Memória, História e Narrativa a partir do ponto de vista de uma ficcionista

O texto é da Maria José Silveira e foi sua participação no Fórum das Letras de Ouro Preto.

A Maria José não gosta de improvisar quando participa de mesas-redondas. A vantagem é produzir textos reflexivos e importantes sobre sua vida de escritora.

Então, lá vai:

O tema que nos coube hoje é grandioso, já que vamos tratar – nada mais nada menos – da tríade fundamental para a literatura. Uma tríade tão entrelaçada que é quase impossível dizer qual das partes é , digamos, seu fundamento. Qual o ovo, qual a galinha.

Mesmo assim, aqui, como uma proposta para começar nossa conversa, terei a ousadia de dizer que o fundamento do trio, a base desse triângulo equilátero, é a narrativa, pois sem a narrativa não teríamos memória e não conheceríamos a história. Tenho bons acompanhantes nessa escolha, inclusive aquele famoso comecinho que diz “No princípio era o verbo”, pois o que é a narrativa senão o verbo? E também Roland Barthes, estudioso do tema, quando afirma que “a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades, começa com a própria história da humanidade.”

Para ser coerente com minha formação de antropóloga, então, penso nos mitos propriamente ditos. Ou seja, na necessidade humana que faz da narrativa mítica a primeira tentativa de entender o mundo. Um mundo em que um dia – sabe-se lá onde – aqueles nossos primeiros ancestrais – um homem e uma mulher – abriram os olhos e disseram: Caramba! O que eu sou? E você, o que é?!

Esse espanto fundador da nossa humanidade – tomo outra vez a liberdade de presumir – certamente precisou de noites e noites ao redor das fogueiras para bolar uma narrativa que pudesse organizar, ainda que provisoriamente, sua resposta. A narrativa é estruturante. O homem precisa dela para se entender e se situar, seja lá onde for e em que período histórico estiver.

Dessa fogueira pré-histórica das narrativas para compreender o mundo ou organizar o não-compreendido, e também – por que não? – fazer o tempo passar, ou seja, se entreter um pouco porque ninguém é de ferro, foi se formando nossa história.

De fogueira em fogueira, o homem foi “narrando” seu entendimento do que acontecia a sua volta, formando esse imenso “inconsciente coletivo” – ou como queiramos chamá-lo – que são as narrativas entrelaçadas que herdamos de nossa cultura. Narrativas que foram formando e continuam formando nossa história e nossa memória.

Aqui, pensemos um instante na memória.

É a memória social que nos narra a nossa própria história. Como é a memória individual, única, que narra a história particular de cada um.

Nós somos nosso corpo e o que está inscrito em nós pela memória. É a memória que nos forma e nos faz ser quem somos e é com ela que se forma nossa narrativa particular, nossa “história de vida”.

Sem nossa memória, deixamos de ser quem somos. Se continuarmos vivendo sem ela, é no estado vegetativo de um corpo abandonado – a casca de uma fruta que não tem mais miolo. Assim como uma sociedade sem memória, que se tornaria amorfa e que nunca se viu porque seria impossível existir uma sociedade assim.

Como seria impossível também uma sociedade sem História. (Na verdade, alguns até já tentaram matá-la mas não conseguiram.)

A História é o processo de conflitos e transformações que começou quando o homem começou e vai terminar quando ele terminar! Somos nós, e nossa sociedade, produtos dela, e é ela que está a nossa volta e nos pôs aqui, hoje, neste lugar. Ela, portanto, é feita do mesmo material de que a literatura, a narrativa por excelência, é feita: homens, mulheres, movimento e conflitos.

Digo ainda mais: eu acredito que a História, em seu sentido mais amplo, é a personagem por excelência, embora invisível, de qualquer narrativa ficcional. Já que somos, como homens e, também como escritores, frutos de um determinado processo histórico. Nesse sentido, quando falamos de nós mesmos, do hoje e do agora, ou quando falamos do passado (ou seja, da memória) que nos formou, estamos sempre falando de um momento específico de uma história muito maior, a história da experiência humana.
O próprio terreno do ficcionista, que é o da imaginação e da linguagem, é ele também formado, junto com o escritor, por esse mesmo processo. No caso da linguagem, isso é sem dúvida unanimemente aceito; no da imaginação, às vezes ainda não é percebido, como se a imaginação pudesse ser algo fora de nós mesmos.

Não é.

Estamos todos, como seres humanos e como ficcionistas com nossas narrativas, mergulhados até o pescoço nas águas profundas dessa História (com H maiúsculo).

Como disse Benedito Nunes, conhecido crítico brasileiro: “narrar é contar uma história, e contar uma história é desenrolar a experiência humana do tempo.” (in “Narrativa histórica e narrativa ficcional”)

Essa relação com o tempo é uma relação constitutiva tanto da narrativa literária quanto da memória e da história e é uma relação mais geral, mais abrangente, que abarca qualquer narrativa e também a ficcional. Nem a literatura nem a história nem a memória existem sem essa noção de tempo humano.

Dizendo de outra maneira, o conceito de história implica movimento, transformação que se desenrola em determinado espaço-tempo. E o conceito de narrativa também implica em movimento – seja ele qual for: subjetivo, psicológico, descritivo, fantástico, realista. O verbo narrar supõe um acontecer, seja esse acontecer fora ou dentro dos cantos mais obscuros do subjetivo do nosso personagem.

É nesse sentido que uma obra literária de qualidade, quer seu autor pretenda ou não, é sempre um texto entranhado de história. A obra literária se situa no tempo – não só o tempo que ela narra mas, do mesmo modo, o tempo em que vive o escritor – e, queira ou não, ela dialoga a todo instante com esses dois momentos. As ideias e detalhes que ela expressa são evidências – por mais subjetivas que sejam – de sua época.

A obra dos autores contemporâneos, em um tempo futuro, falará, com maiores ou menores detalhes, da época na qual ela está sendo produzida, deixará por escrito a memória não só dos autores mas também de sua época. Não só através de dados muito concretos como, por exemplo, a descrição de uma rua, de uma casa, de uma cidade, roupas, objetos, ou do tipo da vida fragmentada, insegura, violenta que vivemos hoje, mas também da nossa mentalidade, nossos questionamentos, preocupações, sentimentos, valores e desejos, ou seja, nosso imaginário.

Como diz também Thomas C. Forster, crítico, professor e escritor americano:

“…. dificilmente existe um romance que não revele, de alguma forma, seu momento histórico. Um livro pode ter seu cenário 800 anos atrás ou muitos séculos no futuro, pode até voar para além dos limites da terra para uma galáxia muito, muito distante, mas ainda assim é um produto do AGORA, quando quer que esse agora tenha sido. E o agora é sempre um produto da época. A história vai entrar, quer se queira ou não.”

Assim, é interessante constatar que, entre as várias camadas de leitura que uma obra de qualidade permite está embutida também a “leitura do historiador” do futuro que procurará nessa obra vestígios e traços da época em que viveu seu autor.

Essa constatação, aliás, não é nada nova.

Contam que o historiador grego, Tucídedes, só para dar um exemplo, foi buscar nas “Ilíadas”, de Homero, as dimensões das antigas naves gregas. E nem é preciso lembrar que os clássicos de todos os tempos – Shakespeare, Cervantes, Camões, Tolstói, Proust, Kafka, para citar alguns – deixaram, todos, belos testemunhos de seu tempo.

Todos eles têm sido constantemente visitados por historiadores de hoje. Grandes romancistas de épocas passadas compreenderam muito bem tudo isso. Balzac, na introdução a sua “A Comédia Humana – Cenas da Vida Privada”, explicita: “Concedo aos fatos constantes, cotidianos, secretos ou patentes, aos atos da vida individual, às suas causas e aos seus princípios, tanta importância quanto a que os historiadores deram até então aos acontecimentos da vida pública das nações.”

É curioso, no entanto, que muitos entre os romancistas contemporâneos tenham e alardeiam a falsa impressão de que estão como que “fora” da História.

Talvez porque a liberdade que temos hoje felizmente é tanta que a criação pode começar com uma pequena ideia ou um esboço de ideia, e a escolha do tema pode vir de uma pequena frase, uma imagem, de uma sensação ou um desejo, alguma coisa qualquer que pode ser clara, ou então vaga ou nebulosa ou inexplicável, e funciona como um gatilho a partir do qual o escritor contemporâneo começa a trabalhar.

Essa liberdade é maravilha. Para o ficcionista, tudo – ou quase tudo – é permitido. A literatura – que os deuses do Olimpo a conservem assim! – é o nosso território livre.

Sem pudores e sem pedir licença, o escritor vai entrando nas intimidades, nos bastidores, nos cantos ocultos, no “hardcore” da alma humana, e de lá volta para tentar iluminar sombras e preencher vazios, articular os comportamentos sociais e culturais de uma época, conferir inteligibilidade à trama dos eventos, ideias e episódios.

A imaginação abre para o ficcionista uma porta por onde ele penetra na subjetividade de seus personagens e tenta chegar ao fundo do seu poço de desejos, necessidades, e inquietações mais íntimas.

Por isso, talvez, por esse poder de sua imaginação, e porque o momento concreto de seu processo de criação, o escritor deixa de ter a consciência de que, seja qual for o tema que escolheu e a ideia da qual partiu, sua obra está dialogando com a época e o imaginário em que ele vive e, nesse sentido, em um tempo futuro – se sua obra permanecer – ela falará dessa sua época que, explicitamente ou não, é sempre um de seus personagens.

O que, sem dúvida, é um dos atributos da grande obra literária.

Agora, se todo romance está, do ponto de vista que estou colocando aqui, mergulhado nessa História com H maiúsculo, onde fica o romance que é chamado de “histórico” por tratar de uma trama que acontece em um momento do passado?

Esse assim chamado “romance histórico” é escrito hoje, como qualquer outro tipo de romance contemporâneo, por um autor do presente, ou seja, por um indivíduo que está imerso no imaginário do presente, utiliza os instrumentos do presente, e parte das perguntas e inquietações do presente.

O romance que ele escreve, portanto, é uma obra contemporânea como qualquer outra e com o mesmo tipo de olhar e voz. Ele também trabalha com a linguagem (seu ritmo e beleza), e mistura gêneros (se quiser). Apenas sua trama, seu argumento muda.

A necessidade de classificar de “histórico” esse tipo de romance sempre me pareceu meio obscura. A não ser como uma catalogação bastante superficial, para efeitos, talvez de organizar o mundo literário colocando suas peças em diferentes escaninhos, como quem arruma um armário de roupas: calças aqui, vestidos ali, lingerie naquele canto.

Para complicar ainda mais, no Brasil, hoje – não sei, de maneira nenhuma, explicar por que e nem vou tentar – há certo “torcer de nariz” da crítica quando o escritor trata de temas históricos. Já me disseram – mas me parece tão primário que me recuso a levar a sério – que isso teria a ver com o fato da televisão brasileira, quer dizer, a Globo, ter popularizado o tema histórico. Como se fosse possível confundir novelas televisivas com literatura.

Outra explicação que escuto, talvez mais pertinente ou ainda mais tola, remete a um suposto caráter do brasileiro, em geral, que parece não se interessar muito por seu passado. Quer dar a impressão de que nasceu com ele mesmo. E isso contagiaria também a literatura feita hoje e os críticos de hoje.

Não sei. Será mesmo que somos assim? Eu duvido um pouco.

E seja como for, como ficcionista, acho incompreensível essa tentativa de “matar” a História na literatura, como se isso fosse possível.

E assim como muitos querem matar a História na literatura, outros querem matar a narrativa na literatura. (Sim, a história da literatura é cheia dessas tentativas sanguinárias, cheia de “som e fúria”.) Felizmente, nenhuma deu muito certo. Mas vira e mexe esses pequenos assassinos à espreita põem seus olhinhos de fora. Estou me referindo aqui a experiências de formalismo extremo, do nouveau roman e experiências similares. Na crítica à impossibilidade de uma narrativa dar conta de qualquer totalidade (o que é verdade), tenta-se jogar a própria narrativa junto com a água da banheira (o que é um disparate.).

Todas essas questões me tocam de perto porque desde meu primeiro livro, o que me interessou como escritora foi um questionamento que tem tudo a ver com a história e memória: como esse tema (esse personagem, essa questão) veio parar aqui, dessa maneira? O que significa?

Hoje, depois de cinco romances e vários outros livros de narrativas curtas, vejo com muita clareza que é esse processo de transformação que me interessa. Meus romances quase nunca ficam estacionados em uma época. Voltam para trás ou vão para frente ou voltam e vão.

No meu primeiro livro, “A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas”, por exemplo, conto a saga da linhagem de uma família cuja história começa em 1500, com uma índia tupiniquim de seus 13 anos, chamada Inaiá, e um marujo português de nome Fernão. E termina, em 2002, com uma jovem estilista chamada Maria Flor.

E no meu romance mais recente, “Com esse ódio e esse amor”, tenho duas personagens principais: uma jovem engenheira que vai construir uma ponte na Colômbia e é sequestrada pelos guerrilheiros das FARC; e Jose Gabriel Condorcanqui, mais conhecido como Tupac Amaru, o líder peruano da primeira rebelião pela libertação latino-americana. Entrelaço as histórias desses dois personagens em uma narrativa que vai e volta entre os séculos XXI e XVIII.

E como seria impossível de outra foram, já que sou uma escritora que vive neste momento presente, meus livros partem sempre de uma indagação atual, uma preocupação contemporânea. Esse meu romance mais recente, “Com esse ódio e esse amor”, por exemplo, começou com meu interesse pelas FARC, uma guerrilha que existe até hoje, depois de mais de 40 anos – como é possível isso, eu me perguntei? Desnecessário enfatizar a atualidade do tema já que nesse exato momento, enquanto falamos aqui, um sequestro das FARC pode estar ocorrendo em alguma estrada colombiana. E a outra parte, a do Tupac Amaru, a primeira grande rebelião de independência na América que chegou inclusive a regiões da Colômbia, foi uma história que conheci por ter vivido vários anos no Peru.

As histórias de um romance nascem das paixões do escritor. E o escritor só se apaixona por algo que lhe interessa profundamente. E a razão pela qual tal ou qual assunto lhe interessa a esse ponto só o que ele viveu, o que viu, o que aprendeu, pode explicar. Só a partir do material que forma sua “história de vida” e sua memória é que ele vai poder, de alguma forma, ter alguma coisa a narrar para o leitor.

Por tudo isso, portanto, me parece bastante claro que fazer literatura, com seu método e sua linguagem e a sua maneira, significa participar da história presente. Narrativa literária, memória e história estão ligadas por laços indissolúveis e fazem parte da mesma vontade de compreender o ser humano em seu tempo, seu contínuo movimento, e sua transformação que, esperamos – apesar dos indícios contrários – possa ser, um dia, para melhor.

Ouro Preto, novembro/2011

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