Um dos grandes problemas na execução de políticas públicas setoriais – como a cultura – é exatamente o de serem… setoriais. As coisas no governo funcionam às vezes como se fossem “feudos”, e o que um ministério faz rarissimamente é coordenado com outros que tratam às vezes da mesma coisa.
Tome-se o exemplo da Cultura, onde isso é muito claro. O livro, como “objeto simbólico” e de lazer, é da alçada do MinC. O livro escolar, do MEC. Além desses dois, o Itamaraty cuida (em tese), da difusão da cultura – e do livro – brasileiro no exterior; o Ministério do Desenvolvimento Agrário tem o programa “Arca das Letras”, que implanta minibibliotecas em assentamentos de Reforma Agrária; o Ministério da Agricultura tem na EMBRAPA um departamento de difusão da informação e do conhecimento da área importantíssimo, e a maior parte desse material está em livros; o Ministério da Indústria e Comércio e Desenvolvimento tem a interface industrial com o setor e o da Fazenda – mãe de todos – fuxica em todas as atividades econômicas (e é ali que estão os principais entraves para a constituição do Fundo do Livro, Leitura e Bibliotecas, aquela promessa não cumprida quando da desoneração das editoras). E as grandes estatais – Petrobrás, BNDES, os bancos oficiais – desenvolvem programas, com base nos incentivos fiscais, que muitas vezes têm a ver com os livros. Nada disso é realmente coordenado entre si.
O Plano Nacional do Livro e Leitura – PNLL, é uma tentativa incipiente e muito frágil, do ponto de vista institucional, para coordenar pelo menos o MinC com o MEC. Com os demais, a “articulação” eventualmente se dá quando alguém olha de binóculo da sede do MinC para os outros edifícios da Esplanada dos Ministérios.
Resolver essa questão da articulação entre os órgãos governamentais – problema que se repete nos estados e nos municípios – é uma das maiores dificuldades para o desenvolvimento de políticas públicas.
Mas existe outro nível de articulação que deve ser considerado. É o da articulação intermunicipal.
O Brasil tem quase seis mil municípios. Uma parte é constituída por pequenas cidades. Mas, mesmo nas regiões metropolitanas, muitas ações dependem da articulação entre os municípios, que é institucionalmente muito frágil.
A atenção para esse problema passou a fazer parte da agenda de algumas cidades e de alguns ministérios. O da Saúde, por exemplo, estimula mecanismos de cooperação intermunicipal através do SUS. Outras experiências mais antigas são os chamados “consórcios de bacias”, que têm responsabilidades relacionadas com as bacias de rios que atravessam várias regiões.
Desde o ano passado o Ministério da Educação, através do Conselho Nacional de Educação, abriu um espaço institucional forte para a criação dos chamados “Arranjos de Desenvolvimento da Educação” (ADE), através dos quais os municípios se articulam para implementar uma série de ações conjuntas. O princípio atrás das ADE é o de organizar políticas por “territórios”, e não apenas pela divisão geopolítica tradicional, a dos municípios. Dessa maneira, recursos para a capacitação, avaliação e gestão de projetos educacionais conjuntos podem ser mais bem aproveitados. As ADEs também se tornam uma espécie de “vacina” contra a descontinuidade administrativa. Ao envolver prefeitos de vários partidos em tornos de projetos comuns, a descontinuidade que se verifica quando a “oposição” substitui o “governo” e quer trocar tudo, fica mais controlada. Os interesses comuns tendem a prevalecer, até porque, nos municípios menores, a vigilância da população quanto aos recursos do SUS, FUNDEF e outros repasses federais é bem maior.
O parecer que aprovou a constituição das ADE é um primor de reconhecimento desses problemas e mostra como a resolução pode ajudar a equacionar isso. Merece ser lida aqui(Parecer CEB/CNE 9/2011).
E na Cultura?
A colaboração entre os municípios é muito incipiente, seja nos serviços prestados, seja na colaboração para a execução de ações. São poucos os municípios que aceitam cadastrar moradores de outras cidades como usuários de seus equipamentos culturais, muito menos organizar ações conjuntas.
E existem áreas em que a colaboração seria muito útil ao cidadão. A Secretaria de Cultura do Município de S. Paulo, por exemplo, tem um excelente mecanismo de busca nos acervos das bibliotecas públicas sob sua responsabilidade. Mas o coitado que mora no Ipiranga, por exemplo, não tem condições de achar o livro em Santo André ou São Caetano. Um convênio de cooperação para que a informatização dos acervos fosse integrada poderia facilmente resolver esse tipo de problemas. Esse tipo de coisas se repete pelo Brasil afora, onde cada município atende (quando o faz), apenas os que ali moram.
Existem iniciativas de cooperação intermunicipal. Em uma das recentes temporadas de caça à Ana de Hollanda, a existência de uma iniciativa desse gênero na região de Barretos, o Consórcio Intermunicipal Culturando foi demonizada pelo pelotão caça-ministra. São dezoito municípios, aguardando a adesão de mais três. Na verdade, deveria ser um exemplo para se acompanhar, avaliar se cumpre seus objetivos e eventualmente servir de modelo.
Mas o fato é que o arcabouço institucional desenvolvido pelo MEC, através da resolução do Conselho Nacional de Educação, não existe na área da Cultura. E essa institucionalização do procedimento poderia ser um incentivo para que outras regiões ultrapassassem esse provincialismo localista e procurassem se articular para prestar melhores serviços ao cidadão na área da cultura.
O Veríssimo (acho que é ele, pelo que me lembro, caso não seja, deve ser um dos avatares do estimado escritor que pululam na Internet), uma vez disse que era preciso ter um sujeito em cada ministério encarregado de dar o aviso de que tal ou qual projeto “vai dar merda”. Concordo totalmente com a importância desse “ombudsman” especializado. Mas acho que ele deveria estar acompanhado de outro, o encarregado de “Pô, que ideia boa, vamos fazer igual!” para garimpar as iniciativas que, de vez em quando, até surgem na administração pública.