Mais um retrocesso da política cultural em Portugal

Sempre admirei a política – que supunha ser de Estado, e não dos eventuais governos – para a difusão cultural de Portugal e da Espanha. O Instituto Camões e o Instituto Cervantes, o Instituto Português do Livro e da Biblioteca como instituições autônomas, desenvolviam – e até certo ponto ainda desenvolvem – um trabalho importantíssimo de difusão da cultura desses dois países ibéricos. O Instituto Camões mantem leitorados e cátedras em dezenas de países, centros de ensino do português como língua estrangeira, centros culturais, apoio a publicações e projetos de pesquisa. O mesmo faz o Instituto Cervantes.

Durante alguns anos a ação do Ministério da Cultura de Portugal foi apoiada pelo ICEP, uma versão lusa da Apex, agência de promoção de exportações. A presença portuguesa nas bienais de livros de São Paulo e do Rio, com delegações de escritores, era financiada pelo ICEP. Há coisa de dez anos isso deixou de ser feito, e os estandes portugueses minguaram substancialmente nesses eventos.

Mas a presença das ações do Instituto Camões e do Instituto Português do Livro e da Biblioteca, criado em 1997, mantiveram uma dinâmica muito interessante de promoção do livro português no mundo. O programa de apoio à difusão do livro de autores portugueses incluiu logo os autores da África lusófona. Em relação ao Brasil, foi criado um programa especial, vinculado ao programa de apoio às traduções, que visava o estímulo à publicação de autores portugueses aqui. E uma boa quantidade de autores hoje conhecidos e publicados por iniciativa das editoras brasileiras teve suas primeiras edições no Brasil parcialmente financiadas pelo IPLB.

Eu sugeri à Nova Fronteira (quando ainda era dirigida pelo Carlos Augusto Lacerda), a publicação da primeira edição no Brasil da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, reputada por muitos estudiosos como mais importante para a consolidação da prosa literária em português que Os Lusíadas (afinal, como diria um luso, Camões escreveu em versos, e a Peregrinação é em prosa). Foi um trabalho editorial que sonhávamos – Márcio Souza, Maria José Silveira e eu – desde a época em que tínhamos a Marco Zero, e que nunca havíamos conseguido realizar pelo porte da empreitada. Finalmente, graças ao apoio do IPLB, foi feita a primeira edição em nosso país desse clássico da língua.

Os primeiros sinais de alarme começaram em 2007. O governo de direita, iniciando o longo e inútil processo de “contenção de despesas” do receituário dos FMIs da vida, liquidou com a autonomia do IPLB, recriou uma Direção Geral do Livro e das Bibliotecas que enfiou tudo de volta ao saco da Biblioteca Nacional de Portugal. O desmonte continuou em 2010, quando assumiu o governo de direita chefiado por Passos Coelho, que extinguiu o Ministério da Cultura, transformando-o em uma secretaria vinculada ao gabinete do primeiro ministro. A falência atual de Portugal é o resultado dessa submissão aos interesses financeiros, aos receituários neoliberais, coisa que já vimos também por aqui em priscas eras. Faz-se economia nos clipes da cultura para satisfazer o apetite da banca predadora.

A última notícia desse desmonte chegou esta semana, com o anúncio da desativação da Livraria Camões, no Rio de Janeiro. A Livraria Camões, que funcionava no Edifício Avenida Central, na Avenida Rio Branco, existia desde 1972. Era uma pequena loja (75 m2), mas desempenhou um importantíssimo papel de divulgação do livro e dos escritores portugueses em nosso país.

As justificativas para o fechamento da livraria, que era subsidiada pela Imprensa nacional de Portugal, caem sempre no tecnocratês economicista: contenção de despesas, os meios tecnológicos atuais são “mais eficientes” para a tarefa, etc. etc. A matéria sobre o assunto, publicada n’O Globo de hoje, está neste link.

O que preocupa a todos os defensores de políticas públicas para o livro e a leitura é a evidência do desmonte de uma política que alcançou invejável êxito.

Sim, invejável. Portugal é um pequeno país. Em população e recursos econômicos é mais ou menos do tamanho de Pernambuco. Mas tinha a sabedoria de manter uma ativa política cultural relacionada com o livro e com o idioma (e não vamos nem falar das bibliotecas públicas portuguesas), de fazer inveja, pela sua dimensão, alcance e profundidade. Construída penosamente desde a Revolução dos Cravos, mostrava para o mundo um Portugal cioso de seu patrimônio cultural, da importância do português e do legado da nossa língua comum para o patrimônio cultural universal.

Era tudo o que não tínhamos e continuamos não tendo, em grande medida.

Não temos um Instituto Machado de Assis para a promoção do português no âmbito internacional. A política cultural do Itamaraty é uma piada de mau gosto. A Comunidade de Países da Língua Portuguesa mal funciona como articulação para manter os votos dos países africanos nos organismos internacionais, com uma tênue capa de ações culturais ineficientes, mal planejadas e sem continuidade. Promove reuniões de vez em quando cá e lá – e as de cá muito apreciadas pelos representantes dos países africanos – onde o tom é muito mais de acomodação de vaidades do que de estabelecimento de políticas comuns, sejam essas quais forem.

As embaixadas e consulados brasileiros desenvolvem ações culturais (quando o fazem), dependendo quase exclusivamente do interesse e do empenho dos senhores embaixadores ou cônsules. Evidentemente, quando dos grandes eventos como exposições internacionais, feiras nas quais o Brasil é convidado de honra, o profissionalismo do Itamaraty se manifesta e a ação dos nossos diplomatas é eficiente e importante. Já mencionei isso em posts sobre a participação do Brasil em Frankfurt em 1994, e tenho certeza que acontecerá o mesmo naquela cidade em 2013. Mas não existe uma política orgânica para a difusão da cultura brasileira no Ministério das Relações Exteriores.

No Ministério da Cultura, nesse âmbito, é louvável e já se fazia tarde a ação de promoção da tradução de autores brasileiros. O programa de apoio à tradução da Biblioteca Nacional, importantíssimo, ressalta ainda a mais a ausência de outras políticas na área.

Assim, é preciso ficar de olho vivo. O que se pensava ser uma política de Estado virou pó na submissão de governos, que são transitórios por natureza. Perde Portugal. E nos alerta para o que pode acontecer por aqui. E também para o que pode acontecer na Espanha, onde o franquismo disfarçado em populismo voltou ao poder.

A canção do Chico Buarque e do Ruy Guerra, o Fado Tropical, dizia:

“Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um império colonial!
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!”

O risco é duplo: Portugal voltar a ser, na área cultural, o Portugal pré-1974. E nós o imitarmos precisamente nisso.

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