Amazon vira instituição de caridade?

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Achei curiosa a notícia que saiu na newsletter da Publishers Weekly, o jornal da indústria editorial americana, no último dia 4 de dezembro: “As Editoras Não Lucrativas estão Sorrindo?” Era um jogo de palavras com um novo programa da Amazon, o AmazonSmiles, que permite aos clientes doarem 0,5% do valor de suas compras (de uma lista extensa, mas selecionada) para alguma instituição não lucrativa que houvesse se cadastrado como possível beneficiária do programa.

E a Island Press, uma editora sem fins lucrativos do estado de Washington se cadastrou e passou a ser mais uma dentre quase um milhão de “charities” que vão atrás dos caraminguás do programa. A editora fez uma campanha de e-mail entre seus clientes. Detalhe: são todas as compras feitas no AmazonSmile (da lista) que valem para a contagem dos 0,5%.

Quem reclamou no ato foram as livrarias independentes. A ingrata da Island Press havia caído no canto da sereia amazônica e diminuía os clientes das independentes, que sempre a haviam apoiado. A editora jurou amor eterno às livrarias e informou que nem sabia do programa até que um de seus doadores chamou atenção para ele. “Já que o programa existe, nos inscrevemos”. Lógico.

Mandei um e-mail para a assessoria de imprensa da Amazon no Brasil, perguntando se o programa valia aqui também e, se não, se sabiam quando chegaria por aqui. A resposta foi um link para o press release americano e uma frase curta: “Não, não temos nada para anunciar sobre isso e não comentamos planos futuros, desculpe”. Como é do estilo da casa.

Fiquei matutando. Sabe-se que as margens da Amazon são notoriamente estreitas. A varejista prefere sempre ganhar na quantidade de itens vendidos que nas margens maiores, e essa tática é que jogou muita gente – especialmente livrarias independentes – para fora da brincadeira. E 0,5% em margens muito estreitas é algo que pode ser significativo.

Jeff Bezos, entretanto, sempre teve o projeto de “enganchar” (o verbo aqui usado como o truque que seringalistas, gatos de mão de obra e outros personagens sombrios da história econômica do Brasil usaram e usam: prender o coitado pelas dívidas). Evidentemente a Amazon não prende ninguém por dívidas. Simplesmente coloca seus clientes em um “ecossistema” de vendas extremamente eficiente e com preços baixos, às vezes usados propositalmente para destruir a concorrência. A história é bem contada no livro “The Everything Store” de Brad Stone (também à venda na Amazon, claro: ali não se deixa de vender nada, salvo pornografia, quando detectada).

Como a lista da AmazonSmile, apesar de ampla, é selecionada, é de se supor que os itens que estão por lá a essas alturas já estão com margem suficiente para permitir a doação. E a formidável máquina de TI da Amazon pode fazer os repasses como um mero subproduto de tudo mais que faz.

A gigante do varejo andou mal na imprensa nesses últimos dias. A pressão na Europa para que paguem os mesmos impostos que as livrarias locais aumenta consideravelmente. Funcionários dos armazéns da Amazon na Alemanha fizeram greve por melhores condições de trabalho. E as descrições dessas condições, na Europa e nos EUA, são aterrorizantes: quilômetros e quilômetros de caminhada por dia movimentando carrinhos para montar os pacotes, tudo cronometrado. Quem não cumpre as metas de desempenho pode ser despedido no final do dia.

Outro programa da Amazon lançado há pouco tempo, que promovia supostas parcerias com livrarias independentes (e foi rechaçado e criticado asperamente pela ABA), tinha uma característica importante: só valia para livrarias sediadas em estados dos EUA que não cobravam o IVA das transações eletrônicas. Essa questão dos impostos é uma das obsessões de Jeff Bezos, que só constrói armazéns onde sua empresa não paga tributos. O caso da Europa é exemplar, com a Amazon colocando sua sede em um paraíso fiscal. E quem acha que o Washington Post vai ficar fora do esquema lobista que Bezos montou para evitar os impostos está profundamente iludido por sua suposta demonstração de amor à imprensa tradicional, ao tirar o jornalão do sufoco.

Bezos anunciou, nos últimos dias, o futuro programa Amazon Air Prime, a entrega de pacotes de até dois quilos através de um drone, um octópero. Disse que o aparelho ainda deve demorar uns cinco anos para funcionar.

E agora o AmazonSmile.

Vejamos mais de perto o caso.

Fazer doações geralmente é um processo trabalhoso – mesmo nos EUA, onde não existe nada como a Lei Rouanet. O que a Amazon oferece é um processo extremamente simplificado, no qual o doador na verdade pensa que não desembolsa um tostão. O procedimento é feito pela AmazonSmile Foundation e o beneficiário sabe quem fez a doação original. Digamos que o cliente faça uma compra de US $ 100. A doação é de 50 centavos de dólar. Ninguém se daria ao trabalho de fazer cheque e enfrentar toda a burocracia para doar cinquenta centavos. Mas com o programa da Amazon fica fácil.

O cliente fica com a sensação de estar “fazendo o bem”. Se a “charity” fizer campanha, acaba recebendo alguma soma razoável.

A imagem da Amazon certamente melhora.

E o cliente fica cada vez mais “enganchado”. Agora, além de comprar pelo preço mais barato da praça (supostamente) e ter um serviço de atendimento muito bem estruturado, ainda ganha um afago na consciência por estar fazendo o bem. Não sei como o Google não pensou nisso antes.

O enorme investimento da Amazon em sua infraestrutura de TI vai, cada vez mais, exibindo uma espetacular tentacularidade. Não permite apenas a busca mais amigável no site de compras “de tudo”. Permite também economia de escala em logística, com a organização das entregas do modo mais rápido e barato. E agora permite que os clientes da Amazon recebam um afago na consciência.

A questão que se coloca é simples. Deixada por sua conta, a Amazon faz coisas incríveis para cada vez mais assumir uma posição já não simplesmente dominante no varejo “de tudo”. Quer mesmo é ser monopolista, ou pelo menos reduzir os concorrentes à insignificância. E o governo dos EUA, em sua ojeriza à regulação, se deu ao trabalho de fazer o serviço sujo para a Amazon e bater na Apple, uma concorrente que se atreveu a desafiá-la na venda de livros.

Depois das festas de fim de ano é que se poderá inferir (inferir, pois dados efetivos a Amazon não revela jamais) o impacto disso nas vendas das outras grandes cadeias de varejo.

Vamos ver qual será a próxima sacada de Mr. Bezos. Com certeza ainda sairão muitos coelhos de sua cartola.

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