CULTURA: AS PAUTAS QUE CONTINUAM ABERTAS – II

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Dando continuidade a essa mescla de avaliação e levantamento das questões da cultura que estiveram em pauta nos últimos quatro anos, quero complementar alguns aspectos não tratados no post da semana passada.

Sem dúvida um dos pontos altos dos últimos anos foi a aprovação e o início de implementação do Vale Cultura. A Ministra Martha Suplicy conseguiu agilizar a aprovação da lei e da sua regulamentação, e arregimentou os operadores de cartões, principalmente dos vales-alimentação, para que o programa começasse a operar.

Ainda que o benefício fiscal – tal como os da Lei Rouanet – só beneficie as grandes empresas, a estratégia da ministra, de buscar sindicatos para que incluam o benefício nas pautas de dissídio coletivo deve aumentar consideravelmente volume de recursos disponíveis para aquisição de produtos culturais.

Cabe a editoras e livrarias se mobilizarem para aproveitar cada vez mais esse dinheiro. Nos primeiros meses de implantação do Vale Cultura, com aproximadamente doze milhões de reais disponíveis, o consumo de livros e outros produtos editoriais foi bem significativo. Mas, na medida em que o volume aumente, outros segmentos devem disputar de modo mais agressivo a presença dos beneficiários do Vale Cultura. E é importante desenvolver estratégias de marketing para atrair e fidelizar essas novas capas de consumidores de produtos culturais.

Um ponto positivo foi o programa Mais Cultura, em particular seu conceito de que este representa o reconhecimento da cultura como necessidade básica, direito de todos os brasileiros, tanto quanto a alimentação, a saúde, a moradia, a educação e o voto. A ampliação dos editais para fomento de ações setoriais é realmente um avanço no uso dos recursos orçamentários, diminuindo o grau de discricionariedade (que ainda persiste) no uso dos recursos do Fundo Nacional de Cultural.

O Mais Cultura se consolida com a aprovação da Lei 13.018, de junho deste ano, que reformula vários aspectos do programa e estratégias de ação. Graças à ação da Ministra Marta Suplicy e sua equipe técnica, o principal problema na execução anterior foi solucionado – para o futuro: a substituição de convênios por editais de premiação.

A primeira formulação do projeto dos Pontos de Cultura teve dois aspectos. O primeiro, o da ideia em si, era espetacular: repasse de recursos (por volta de R$ 10.000,00) para as mais diversas iniciativas culturais, principalmente em áreas de periferia. Mas o caminho das boas intenções estava bichado.

A forma encontrada no primeiro momento foi a da assinatura de convênios para o repasse dos recursos.

O resultado foi trágico, com centenas de prestações de contas bloqueadas por causa de documentação insuficiente ou falha. O caso foi tão sério que levou a meses de descontinuidade dessas ações, e ainda existe uma quantidade não divulgada de casos pendentes.

Os mecanismos legais de prestação de contas de convênios são perversos. O convênio e sua prestação de contas são desenhados para a gestão de recursos muito maiores, e é totalmente inadequado para as pequenas iniciativas dos Pontos de Cultura. Mas é a lei, e os gestores do MinC, na ocasião, simplesmente se meteram em uma enrascada. Em audiência na Câmara dos Deputados, a Ministra Marta Suplicy admitiu que há problemas com a prestação de contas. Para ela, “não se pode cobrar prestação de contas para quem faz arte igual à de quem faz ponte”. E como o Ministério Público não faz diferenciação, o ministério fica impedido de repassar recursos àqueles que não conseguem cumprir as exigências legais.

A nossa herança da burocracia lusa é pesada. As leis são feitas pensando em controlar o máximo possível, supostamente sem deixar margens para o arbítrio. E essa herança burocrática é amplificada pelo espírito do moralismo udenista, e os resultados não são bons: os malandros aprendem rapidamente a achar caminhos, e as dificuldades se acumulam para desenvolver bons projetos.

Basta lembrar que a Lei das Licitações levou a que uma empreiteira desqualificada tecnicamente fosse contratada para a reforma dos prédios da UFRJ na Urca, e o trágico resultado foi o incêndio da Capela Imperial. O caso dos Pontos de Cultura mostra outra faceta do problema: a incapacidade de encontrar soluções simples. Só depois que o problema das prestações de contas surgiu é que foi lembrada a possibilidade do mecanismo da premiação. A inépcia administrativa da formulação inicial prejudicou a continuidade de muitos dos Pontos de Cultura.

Finalmente, vale comentar o Plano Nacional do Livro e Leitura.

Participei desde o início dessa iniciativa, que começou em 2005, com o VivaLeitura. Foi a resposta brasileira ao chamamento dos chefes de Estado reunidos em um Encontro dos Países Iberoamericanos, que estabeleceu aquele ano como um marco para iniciativas em torno da leitura e do acesso ao livro. Foram centenas de iniciativas em todo o Brasil, reunidas sob esse marco do Vivaleitura, e que culminou com a elaboração do Plano Nacional do Livro e Leitura, seus eixos de ação como norteadores das ações do governo, da sociedade, da cadeia criativa e da cadeia econômica do livro.

Um dos componentes do PNLL é a necessária articulação entre os órgãos governamentais que, de alguma maneira, lidam com a questão. Evidentemente, o MinC e o MEC são os dois mais importantes. Mas em algum momento cheguei a listar mais de dez órgãos governamentais que também lidam com a questão do livro, da produção, e da difusão do conhecimento. O Itamaraty, no âmbito internacional, e mais: Ministério da Ciência e Tecnologia, Ministério da Agricultura, com a EMBRAPA, Ministério do Desenvolvimento Agrário, com as ações de educação no âmbito de assentamentos e projetos de reforma agrária, Ministério da Indústria e Comércio, por sua posição na cadeia produtiva, que vai do papel e celulose até as livrarias, passando pela indústria gráfica, e outros.

Do lado da sociedade, além dos escritores, ilustradores e mediadores de leitura, temos também as editoras – representadas por várias entidades – livrarias e bibliotecas.

O PNLL apresentava uma visão abrangente do problema, apontando para a necessidade do esforço conjunto.

No entanto, desde sua formulação, para mim era evidente a falta de meios institucionais e operacionais para que essa articulação seja realidade. O PNLL foi inicialmente formalizado com uma portaria conjunta do MinC e do MEC, e mais tarde foi editado um decreto presidencial. O PNLL dispõe de uma Secretaria Executiva, ocupada pelo prof. José Castilho, cedido para a tarefa pela UNESP, onde é professor e presidente da Fundação Editora UNESP. No âmbito do MinC, opera através da Diretoria do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas.

Além do PNLL temos ainda dois eventos de caráter institucional. O primeiro foi a promulgação da Lei do Livro, em 2003. Até hoje, onze anos depois, não foi regulamentada, exceto no dispositivo que dizia respeito a detalhes fiscais, cujos mecanismos foram definidos por Instrução Normativa da Receita menos de um mês depois da promulgação. Onze anos se passaram sem que a regulamentação tenha sido feita pelo MinC, fato que por si só mostra as limitações da capacidade operacional do ministério.

O outro foi a desoneração do que restava de tributos para o livro, que é imune graças a dispositivo constitucional. Restavam, entretanto, o PIS/PASEP e o COFINS, que foram eliminados – para editoras e livrarias que estejam nos regimes do lucro real e do lucro presumido – em julho de 2004. Essa medida aliviou o balanço das editoras em uma média de 5% sobre o valor total do faturamento. Na ocasião foi assumido o compromisso, por parte das entidades do livro, de aceitarem a instituição de um Fundo, que teria administração conjunta do governo e do setor produtivo, no valor de 1% do faturamento, para o financiamento de programas de bibliotecas. A procrastinação dos editores e livreiros e a incapacidade do MinC de formalizar essa proposta fez com que, até hoje, isso também não tenha saído do papel.

Recentemente foi anunciado que, ainda este ano, será enviado ao Congresso Nacional um projeto de lei transformando o PNLL em lei. Ou seja, na palavra do prof. Castilho, em “política de Estado”. Aparentemente – pois o conteúdo ainda não foi divulgado – o projeto prevê tão somente a formalização do atual plano, sem que estejam incluídos instrumentos de ação, inclusive os mecanismos de contrapartidas de estados e municípios, como já se esboçou na Lei  Cultura Viva. Ou seja, parece que se trata, mais uma vez, de declaração de boas intenções.

O estabelecimento de instrumentos de ação deve ficar para outro momento, com a futura criação de um órgão que, retomando a ideia do Instituto Nacional do Livro, seja capaz de ser o instrumento da ação do Estado na área não apenas do livro, como da leitura, da mediação, do incentivo à criação literária e estímulo e modernização das bibliotecas.

Resta-nos a esperança de que isso aconteça, e a missão de continuar batalhando por isso.

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