POLÍTICAS PÚBLICAS DE LEITURA – 2

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No artigo publicado na semana passada, ainda sobre políticas públicas de leitura, abordei questões relacionadas ao direito ao acesso à cultura e ao PNLL – Plano Nacional do Livro e Leitura. Quero acrescentar apenas mais algumas observações sobre a questão do direito ao acesso. Desta vez, no âmbito das bibliotecas, da mediação da leitura e de sua importância.
Existe uma multiplicidade de correntes e teorias sobre cada um desses aspectos. Os ferrenhos defensores da “contação de história” se unem – ou não – aos que destacam o “papel transformador” do livro. Algo, porém, existe em comum a todos esses que eu chamo de “leiturólogos”: a ênfase na importância de que se leiam os “bons livros”, os “livros transformadores” e qualquer outro adjetivo que se escolha.
Que bom! Mas o grande problema da diversidade de experiências se resume em alguns aspectos: a) ausência de avaliações OBJETIVAS sobre sua eficácia, até porque não se sabe bem o que buscam; 2) ausência quase absoluta de difusão das que sejam efetivamente avaliadas como “boas práticas”, principalmente dos métodos usados, de modo a que possam ser replicados. O Prêmio VivaLeitura procura, de certo modo, suprir essa deficiência. Entretanto, está profundamente marcado pela subjetividade da avaliação dos programas apresentados, na minha opinião.

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Até aí, ótimo. Como diz outro pensador contemporâneo, “que mil flores desabrochem, que mil escolas de pensamento floresçam”.

Mas quando se trata da construção de acervos para as bibliotecas públicas, é sempre oportuno lembrar a questão do direito ao acesso.

Em primeiro lugar, e chovendo no molhado, a situação das bibliotecas públicas no Brasil é uma vergonha. Na quantidade, na qualidade, tudo nos faz ruborizar. Existe, nessa questão, mais uma negação do direito ao acesso.

É bom lembrar a história da gênese da biblioteca pública moderna. Matthew Battles, que foi curador da biblioteca de livros raros de Harvard e hoje trabalha com Robert Darnton na construção da Biblioteca Pública Digital dos EUA, é o autor de “A Conturbada História das Bibliotecas”. Um livro fascinante, que recomendo a todos. Foi editado aqui pela Planeta que, infelizmente, não o reeditou depois de esgotada a primeira edição.

Nesse livro, Battles mostra como o surgimento da biblioteca pública moderna deu-se em função, na Inglaterra, do movimento sindical, que buscava criar meios para o auto aperfeiçoamento pessoal, intelectual, técnico e científico dos operários. O mesmo espírito se transferiu para as bibliotecas nos EUA. O sistema de classificação decimal, inclusive, foi inventado por Dewey para facilitar, com a classificação, a busca dos livros pela infinidade dos ramos do conhecimento humano.

Em uma palavra, as bibliotecas públicas modernas nasceram sob a égide da universalidade do acervo e da visão da democracia no acesso ao conhecimento através da cultura letrada. Cada frequentador tinha o direito de encontrar nas bibliotecas o que necessitasse para a satisfação de suas necessidades intelectuais, de conhecimento, de formação pessoal, etc. Os bibliotecários estavam ali para ajudá-los a encontrar os livros que desejassem.

Estamos muito longe disso aqui na Pindorama.

As bibliotecas públicas deveriam ser, em primeiro lugar um serviço público, e de qualidade. Nesse sentido, a construção de seus acervos deveria correr ao longo de dois eixos.

O primeiro é o da atenção ao público que a frequenta. Quem entra em uma delas deveria ser atendido na satisfação de suas necessidades. Quer um livro que ensine a construir lajes, que o tenha. Quer literatura, que tenha a mais ampla opção. Quer filosofia, que encontre aquele que responda às suas necessidades intelectuais e espirituais. O bibliotecário deveria atendê-lo no sentido de que encontre o que deseja.

Em segundo lugar, além de crescer segundo as necessidades manifestas ou esperadas do público a que serve, o acervo deve abrir possibilidades, democraticamente. Abrir a possibilidade de ampliar horizontes, despertar curiosidades, aumentar o campo de ofertas em todas as áreas. Mas, sem perder de vista o público específico daquela biblioteca. As características desse público é que devem orientar o crescimento do acervo.

A forma de atender a demandas específicas, já que nenhuma biblioteca pode ter acervos completos, também já se desenvolveu há mais de um século: redes de bibliotecárias e empréstimos interbibliotecas. Infelizmente, a inexistência disso por aqui representa outro atentado contra o direito democrático do cidadão dispor do que deseja ler.

Mas, sinceramente, o pior nem é isso.

O pior, desde meu ponto de vista, é a insistência na eliminação da autonomia da escolha dos acervos das bibliotecas, que é sistematicamente retirada dos bibliotecários, que recebem verbas absolutamente insuficientes (quando recebem), e dependem da praga do fornecimento centralizado de acervos.

Aí a coisa pega. E em todos os níveis. Municipal, estadual e federal.

Em todos eles, a definição do acervo das bibliotecas públicas – e escolares – é feita por “comissões de especialistas”.

Não sou dominado por nenhum orixá udenista que vê corrupção em tudo, mas sempre digo: quando existe comissão para a definição de lista de livros, existe comissão.

Não se trata de comissão monetária. Nada disso. Mas a comissão, a recompensa de exercer o poder. O poder de definir o que os cidadãos podem – ou, pior, devem – ler. É um atentado violento, profundo e sistemático ao direito democrático de escolher. O acesso aos livros (em todos os formatos), que deveria ser a consagração fundamental do acesso ao conhecimento letrado, é frustrado e retirado dos cidadãos. Tanto pela pobreza dos acervos, o desprezo pela importância das bibliotecas, como pela imposição dada por essas comissões ao que pode ser lido pelos cidadãos.

As histórias a respeito das compras centralizadas são escabrosas. Desde o envio de coleções completas das obras do Goethe, nos tempos do INL, até a das obras completas do Padre Vieira e uma edição do “O Uraguai”, do Basílio da Gama, na primeira edição do programa biblioteca na Escola, ainda na gestão do Paulo Renato.

Mas, como sou otimista, gosto de pensar nas iniciativas que vem de baixo, da população pobre das nossas cidades que percebe a importância dos livros e do acesso à cultura letrada.

O vídeo produzido pela Edições SM em 2006, por ocasião do 2º. Prêmio Barco a Vapor, mostra a iniciativa de construção de uma biblioteca comunitária em um prédio invadido no centro de S. Paulo. Severino Manuel da Costa, Lamartine Brasiliano e Roberta Maria da Conceição dão seu depoimento. Em entrevista posterior, Severiano revela que o livro ali mostrado não apenas foi o primeiro que ele conseguiu, mas o mais solicitado nos primeiros meses da ocupação: Eletricidade Básica.

Outro vídeo é uma entrevista com Sérgio Vaz,  produzida pelo Itaú Cultural, sobre as atividades do Sarau da Cooperifa, uma impressionante iniciativa de produção de literatura na periferia de S. Paulo. Programa fundamental para quem queira entender a dinâmica dos movimentos populares em torno do livro e da leitura em S. Paulo. Todas as quartas-feiras, no Bar do Zé Batidão. Rua Bartolomeu dos Santos, 797 Chácara Santana. Periferia-SP.

O terceiro é uma entrevista com Claudemir Cabral, um jovem morador de Paraisópolis, que fundou, organiza e mantém uma biblioteca comunitária na favela.

Com estas observações evidentemente não pretendi esgotar o tema proposto. Simplesmente aproveitei a oportunidade para apresentar a vocês algumas das minhas angústias de viver essa coisa insana, mas profundamente visceral, que é contribuir para que nosso país seja realmente um país de leitores.

PS – Os jornais de hoje anunciam io cancelamento da Jornada de Passo Fundo, por falta de recursos. As leis de incentivo à cultura não funcionou, o Governo do Rio Grande do Sul, os Ministérios da Educação e da Cultura não se dispuseram a financiar o evento.

É lamentável!

A Jornada de Passo Fundo é um dos exemplos de evento literário bem planejado, integrado às escolas da região e com profundos efeitos no sistema educacional de todo o país. Muito melhor e mais eficiente que outros que ganham manchetes de jornais por aí por conta de marketing, sem uma fração da importância que a jornada organizada por Tânia Rösling tem.

Mais uma vez: é lamentável! Muito triste!

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