ABRALIC – RESISTÊNCIA E BONS DEBATES

Semana passada (entre 19 e 24) aconteceu no Rio de Janeiro o XV Encontro da ABRALIC – Associação Brasileira de Literatura Comparada, no campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

O evento foi organizado sob a direção do prof. João Cezar de Castro Rocha, professor daquela Universidade e atual presidente da ABRALIC. João Cezar enfatizou sempre que fazê-lo no campus da UERJ era, também parte da luta pela defesa da universidade pública, gratuita e democrática. Entre outras razões, porque a UERJ sofreu duramente a falta de verbas, atraso no pagamento de salários e benefícios de professores e funcionários. Cortes e contingenciamento de verbas decorrentes, principalmente, do fato do governo do Rio de Janeiro não dar a devida prioridade à educação pública.

A UERJ, salientou João Cezar em conversa, sempre foi uma universidade voltada para o subúrbio, longe da pomposidade e da tradição da UFRJ – descendente da primeira universidade pública brasileira, iniciativa de Anísio Teixeira. O campus ao lado do Maracanã, bem servido de transporte público (que hoje inclui o metrô), era a universidade de mais fácil acesso para a juventude que crescia no subúrbio carioca. O próprio João Cezar, de magnífica carreira acadêmica – inclusive como professor visitante de importantes universidades europeias e norteamericanas – orgulha-se de suas origens no Méier.

O Itaú Cultural contribuiu para a realização de várias mesas e pela presença de visitantes nacionais e internacionais. Aliás, a galeria de ilustres participantes no evento é muito significativa, tanto da área acadêmica como de escritores, como se pode ver na fanpage do evento no Facebook.

Mesa na ABRALIC - Rita Palmeira, Laura Erber, Eu, Luiz Ruffato
Mesa na ABRALIC – Rita Palmeira, Laura Erber, Eu, Luiz Ruffato

A mesa da qual participei, na tarde do dia 22, centrou-se precisamente no programa Conexões Itaú Cultural: Literatura Brasileira no Exterior, do qual sou um dos curadores, juntamente com o prof. João Cezar, e contou com a presença do escritor Luiz Rufatto, da prof. Laura Erber (UNIRIO) e foi mediada pela prof. Rita Palmeira (Conexões Itaú Cultural).

Preparei minha intervenção a partir do trabalho de Pascale Casanova, pesquisadora francesa (discípula de Pierre Bourdieu), autora de um livro muito importante, A República Mundial das Letras (Estação Liberdade).

Pascale Casanova faz, ainda na introdução desse livro, uma observação interessante sobre O Motivo do Tapete, de Henry James, e que sintetiza bem o espírito da obra. Diz ela: “A ideia, espécie de preliminar crítica incontestada, de que a obra literária deve ser descrita como exceção absoluta, surgimento imprevisível e isolado. Nesse sentido, a crítica literária pratica um monadismo radical: uma obra singular e irredutível seria uma unidade perfeita e só poderia ser medida e referir-se a si mesma, o que obriga o intérprete a apreender o conjunto de textos que formam o que se chama de ‘história da literatura’ apenas em sua sucessão aleatória”. Esse seria, para ela, justamente o preconceito que cega a crítica. E “o sentido da solução que James propõe ao crítico, ‘o motivo no tapete’, essa figura (ou essa composição) que só aparece quando sua forma e coerência de repente jorram do emaranhado e da desordem aparente de uma configuração complexa, deve ser buscada não em outra parte e fora do texto, mas a partir de um outro ponto de vista do tapete e da obra”. […] e sua complexidade “poderia encontrar seu princípio na totalidade, invisível e contudo oferecida, de todos os textos literários através e contra os quais ela pôde se construir e existir e da qual cada livro publicado no mundo seria um dos elementos” (16-17).
É a partir daí que podemos entender não apenas a literatura comparada – todos esses motivos do tapete literário que se tece pelo mundo afora e no decorrer da história da literatura – como a importância da inserção das nossas vozes literárias nessa trama. Não porque seja particularmente importante ou notável (apesar da observação do Antonio Cândido, de que a literatura brasileira é apenas um “galho secundário” da portuguesa), mas porque sem ela ficam faltando motivos na composição do tapete.

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O Conexões Itaú Cultural – Mapeamento Internacional da Literatura Brasileira  é parte do esforço de conhecer onde andam os pedaços das nossas contribuições para essa composição. E a Machado de Assis Magazine – Literatura Brasileira em tradução, da qual sou o editor, um esforço para que mais peças das nossas contribuições a essa tapeçaria sejam incluídas.

Essa incorporação de motivos na tapeçaria às vezes implica em sorte e em um trabalho quase detetivesco. Lembro do caso de Poggio Bracciolini, secretário do antipapa João XXIII, poliglota, erudito e colecionador de manuscritos – tarefa a que se dedicavam eruditos ricos no Renascimento – e recuperou para a história, não apenas da literatura, como também da filosofia e da ciência, os trechos do poema de Lucrecio, De Rerum Natura, atualizando ideias que foram fundamentais para a construção do mundo moderno. A história é deliciosamente contada no livro A Virada – o nascimento do mundo moderno, de Stephen Greenblatt, professor de Harvard.

Entretanto, a grande virada da literatura começa mesmo com Gutemberg e a invenção dos tipos móveis. O que leva, mais adiante, ao surgimento de dois personagens para os quais gostaria de brevemente chamar atenção aqui: o editor e o tradutor.

Sem esses dois personagens não se pode, de fato, falar de uma República Mundial das Letras. Sem os tradutores o livro não viaja; sem editores não se atualiza e permanece.

Veja-se brevemente a trajetória de dois autores da literatura escrita em português.

Luís de Camões publica Os Lusíadas em 1572, que é um panegírico das navegações lusitanas. Em 1580 Portugal passa a ser governado por Filipe II da Espanha, e a obra camoniana assume cada vez mais o papel de sustentáculo ideológico do nacionalismo português. Como tal permanece, é traduzido e repetidamente editado, e considerado como um dos momentos fundadores do português como língua literária.

Outro livro, de um contemporâneo quase perfeito de Camões, – e por muitos considerado também como um dos livros formadores da prosa literária em português – teve um destino muito distinto. Trata-se das Peregrinação de Fernão Mendes Pinto.

Peregrinação é o relato das aventuras que esse português passou pela Ásia e Oceania durante décadas, e onde apresenta uma visão “por dentro” do ciclo das navegações: pilhagens, portugueses escravizando portugueses e roubando uns aos outros, extrema violência e cobiça e outras pérolas do gênero.

O livro foi publicado pela primeira vez em Portugal em 1614, depois do autor já ter morrido havia 31 anos.

Fernão Mendes Pinto escreveu a Peregrinação entre 1569 e 1578, e recebeu uma tença (pensão) do soberano espanhol que governava Portugal. Além do mais, vinculou-se, no fim da vida, aos jesuítas, o que o colocava sob suspeita para uma boa parte do resto do clero e da nobreza portuguesas. A Ordem de Jesus sempre foi polêmica e controversa.

A história das edições da Peregrinação é significativa disso. Teve um sucesso inicial fulgurante (dezenove edições em seis línguas), logo depois entrou em um limbo editorial. Edições esparsas, geralmente reproduções da edição de 1614. Somente em 1908-1909 aparece uma “edição popular” em Lisboa e, até a restauração democrática em Portugal, há notícias, no século XX, de apenas cinco edições (além da popular mencionada), três das quais reproduzindo o original, sem tratamento crítico. Ou seja, só para eruditos. Apenas a quinta edição do século XX, de 1961, preparada por Antônio José Saraiva, traduz um esforço para tornar Fernão Mendes Pinto acessível ao leitor moderno (cf. “Prefácio” de A. J. Saraiva, op. cit. pg. XLVI e sgs.). A edição em português atual, preparada pela escritora Maria Alberta Menéres, foi lançada em 1971, nos estertores do salazarismo.

Tudo ao contrário dos Lusíadas.

Para muita gente mais capacitada que eu, a Peregrinação é um marco importantíssimo na consolidação do português como forma literária em prosa. No entanto, até hoje é um personagem semiclandestino na literatura portuguesa, e só foi editado pela primeira vez no Brasil em 2005, editada por mim e publicada pena Nova Fronteira com apoio do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas.

As diferenças essenciais entre os dois livros vão além da importância literária que tenham. Devem-se a circunstâncias de ordem política, econômica e social, decorrentes das diferenças dos projetos literários dos dois autores.

O que destaco aqui é que a composição dessa imensa tapeçaria que é a República Mundial das letras não depende exclusivamente da qualidade da contribuição de cada autor, de cada país, a cada momento.

Esses “fatores externos” ao fato literário, como explicita Pierre Bourdieu em sua obra, recolocam em outra dimensão a literatura comparada e a predominância deste ou daquele universo linguístico na história da literatura. Se não considerarmos isso, não há como explicar o sucessivo predomínio do francês primeiro, e hoje do inglês, como as “línguas literárias” que geram a maior difusão internacional, e dão a aparência de “superioridade” de algumas literaturas (nacionais ou linguísticas) sobre outras.

Daí que a exigência de políticas públicas que facilitem, estimulem e contribuam para a inserção da literatura brasileira nessa República Mundial das Letras têm a maior importância.

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