O MIASMA DO DENUNCISMO E A DIFUSÃO DA LITERATURA BRASILEIRA

Em 1992, publicamos, na falecida Marco Zero, o livro A Culpa é da Imprensa? Ensaio sobre a Fabricação da Informação, de Yves Mamou, jornalista francês, editor de economia do Le Monde. O livro tratava de análise de notícias, sua difusão, ações de assessoria de imprensa e controle de danos de imagem de empresas e manipulação da informação.

O noticiário recente sobre o programa de bolsas de tradução da Fundação Biblioteca Nacional me fez lembrar desse livro, especialmente de um caso ali relatado. Uma matéria publicada n’O Estado de S. Paulo, assinada por Jotabê Medeiros, insinuava que a concessão de bolsa de tradução para a publicação de O Leite Derramado, do Chico Buarque, para a Gallimard, prestigiosa editora francesa, era consequência de nepotismo. O tradutor do romance do cantor, compositor e romancista teria ganho a bolsa pelo fato dele ser irmão da Ministra da Cultura, Ana de Hollanda.

O caso relatado em A Culpa é da Imprensa dizia respeito a notícia plantada pelo então presidente do Banco American Express, acusando o banqueiro Edmond Safra de envolvimento com a máfia, traficantes de drogas, etc. Era parte de uma briga de negócios entre os dois. A notícia foi inicialmente plantada em um obscuro jornal peruano, e a partir daí foi sendo citada, como verdadeira, viajando para um jornal do México e indo parar nada menos que no Wall Street Journal. Bom, Edmond Safra não era nenhum coitadinho e colocou advogados e detetives para rastrear de onde vinha a difamação. O resultado foi levantado e mostrou que tudo começou na assessoria de imprensa do American Express, e que a operação estava diretamente vinculada ao seu então presidente, Jim Robinson. Resultado final: o American Express teve não apenas que pedir desculpas públicas ao banqueiro, como pagou oito milhões de dólares de indenização, em valores de 1989.

Um jornalista qualquer, usando o privilégio de não divulgar suas fontes, planta a notícia e esta começa a circular, a partir daí atribuída a jornais cada vez mais “respeitáveis”, até virar “verdade” incontestável. Até porque o desmentido não corre com a mesma rapidez da calúnia. Edmond Safra teve que passar anos monitorando as notícias a seu respeito para, a cada vez, desmenti-la com a condenação de Jim Robinson na justiça americana.

O direito de preservar as fontes é um dos pilares da liberdade de imprensa. Mas o jornalista responsável não pode simplesmente dar como verdadeiro o que uma “fonte” qualquer lhe sussurra, sem verificar os fatos, sob pena de se tornar cúmplice de inverdades e entrar no jogo da manipulação da informação.

No mundo acadêmico apelar para o chamado “critério de autoridade” é o caminho certo para a desmoralização acadêmica. Ninguém pode simplesmente dizer que tal coisa é assim ou assado porque é professor doutor ou coisa parecida. É preciso demonstrar.

Ou seja, uma coisa são os fatos, que é preciso documentar para que sejam aceitos. Outra coisa são as opiniões, onde impera o reino da liberdade (mesmo que irresponsável….).

Pois bem, O Estado de S. Paulo publicou, no dia 5 de novembro, em matéria assinada por Maria Fernanda Rodrigues, a notícia anunciando objetiva e corretamente as primeiras bolsas concedidas este ano pelo programa da Biblioteca Nacional. As bolsas são decididas pelo Conselho Interdisciplinar de Pesquisa e Editoração, que analisa os pedidos seguindo as normas do edital público do programa, analisadas a cada trimestre. Todos os pedidos apresentados no prazo foram aprovados pelo CIPE, porque todos se enquadravam nos requisitos do edital. Repito: todos os pedidos.

As bolsas aprovadas são estas, por país e editora:
Romênia:
Poesia Completa – Carlos Drummond de Andrade – Editora Humanitas Fiction Publishing House – Editora Editura Univers
Gabriela, Cravo e Canela – Jorge Amado – Univers
A Guerra no Bom Fim – Moacyr Scliar — Univers
Sinfonia em Branco – Adriana Lisboa – Univers
Sombra Severa – Raimundo Carrero – Univers
O Movimento Pendular – Alberto Mussa – Univers
O Opositor – Luís Fernando Verissimo – Vivaldi
Os Espiões – Luís Fernando Verissimo – Vivaldi
França:
Azul-Corvo – Adriana Lisboa – Editions Metailié
Black Music – Arthur Dapieve – Asphalte Éditions
Elite da Tropa 2 – Luiz Eduardo Soares, Claudio Ferraz, André Batista e Rodrigo Pimentel – Anacaona Éditions
Cidade Livre – João Almino – Editions Metailié
Leite Derramado – Chico Buarque – Gallimard
Espanha:
O Cemitério dos Vivos – Lima Barreto – Ediciones Ambulante
Mastigando Humanos – Santiago Nazarian – Ediciones Ambulante
O livreiro do Alemão – Otávio Júnior – Ediciones Ambulante
Método Prático de Guerrilha – Marcelo Ferroni – Alfaguara
Alemanha:
Os Deuses de Raquel – Moacyr Scliar – Hentrich & Hentrich
A Guerra no Bom Fim – Moacyr Scliar – Hentrich & Hentrich
A Batalha do Apocalipse – Eduardo Spohr – Heyne Verlag (Random House/Bertelsmann)
Argentina:
Ravenalas (Poemas 2004-2008) – Horácio Costa – Gog y Magog
Eles e Elas – Julia Lopes de Almeida – Editorial Leviatán
Suécia:
Perto do Coração Selvagem – Clarice Lispector – Tranan Publishers
Laços de Família – Clarice Lispector – Tranan Publishers
Inglaterra:
Litro Magazine Brazil Issue 2012 -Vários autores – Editora Litro
Irlanda:
Mensagem Para Você – Ana Maria Machado – Little Island Books
Uruguai:
Várias Histórias – Machado de Assis – Cruz del Sur
Holanda:
Se eu fechar meus olhos agora – Edney Silvestre – Uitgeverij De Arbeiderspers

Uma lista, digamos, bem eclética. Abrange de clássicos – Machado de Assis, Lima Barreto, Julia Lopes de Almeida – à literatura fantástica – Eduardo Spohr, passando por autores consagrados – Scliar, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Ana Maria Machado, Jorge Amado – até contemporâneos das mais variadas tendências – Edney Silvestre, Horácio Costa, Marcelo Ferroni, João Almino, Alberto Mussa, Raimundo Carrero, Adriana Lisboa, Santiago Nazarian, Arthur Dapieve, Luís Fernando Veríssimo, o quarteto de Tropa de Elite – e até mesmo o alternativo Otávio Júnior e sua saga de livreiro no complexo do Alemão. E o romancista Chico Buarque de Hollanda.

Eis que o jornalista Jotabê Medeiros, no dia 18 passado, publica matéria recheada de críticas à Ministra Ana de Hollanda, entre as quais a de que a concessão do auxílio à tradução do Leite Derramado “suscitou protestos de algumas editoras cujos projetos foram preteridos”.

O jornalista Jotabê Medeiros tem todo direito de achar a Ana de Hollanda péssima ministra, cantora medíocre e o que mais sua ilustríssima opinião quiser. Tem todo direito de entrar na banda de viúvos de ex-ministros, e de fazer o jogo de tendências do PT que se sentem politicamente preteridas pela escolha da Presidente Dilma Rousseff. Problema dele e de suas opiniões e do jogo em que se envolve. Eu também tenho minhas opiniões. Por exemplo, não sou fã da literatura do Chico Buarque, que considero superestimada.

Mas, quando o jornalista pretende sustentar sua opinião com uma declaração de que o apoio à tradução do romance do Chico “suscitou protestos” de inominadas editoras, aí a coisa complica, pois claramente entra no jogo da desinformação. E a ciranda prossegue. No dia seguinte, no mesmo jornal, Gabriel Manzano repete a desinformação, já transformada em “verdade”, posto que proveniente das páginas do vetusto matutino paulistano. E la nave va.

É patético.

Como pode haver “editoras preteridas” se todos os projetos apresentados foram aprovados? E mais, as editoras brasileiras podem até ter apresentado os autores ao mercado internacional, embora esse seja um trabalho feito principalmente pelos agentes literários. Mas não tem recompensas financeiras pelo fato do autor ser traduzido: quem ganha são os autores e os agentes que os representam. No máximo, as editoras ganham prestígio, o que não é pouco, mas certamente não é determinante para o desempenho exitoso (ou não) dos autores no mercado brasileiro.

A evidente manipulação do resultado de uma política pública da Fundação Biblioteca Nacional com vistas a atingir a Ministra da Cultura se ressalta nesse detalhe de inventar prejudicados onde esses não existiram. E – felizmente para a autora – se esqueceram que a Ana Maria Machado é irmã do Franklin Martins, o ex-ministro da Comunicação Social, considerado besta-fera em várias redações de jornalões pelo país afora. Se lembrassem, Ana Maria Machado, membro da Academia Brasileira de Letras e Prêmio Hans Christian Andersen, ia acabar também vítima da acusação de beneficiada por nepotismo.

Esse ambiente denuncista, esse neo-udenismo de fancaria (a História se repete como farsa, já disse um filósofo barbudo) não contribui em nada para o debate político autêntico. O miasma, essa emanação morbífica proveniente da podridão, exalada por esse tipo de matéria, compromete a integridade do jornal e do jornalista.

Como o envolvido não é o Edmond Safra e o ambiente denuncista acua o governo, o caso foi enviado à Comissão de Ética Pública. A Gallimard, atônita, fica esperando. O Chico, que já teve todos seus romances traduzidos por essa editora, vai chorar as pitangas e lamentar que a maninha tenha aceito administrar esse pepino (o que, de repente, vai render mais uma matéria, se ele expressar publicamente isso).

E uma injustificada mancha corre o risco de cair sobre o necessário e bem estruturado programa de apoio à tradução de autores brasileiros.

É a minha opinião.

4 comentários em “O MIASMA DO DENUNCISMO E A DIFUSÃO DA LITERATURA BRASILEIRA”

  1. Aceito todas as críticas, mas creio que o sr. exagera na defesa um tanto raivosa do seu ponto de vista.
    O sr. me acusa de jogar uma mancha sobre o programa. Por quê? Só porque se examina à luz do dia a questão de um provável privilégio?
    Não vejo problema, é próprio da democracia. A ministra jamais se daria ao trabalho de questionar seu voluntarioso comandado, a Biblioteca Nacional (e o sr. Galeno Amorim, do qual o sr. sugere ser um diligente subordinado), não fosse o “trabalho sujo” desempenhado pelo jornal em mostrar que há controvérsia.
    O próprio ministério suspendeu as bolsas para que sejam examinadas pelo Conselho de Ética por considerar que “consta obra de autor que possui relação de parentesco com a ministra”.
    O programa é tão frágil assim? Se é tão frágil, o que justifica ele ser mantido, se nem consegue inscrições suficientes?
    E, se é para aprovar qualquer coisa, inclusive coisas que já têm a bênção do mercado, qual o sentido em levá-lo adiante? Vaidade de gestor?
    O sr. acha realmente que Jorge Amado e Carlos Drummond de Andrade têm presença rarefeita nas traduções para idiomas estrangeiros? Precisariam da atuação emergencial do Estado brasileiro para que isso se concretizasse?
    Ora, esses autores estão entre os que mais têm livros publicados em idiomas estrangeiros.
    O Ministério da Cultura teve a chance de fazer sua defesa ainda no texto da reportagem, e não o fez (imagino) por algum tipo de buraco negro burocrático. Poderia ter esclarecido o ponto de partida ou questionado minhas fontes. Mas tomou atitude correta, recorreu a uma instância superior para examinar a questão. Não se valeu da agressão e da calúnia, nas quais seu texto aqui resvala.

    O sr. se vale de um pressuposto de perseguição orquestrada e alguma paranoia para mobilizar consciências. Devo dizer que esse é um caminho torto e estéril.

    1. Aceita não aceitando… O programa não é frágil, é novo, e importante. E segue a linha de países com a Suécia, onde Lars Gustafsson, um dos mais importantes autores locais, é subsidiado na tradução. Porque a questão é precisamente evitar que haja instâncias de avaliar qual autor é bom e qual é o “ruim”. E é ótimo que autores importantes tenham apoio, junto com outros mais novos e alternativos.
      Mas o xis da questão fica fora. Como pode haver editoras prejudicadas se todos os projetos foram atendidos? Se isso não for desinformação… Como disse, nem gosto da literatura do Chico, mas dizer que ele ganha a bolsa porque é irmão da ministra é patético. Não tenho procuração da ministra, nem do Galeno, mas sei como é difícil a promoção da literatura brasileira no exterior.
      Finalmente, preso muito o Estadão, o suficiente para lamentar quando escapa do controle de qualidade da redação uma matéria editorializada. Parece coisa da época antes de ida do Augusto Nunes para lá, quando as matérias começavam com editorial e só lá no pé davam a notícia. O que quase liquidou com o jornal.

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