A Ministra Marta Suplicy divulgou semana passada os primeiros dados da movimentação financeira do Vale Cultura, dizendo “que há um consumo muito maior de livros e revistas”, e acrescentando que as editoras e livrarias haviam saído na frente e se preparado.
Bom, os números não mentem e informam que 88,09% dos gastos com o Vale Cultura foram feitos em empresas cujo CNAE as coloca na categoria de “Comércio Varejista de livros, jornais, revistas e papelarias” (4761-01). O cinema veio em seguida, e depois a venda de instrumentos musicais, o segmento de CDs, as artes cênicas, com “outras atividades culturais” no fim da fila. Ou seja, dos R$ 13,7 milhões consumidos em seis meses, R$ 12,112 milhões foram para livros, jornais, revistas e papelarias.
O que pensar disso tudo?
A primeira constatação, claro, é que isso é ótimo. Na verdade, o que todas as pesquisas sobre hábito de leitura indicam, sempre, é que a leitura é muitíssimo bem considerada pelos brasileiros. Para formação, informação, cultura, educação e lazer. E para a religião também (a esmagadora maioria dos leitores coloca a leitura da Bíblia como sua atividade preferida na área). O que atrapalha a leitura é realmente a dificuldade de acesso. Além dos que declaram não conseguir ler corretamente, ou que preferem outras atividades.
Outra informação importante da notícia que veiculou os números do Vale Cultura é que a Ministra anunciou esses resultados em um evento na Federação dos Sindicatos de Metalúrgicos da CUT, em S. Bernardo. A Ministra foi lá – e tem feito atividades semelhantes em outros segmentos – para estimular os sindicatos a incluir o Vale Cultura na pauta das reivindicações nas campanhas salariais.
Esse ponto é realmente importante. A principal razão disso é que, tal como os benefícios fiscais da Lei Rouanet, as empresas que podem eventualmente se beneficiar do incentivo fiscal quando adotam esse mecanismo de incentivo são pouquíssimas. Esse sempre foi um ponto central das críticas ao controle dos incentivos culturais por parte dos departamentos de marketing das grandes empresas. É preciso ser uma empresa gigantesca para dispor de recursos que possam ser significativos para aplicação em programas culturais. Ou seja, nem é para qualquer empresa de lucro real.
A inclusão do Vale Cultura nas pautas de reinvindicações pode ser o grande incentivo para a expansão do programa.
Os dois outros programas de “vales” para os trabalhadores, que são o Vale Transporte e o Vale Alimentação, servem bem como parâmetro. O Vale Transporte é uma obrigação legal das empresas, que são obrigadas a garantir o deslocamento dos trabalhadores até os locais de trabalho (e pode fazer isso com transporte próprio, embora hoje a maioria absoluta o faça com o vale transporte utilizável no serviço público), e isso é simplesmente custo para a empresa (um dos tantos “custos” que os capitalistas tanto reclamam na legislação brasileira).
O Vale Alimentação, por sua vez, tem uma legislação mais complexa. A obrigação de fornecer alimentação para os trabalhadores foi sendo gradativamente instituída pela legislação. Inicialmente, a empresa só era obrigada a proporcionar um “local adequado” para as refeições dos trabalhadores (que levavam suas “marmitas”). Apenas em 1991, com a instituição do PAT (Programa de Alimentação do Trabalhador), é que a questão se tornou impositiva. Ainda assim, para que não caracterize o Vale Alimentação (ou o fornecimento da alimentação nos refeitórios) como parte do salário, o trabalhador deve contribuir com uma parte desse custo.
O Vale Cultura também exige uma pequena contribuição do beneficiário (até 10% de seu valor, ou seja R$ 5,00) justamente para não entrar na conta do salário. Se a empresa estiver no regime do lucro real, poderá se beneficiar dos incentivos fiscais. Tal como as empresas que aderem formalmente ao PAT.
A expansão do Vale Alimentação – hoje praticamente generalizado, pelo menos nas cidades – aconteceu tanto pela iniciativa das empresas, que desejavam dar melhores condições de trabalho a seus funcionários, quanto por força das negociações salariais. Nesse último caso, principalmente na definição do valor do benefício concedido.
Ou seja, os sindicatos e as campanhas salariais tiveram e têm um papel importantíssimo na ampliação do uso do Vale Alimentação, expandindo seu uso para muito além daquelas empresas que estavam obrigadas a concedê-lo.
Por isso mesmo, a estratégia da Ministra de se dirigir aos sindicatos – sem desprezar os apelos às empresas, é claro – é muito importante para a consolidação do Vale Cultura.
Quanto ao anúncio de que o segmento “se preparou” para a utilização do benefício, já tenho minhas muitas dúvidas. É certo que as livrarias, em particular as grandes redes, se cadastraram para o recebimento dos vales. E certamente as operadoras dos cartões (de Vale Transporte e Vale Refeição), que passaram a operar também o Vale Cultura, estimularam as empresas a fazer isso.
No entanto, pouco ou nada foi feito além dessa providência passiva. Ando pelas livrarias e até hoje não vi nas suas portas nenhum cartazinho sequer informando que aceitam o Vale Cultura. Para redigir este post entrei no site de redes e livrarias independentes. Nem informam que aceitam esse mecanismo para o pagamento das compras. E no das editoras, muito menos.
Ou seja, essa adesão ao uso do Vale Cultura para a compra de livros foi espontânea, fruto dessa compreensão da importância do livro e da leitura por grande parte da população. A possibilidade de usar o benefício através da Internet provavelmente deve ter ajudado. Afinal, apesar da fragilidade das redes de livrarias, livros podem ser comprados pela rede. Ir ao cinema, assistir a uma peça de teatro, não. Assim, isso pode ter ajudado também o uso para a compra de livros. Se os teatros continuarem enclausurados no centro das grandes cidades, e os cinemas nos shopping centers, continuarão tendo dificuldades para aproveitar o benefício.
Entretanto, se as editoras e livrarias realmente não se organizarem melhor para disputar de forma mais ativa – e não somente passiva – o benefício do Vale Cultura, essa vantagem poderá diminuir.
Mais uma vez ressalto a importância da cooperação e organização das livrarias para a ampliação do seu mercado. Sem isso, vão perder também essa fonte adicional de rendas.
Para encerrar, uma notícia que poderá servir para que as entidades do livro se movimentem. O Conselho Municipal de Cultura de Manaus, que é presidido pelo Márcio Souza, completou a formulação do projeto de lei de incentivos fiscais para o município, que abrange os impostos municipais. Segundo me informou o Márcio, foi incluída entre as possibilidades de uso dos incentivos pelas empresas, a do uso do Vale Cultura. Ou seja – dependendo de como ficar a regulamentação, quando o projeto for aprovado – as empresas manauaras poderão ofertar Vale Cultura para seus funcionários incentivadas pela lei municipal. E vale sempre lembrar que os incentivos municipais e estaduais são dados sobre gastos correntes (ICMS, no caso dos estados, e ISS e outros tributos municipais, no caso das cidades), e portanto muito mais abrangentes que o Imposto de Renda.
Essa é uma moda pela qual vale a pena batalhar. Esperemos que a iniciativa de Manaus seja aprovada e entre em vigor sem maiores burocracias.