Armar o quebra-cabeças do que levar para Frankfurt – no que diz respeito às exposições e eventos, (dos autores começarei a tratar amanhã) – foi complicado, mas a qualidade do que propúnhamos aos alemães facilitou muito. É verdade que alguns museus importantes ficaram de fora, não conseguimos monopolizar as instituições da cidade. Na maioria dos casos, por já terem comprometido as datas com outros projetos de maturação mais longa, e não preciso enfatizar o quanto os alemães são fastidiosos no que diz respeito a prazos.
Agora se tratava de cumprir o acordado com os parceiros alemães e montar as exposições e levá-las para a Alemanha.
Como já mencionei, o Brasil passava por um momento de especial turbulência. O compromisso de aceitar participar da Feira de Frankfurt como país convidado tinha sido assumido pelo Embaixador Rouanet que, no final de 1992, conseguiu reverter o desastre feito por Ipojuca Pontes e restaurou o Ministério da Cultura. Rouanet foi substituído por Antônio Houaiss, que ficou no cargo até setembro de 1993. Um ano. Houaiss reitera a disposição de manter o compromisso e aprova o uso de incentivos fiscais para o financiamento do projeto.
Mas, como sabem todos os que lidam com a lei de incentivos fiscais, aprovar o projeto é uma coisa, conseguir quem se interesse por financiá-lo é outro cantar.
A aprovação pela Lei de Incentivos Fiscais foi feita para permitir que o Ministério da Cultura pudesse fazer gestões junto às empresas estatais para que essas financiassem o projeto. Verbas orçamentárias eram possibilidade remota.
O ministro Houaiss levou membros da comissão organizadora para uma audiência com o Presidente Itamar Franco. Este ouviu tudo, não fez cara de quem entendeu muito a coisa, mas disse que seu governo apoiaria totalmente a iniciativa. Não disse como. Supunha-se que o Ministro cuidasse do assunto.
A comissão marcou audiência com o Ministro das Relações Exteriores, senador Fernando Henrique Cardoso. FHC ouviu tudo, entendeu do que se tratava e prometeu que o Itamaraty contribuiria com um milhão de dólares para o projeto.
Os meses passam, o projeto avança e nada acontece. A Câmara Brasileira do Livro é quem banca as primeiras despesas. A Melhoramentos apoia cedendo salas, equipamentos e linha telefônica na sua sede na Lapa.
A assessoria do Ministro da Educação, Murilo Híngel informa que o MEC também apoiaria o projeto. E, de fato, a soma combinada é efetivamente repassada para o projeto. Do MinC, algumas passagens. A VARIG finalmente aceita patrocinar o projeto, cedendo passagens e se comprometendo a transportar um volume de carga. Além das passagens para a equipe, a VARIG fez preços especiais para as viagens de escritores. Um apoio fundamental.
Na área privada, alguns patrocínios pequenos, vários dos quais até sem uso dos incentivos fiscais.
Do MinC, nada.
Em setembro, o ministro Antônio Houaiss pede demissão e é substituído pelo Embaixador Jerônimo Moscardo. O Embaixador é um entusiasta dos programas de livro e leitura, e começa a se movimentar para conseguir recursos (lembrem-se, estamos em 1993, ano anterior ao Plano Real, com muitos problemas orçamentários e fiscais). O Embaixador Moscardo perde a paciência e manda carta ao Ministro da Fazenda, que naquela altura já era FHC, reclamando da falta de recursos do MinC. É demitido.
Seu substituto é o advogado tributarista Luiz Roberto Nascimento e Silva. Além de advogado, LRNS é poeta (uma amostra de sua produção poética, assim como dos “manifestos literários” que redigiu, pode ver vista aqui) e filho do ex-ministro Luiz Gonzaga Nascimento e Silva, atributos que o qualificaram para o cargo.
Como os anteriores, LRNS se compromete a apoiar o projeto e gestionar recursos. “Vou com você nas empresas para ajudar na captação de recursos via incentivo fiscal” – disse para membros da comissão organizadora. Como observou o processo de demissão de Moscardo, ele sabia perfeitamente que não adiantava brigar com o Ministro da Fazenda.
E assim entramos em 1994, e a coisa começava a ficar complicada. A produção das exposições passou a efetivamente a demandar recursos, e estes não vinham. Ou não vinham na medida das necessidades. A CBL – e o SNEL, em menor medida – continuavam sustentando o projeto, com contribuições que vinham mais na forma de serviços (VARIG, por exemplo), do que em recursos.
Alguns episódios nos forçaram a usar de criatividade para aproveitar oportunidades. Um patrocinador (sem incentivos fiscais), doou cem caixas da cachaça de sua fabricação para o projeto (e eu ainda vou falar de caipirinha e baianas, podem esperar). Transportadas para Frankfurt, tivemos que usar parte desse carregamento para pagar uma parcela da conta do restaurante onde foi feito o lançamento da programação, em maio, e depois para o concessionário dos restaurantes e lanchonetes da Messegelande. E assim íamos levando as coisas.
Os contatos com o Itamaraty, entretanto, avançaram de forma altamente positiva. O Embaixador Celso Amorim, que substituiu FHC no ministério, e seu Secretário de Relações Exteriores, Roberto Abdenur, reiteraram a promessa do ex-ministro (e já pré-candidato à presidência) de designar recursos orçamentários no valor de um milhão de dólares para financiar a presença do Brasil como País Convidado da 46ª. Feira do Livro de Frankfurt.
A promessa se concretizou com a designação de dois diplomatas – então Ministros-Conselheiros – que ficaram encarregados de resolver e agilizar as questões financeiras e operacionais no âmbito do Itamaraty.
Quero deixar aqui, de público, meu reconhecimento e minha homenagem aos dois. Fernando Ligiéro, que mais tarde foi chefe do Departamento Cultural do Itamaraty e morreu precocemente pouco depois de ser promovido a embaixador; e Eduardo Prisco Paraíso Ramos, hoje Embaixador do Brasil no Panamá.
Já mencionei o apoio do então Cônsul-Geral em Frankfurt, Cesário Melantônio Neto, hoje Embaixador do Brasil no Cairo.
Acredito a esses funcionários públicos exemplares uma parcela fundamental do fato de termos cumprido o programa.
Prisco Paraíso, que trabalhava então na área administrativa do MRE, me disse depois que a documentação toda do projeto se tornou um exemplo, no Itamaraty, para o desenvolvimento de projetos similares de parceria.
Enquanto isso, as coisas se arrastavam no MinC. Só não se arrastavam mais graças ao empenho formidável de outro diplomata, o Embaixador Wladimir do Amaral Murtinho, já aposentado do Itamaraty e trabalhando na assessoria do MinC, que se desdobrava para fazer que as coisas caminhassem por ali.
Quanto ao ministro, ele nos acompanhou na visita a uma estatal em busca de patrocínio. Entrou na reunião calado e saiu mudo e depois nos disse que não iria mais fazer isso, pois “não era papel dele”. Obviamente dessa estatal não saiu um tostão para o projeto.
Do MinC, no final das contas, só vieram recursos orçamentários significativos através da Fundação Biblioteca Nacional, graças ao empenho do Affonso Romano de Sant’Anna, seu presidente, e do Márcio Souza, então diretor do Departamento Nacional do Livro. A FBN cumpriu o seu papel nos gastos da exposição central na feira e, nos dois anos anteriores, estabeleceu ações que foram importantes para o sucesso do programa: o primeiro programa de Bolsas de Tradução (que depois da Feira de Frankfurt viveu em soluços, deixando de existir por vários anos, e que agora foi retomado pelo Galeno Amorim). Outras ações importantes foram reuniões com Agentes Literários, na Bienal do Rio, e um encontro com jornalistas culturais em Manaus, com o apoio do governo do Estado do Amazonas.
A tensão relacionada com os recursos foi imensa. Tenho grande orgulho em ter participado do planejamento e execução do Projeto Frankfurt 1994, mas quando penso no assunto me vem à lembrança essa tensão, que até hoje me deixa um travo amargo. Basta dizer que não assisti à inauguração da Feira, pois tive que esperar a liberação de alguns recursos para poder levá-los pessoalmente para pagamento de fornecedores e operários da montagem…
Mas as exposições chegaram, foram montadas e tudo estava pronto para a abertura da 46ª. Feira do Livro de Frankfurt.
Na véspera da inauguração, a Associação dos Editores e Livreiros Alemães ofereceu um jantar formal para seus associados e os representantes oficiais do País Tema. Havia dois Ministros de Estado brasileiros em Frankfurt, como representantes do país: Luiz Roberto Nascimento e Silva, Ministro da Cultura, e Murilo Híngel, Ministro da Educação.
Eu não pude comparecer ao jantar, já que ainda estava no Brasil, mas depois fui informado do vexame. LRNS, que era oficialmente o representante do Presidente da República, não compareceu à cerimônia. O Ministro Híngel foi quem assumiu o papel de representante do Brasil e fez o discurso na cerimônia. Como não estava lá, não sei dos detalhes. Mas suponho que o Ministro da Cultura deve ter jantado em outro lugar, talvez em melhor companhia que a dos livreiros e editores alemães e dos brasileiros presentes.
A CBL carregou uma dívida de mais de meio milhão de dólares junto a fornecedores alemães, que foi pagando com recursos próprios, evitando o vexame do Brasil passar por caloteiro.
Excelente, Felipe. Esse material deveria virar livro. Se é que já não virou…
abraço,
Edson
Fazer os posts já me cansa, imagine transformar isso em livro. Além do mais, vira vespeiro
Os posts já são uma forma de organizar as ideias. Imagine estender esse mote para dar um panorama crítico do que foi a década de 90 para o mundo do livro no Brasil, com depoimentos de alguns escritores, do Affonso, dos embaixadores envolvidos etc. Um serviço para a história recente do livro no Brasil.
abraço,
Felipe,
Assim como você, também tenho imenso orgulho em ter feito parte desse projeto. Mas o tal travo amargo, seguido de um aperto na boca do estômago, também me vem cada vez que lembro dos sufocos que passamos. Foram muitos. Aquele cronograma imenso nos olhando lá da parede, e a produção devagarinho por falta de recursos. A greve da alfândega na véspera do embarque da maior parte do material das exposições paralelas. Muitos percalços, muitas dificuldades, mas também muita gente fantástica dando a alma pra chegarmos lá. E chegamos! Valeu a pena!
Além do mais, depois de Frankfurt 94, qualquer outro projeto virou galho fraco.
Beijão, Helô
Prezados Senhores,
Acho muito curioso que o Sr. Felipe Lindoso venha hoje 17 anos depois da Feira de Frankfurt de 1994 dar esse depoimento distorcido dos fatos. Record0-me perfeitamente dele sempre no MinC durante a minha gestão ajudando a tornar a Feira uma realidade. Tenho cartas encaminhadas por ele e em nenhum momento ele formulou críticas tão duras como as que se sente à vontade para fazer 17 anos depois.
Todos que já fomos gestores públicos no Brasil sabemos das dificuldades financeiras desses grandes eventos nos quais um governo se compromete mas acaba sendo outro que tem na prática que realizar. Foi assim na gestão do ministro Gil no ano do Brasil da França, foi assim recentemente na Europália com a ministra Ana de Holanda.
A realidade é que a Feira de Frankfurt de 1994 foi conduzida pelo Ministério como uma política pública. O que o Sr. Felipe Lindoso não gostou mas que só externa agora é que não se permitiu que os órgãos privados conduzissem o processo.
Como ele certamente irá se recordar e se o fizer temos amplo material para avivar sua memória é que realizamos um evento singular com enorme repercussão na Alemanha e com menor repercusão no Brasil pois a Feira ocorreu durante o processo eleitoral brasileiro tendo em consequência repercussão mais diluída.
Pessoalmente, repito pessoalmente, consegui recursos junto a EMBRATEL na pessoa do saudoso Renato Archer para levar uma delegação de escritores brasileiros. Para que o grande público compreenda, a Feira de Frankfurt com a maioria das feiras internacionais são eventos privados, financiados pelas editoras e pelas entidades de classe com a fundamental Câmara Brasileira do Livro. Assim não cabe normalmente ao setor público se envolver num processo que é essencialmente privado.
Entretanto em 1994 o Brasil era país-tema e nessa dimensão a participação brasileira justificava a participação do MinC. Alugamos uma pequena casa que durante a Feira se tornou a “Casa da Literatura Brasileira”. Meu companheiro de Ministério José Carlos Barbosa, Secretário de Apoio à Cultura foi fundamental nesse processo e no envolvimento da Feira com a Lei Rouanet.
Fomos pessoalmente em maio a Frankfurt para termos a certeza do que o público alemão conhecia e deseja ver em termos de literatura. Nossa interlocutora foi a sucessora do tradutor do Guimarães Rosa para o alemão e a maior tradutora dos escritores contemporâneos brasileiros.
Nossa delegação de escritores brasileiros foi composta de escritores da importância e da expressão de João Ubaldo Ribeiro, Ignácio Loyolla Brandão, Ferreira Gullar, Darci Ribeiro, Lygia Fagundes Telles, Nélida Pinõn, Moacyr Scliar, Roberto Drummond, portanto nomes inquestionáveis e que representam a pluralidade dos estados brasileiros. Tenho consciência e até cópia que a lista de indicados era outra e não se submetia a esse critérios de meritocracia.
Ao lado do debates, foi montada uma linda exposição em torno de Clarice Lispector e Guimarães Rosa, os dois autores mais demandados pelo público alemão.
Normalmente acompanho os depoimentos em torno de minha gestão na área cultural com isenção e distanciamento. Entretanto, como esse se distancia tanto dos fatos e se confronta tanto com o Felipe Lindoso que conheci em 1994, sinto-me obrigado a recompor o esforço governamental do governo Itamar Franco em realizar a Feira com a grandeza e densidade como ela ocorreu.
Atenciosamente
Luiz Roberto Nascimento Silva – ex-ministro de Estado de Cultura do Governo Itamar Franco e responsável pela Delegação Brasileira na Feira de Frankfurt em 1994.