionalmente por isso.
Para o debate sobre o art. 46, recomendo a leitura deste documento:
http://www.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2011/04/Relatorio_Final_para_divulgacao2.pdf
Redação atual do art. 46 da Lei nº 9.610, de 1998.
Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais:
I – a reprodução:
a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos;
b) em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer natureza;
c) de retratos, ou de outra forma de representação da imagem, feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles representada ou de seus herdeiros;
d) de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários;
II – a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro;
III – a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra;
IV – o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou;
V – a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas, fonogramas e transmissão de rádio e televisão em estabelecimentos comerciais, exclusivamente para demonstração à clientela, desde que esses estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização;
VI – a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro;
VII – a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para produzir prova judiciária ou administrativa;
VIII – a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.