A construção da programação da presença brasileira na Feira de Frankfurt em 1994 foi, em síntese, um processo de construção de parcerias. Lembremos que começamos esse planejamento ainda em 1992, momento de inflação alta, taxas de crescimento irrelevantes. O Brasil de então era muito diferente do de hoje. As presenças da Itália, da França, do Japão e da Espanha como países homenageados tiveram enorme sucesso, Em 1992 foi o ano do México, substituindo emergencialmente a União Soviética, que tinha se esvanecido logo depois da queda do Muro de Berlim e do final da Perestróika. Miguel de la Madrid, ex-presidente mexicano, assumiu a organização da presença do país em Frankfurt, e foi um sucesso, apesar da disputa Octavio Paz/Carlos Fuentes.
Não custa lembrar, também, que estava em pleno desenvolvimento a crise que terminaria no impedimento de Fernando Collor, no final de 1992.
O apoio efetivo do governo brasileiro iria depender de muito esforço de mobilização e pressão das entidades dos editores, que assumiram de fato a responsabilidade de organizar a participação brasileira. A Câmara Brasileira do Livro e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros, corajosamente, se responsabilizaram pela organização do evento.
Era importante, portanto, um planejamento que minimizasse os custos do projeto, e a estratégia definida foi a de construção de parcerias.
Os gastos efetuados por cada país eram objeto de contabilidade interna e não necessariamente divulgados. Mas estimava-se que os últimos três países convidados tinham gasto, cada um, somas ao redor dos cinco milhões de dólares. Para adiantar o levantamento feito, no final da Feira, o investimento do Brasil não chegou a três milhões de dólares na época.
A participação dos países na Feira de Frankfurt implicava gastos nas seguintes frentes: presença de autores, em número significativo; preparação da exposição principal no recinto da Feira; ocupação de espaços em museus, galerias, teatros, etc. na cidade de Frankfurt e, eventualmente, circulação de algumas exposições por outras cidades alemãs. A Feira assumia os custos de locação do espaço dentro da Messegelande (o complexo de pavilhões que abriga as feiras de Frankfurt e que, além da Feira do Livro, é usada pelos salões de automóveis, têxteis, mobiliários, etc., como qualquer Anhembi ou Rio Centro). Além disso assumia os custos de publicidade local e uma exposição de livros publicados na Alemanha sobre o país-tema.
Os espaços nos museus devem ser negociados com muita antecedência, e são caros. Os museus certamente só aceitam exposições que estejam dentro da linha de trabalho de cada um deles, mas a princípio, alugam os espaços para as exposições.
No caso do Brasil, e com um apoio bem decidido da Messe-und–Austellungs (a empresa dos editores e livreiros alemães que administra a feira e a presença do país nas feiras internacionais), e particularmente de Peter Weidhaas, armou-se a estratégia de buscar os principais espaços expositivos da cidade com um “cardápio” de opções, com o intuito de transformá-los em parceiros do projeto, e não simplesmente prestadores de serviço e locatários dos espaços.
O raciocínio era que podíamos construir essa oferta de eventos com muita amplidão, apresentando uma variedade de aspectos da cultura brasileira, de modo a permitir que as instituições alemãs escolhessem, dentre elas, as que melhor se adaptassem aos respectivos programas e assim pudessem aceitar a parceria, traduzida na cessão dos espaços, infraestrutura, pessoal, etc. Assim, mesmo atendendo a interesses das instituições alemãs, garantíamos uma presença de qualidade e diversidade como poucas vezes o Brasil tivera em eventos desse porte. A construção desse interesse recíproco era a estratégia fundamental do projeto: o Brasil oferecia uma variedade de possibilidades de alta qualidade, entre as quais os parceiros alemães escolheriam as que melhor lhes conviessem.
Assim foi organizado o “cardápio” com mais de vinte ofertas, das quais, finalmente, foram acertadas parcerias para a realização de doze “eventos paralelos”, como os chamavam.
Dentre os não aceitos por nenhum parceiro alemão, o evento que mais me surpreendeu foi a recusa a uma exposição sobre a imigração alemã para o nosso país, focada principalmente nos que vieram da Alemanha para o Brasil no século XIX. Na verdade, como constatamos pelos subentendidos, os alemães não gostavam de se lembrar da época em que tiveram que exportar significativos contingentes populacionais para as Américas porque o país era pobre, e era a miséria que expulsava aqueles emigrantes. Mesmo o evidente sucesso no Brasil desses migrantes, o fato desse fenômeno ter acontecido não despertava simpatia por lá. O que, obviamente, é um sintoma das dificuldades que o país tem com sua própria história.
Assim, tivemos no próprio pavilhão de entrada da Feira, a exposição “Criatividade na Cultura Brasileira”, que dava o tom ao mote da presença brasileira, apresentada sob o lema geral de “BRASILIEN, BEGEGNUNG VON KULTUREN” – BRASIL, ENCONTRO DE CULTURAS.
A ocupação dos museus, galerias e espaços expositivos espalhados pela cidade de Frankfurt foi espetacular:
– BRASILIANISCHE VOLKSKUNST – Arte Popular Brasileira, com o acervo do Museu Casa do Pontal, do Rio de Janeiro, curadoria de Jacques van de Beuque, na Burgerhaus Bornheim (Saalbau);
– MODERNE BRASILIANISCHE GEBRAUSCHSGRAFIK – Design Gráfico Brasileiro Contemporâneo, curadoria de Joyce Joppert Leal, no Karmeliterkloster;
– DAS KINDERBUCH IN BRASILIEN – O Livro para Crianças no Brasil, curadoria de Elizabeth D’Angelo Serra, Luiz Raul Machado e Cláudia de Miranda (FNLIJ), na Jugendbibliothek FKF;
– DIE BRASILIANISCHE LITERATUR AUF BRIEFMARKEN – A Literatura Brasileira na Filatelia, curadoria de Laís Scuotto e José Afonso Braga (ECT), no Deutsches Postmuseum;
– DIE DICHTER DES LICHTS: ZEITGENÖSSISCHE BRASILIANISCHE FOTOGRAFIE – A Espessura da Luz: Fotografia Brasileira Contemporânea, com curadoria de Paulo Herkenhof, no Fotografie Forum Frankfurt;
– ZEITGENÖSSISCHE ARCHITEKTUR IN BRASILIEN, – Arquitetura Contemporânea Brasileira, com curadoria de Hugo Segawa, no Deutsches Architektur Museum;
– BURLE MARX: LANDSCHAFTSGESTALTUNG IN BRASILIEN – Burle Marx: Paisagismo no Brasil, curadoria de Haruyoshi Ono, no Palmergarten Der Stadt Frankfurt;
– ZEITGENÖSSISCHE NAÏVE MALEREI AUS BRASILIEN – Naïfs Brasileiros de Hoje, curadoria de Lucien Finkelstein, na Affentorhäuser;
– BILDER DES UNBEWUSSTEN AUS BRASILIEN – Brasil: Museu de Imagens do Inconsciente, curadoria de Almir Mavignier, na Kommunale Galerie im Leinwandhaus;
– AFRO-BRASILIANISCHE KULTUR UND ZEITGENÖSSISCHE KUNST – Arte e Religiosidade Afro-Brasileira, curadoria de Emanoel Araújo e Carlos Eugênio Marcondes de Moura, no Frankfurter Kunstverein;
– PIONIERE DES BRASILIANISCHEN KINOS – Pioneiros do Cinema Brasileiro, curadoria de Jurandyr Noronha, no Deutsches Filmuseum;
– LITERATUR IM BRASILIANISCHEN FILM – Cinema e Literatura no Brasil, mostra de cinema organizada por José Carlos Avellar, no Deutsches Filmuseum;
– BRASILIANISCHE LITERATUR: EINZARTIG UND UMFASSEND – Literatura Brasileira: Singular e Plural, curadoria de Affonso Romano de Sant’Anna, Márcio Souza e Domício Proença Filho, no recinto da Feira, ao lado da exposição central.
Cada uma dessas exposições (menos a da arquitetura, por problemas de direitos autorais das fotos), resultou em um livro-catálogo com textos dos curadores em alemão, inglês e português, em capa dura e papel cuchê. Os livros, cartazes e demais materiais gráficos foram todos desenhados por Moema Cavalcanti, um trabalho belíssimo, do mais alto nível.
Como se pode ver, uma amostra vibrante e abrangente da cultura brasileira, ocupando espaços privilegiados e com curadores da maior categoria e reconhecimento. A exposição sobre Arte e Religiosidade Afro-Brasileira, por exemplo, ocupou todos os três andares da Frankfurter Kunstverein e foi uma síntese do esforço curatorial de Emanoel Araújo. Almir Mavignier, importante pintor brasileiro há anos radicado na Alemanha, encarregou-se da curadoria das obras do Museu do Inconsciente, que ajudou a criar com Nise da Silveira. A fotografia teve sua exposição organizada por Paulo Herkenhof, que viria a ser curador da Bienal de S. Paulo e é um dos mais importantes críticos de arte do Brasil, e assim por diante.
Esse conjunto de exposições tornou-se viável à custa de planejamento e ação antecipada. Julio Heilbron e eu viajamos para Frankfurt com quase dois anos de antecedência, visitando museus e construindo essas parcerias. Além da Messe-und-Ausstelungs cabe também destacar o apoio e a assistência do nosso então Cônsul-Geral em Frankfurt, o hoje Embaixador do Brasil no Egito, Cesário Melantonio.
Mais uma vez convém lembrar o momento em que vivíamos. O país tinha saído da ditadura e realizado a primeira eleição direta para Presidente da República em décadas, mas esse estava sob forte pressão e não iniciou 1993 no exercício do cargo. Estávamos no período anterior ao Plano Real e, para falar a verdade, nem me lembro do nome da moeda nacional na época. Transmitir confiança aos possíveis parceiros alemães não foi fácil.
Cabe aqui uma última observação sobre o comentário de Peter Weidhaas publicado no post anterior. Ele se refere à coleção de livros/catálogos preparados para as exposições: “a meia dúzia de livros ilustrados cuidadosamente editados sobre o Brasil, parte dos quais só chegou a Frankfurt depois da Feira. Esses livros, cada um em uma edição de mais de 1.000 cópias, devem ter custado o resgate de um rei”.
Peter Weidhaas não tinha a informação completa, e vale a pena retificar o assunto: foram doze livros; algumas das edições não chegaram completas na abertura da Feira, mas de todas já havia exemplares por ocasião da inauguração da Feira. Finalmente, a edição da “Brasiliana de Frankfurt” foi relativamente barata. A Suzano forneceu o papel a um preço praticamente simbólico, chapas de impressão fornecidas pela Hoechst e tintas pela Glanz e a impressão pela Melhoramentos, que na época era proprietária de uma grande gráfica. Afinal, os livros também eram uma amostra da excelência da indústria gráfica brasileira – com forte presença de empresas de origem alemã. Na verdade, conseguiu-se produzir a “Brasiliana de Frankfurt” com o mesmo espírito de parceria e colaboração que marcou a execução das exposições.
Mas ainda há muito que tratar sobre Frankfurt 94, e a série continua amanhã.