Era 1983, nos estertores da Ditadura Civil-Militar, tal como conhecíamos o regime instaurado em 1964 e que durou(?) até a eleição da dupla Tancredo Neves/José Sarney.
Na Editora Marco Zero entrou em pauta o lançamento do mais recente romance de “A Ordem do Dia” do nosso sócio, o grande escritor Márcio Souza. Evidentemente o que conversávamos era sobre o lançamento desse seu romance. Para os que não viveram ou se esqueceram da época, as “Ordens do Dia” eram pauta e preocupação de todos que viviam e observavam a cena política brasileira. Todas as vezes que um milico soltava um desses documentos, todo mundo se debruçava para fazer a “exegese” do texto do militar. Era algo parecido ao que os “sovietólogos” faziam depois que cada foto das paradas na Praça Vermelha, com a posição dos membros do CC do falecido PCUS.
Coisas assim…
Pois bem, decidimos procurar o general Nelson Werneck Sodré para fazer a orelha. O general Nelson Werneck Sodré era um historiador reconhecido e com extensa obra, inclusive uma “História Militar do Brasil”. Ele havia participado da formação do ISEB (para os que não lembram, taqui uma referência sintética https://pt.wikipedia.org/wiki/Instituto_Superior_de_Estudos_Brasileiros ). Enfim, o general Nelson Werneck Sodré era fruto de uma geração de militares que permitiam a existência de pensadores como ele – e não se expressariam com twitter, caso isso já existisse – e sim com ensaios e pesquisas. O ISER foi liquidado em 1964, é claro.
Lembro bem do almoço quando conversamos com o general. Foi no segundo andar da Colombo (doceria e restaurante do centro do Rio de Janeiro), ocasião em que ele contou histórias, reminiscências, sempre bem divertidas. E topou fazer a orelha.
Cabe uma menção à capa do livro. É uma ilustração de Carlos Chagas, que era famoso na época pela produção de cartazes, principalmente de filmes. Ele interpretava o filme ao que se supunha ser o “gosto brasileiro” para atrair cinéfilos. Na maioria das vezes o Carlos Chaga colocava em posição proeminente um desenho de alguma mulher semidespida, com um seio bem… proeminente, digamos.
Enfim, foi para a gráfica o “Folhetim voador não identificado, onde as patentes militares entram em transe para a delícia dos que jamais ganharão a Medalha do Pacificador.”
Então preparem-se para conhecer o brigadeiro Fischer, que é dado à autocombustão quando acha que algum comunista está por perto, e o general Pessoa, pessoalmente chefe do seja lá o que for para o estudo de extraterrestres e que entende tudo de OVNIS.
Mais um substancial elenco de apoio.
O que nem sonhávamos era que o romance era uma distopia sobre o Brasil de 2028-2022. Estavam lá todas as maluquices, arbitrariedades, delírios e falcatruas desse quadriênio que felizmente termina dentro de alguns dias.
Rimos muito.
Mas quem quiser, agora, infelizmente, só nos sebos.
Conheci Antonio Carlos Scartezini em 1968. Ele, repórter político no JORNAL DO BRASIL, trabalhando na lendária sucursal do jornal em Brasília, chefiada pelo lendário Carlos Castello Branco, o Castelinho (quando alguém fará uma biografia dele?). A Maria José Silveira, com quem viria me casar, trabalhava lá como estagiária. Era um dos grandes momentos do jornalismo brasiliense. Eu trabalhava na sucursal do Estadão, chefiada pelo Evandro Carlos de Andrade, onde tinha como colegas, entre outros, o Ronan Soares, Ricardo Setti, Ary Ribeiro, além do meu amigo de toda vida, Haroldo Sabóia. Maria José, no JB, tinha vários colegas que se tornaram referência nos jornais. Além do chefe, Castelinho, A.C. Scartezini (o Scarta, como todos o chamavam), D’Alembert Jaccoud, José Leão Filho, cuja reportagem sobre a invasão da UnB, em 1968, é transcrita pela Maria José no romance “O Fantasma de Luis Buñuel”, ainda no primeiro capítulo do livro. Como jornalistas, obviamente, nos encontrávamos muitas vezes pelos bares da capital. Mas minha primeira interação séria com o Scarta foi uma viagem que fizemos juntos. Na época, as CPIs podiam se deslocar. Havia uma CPI sobre grilagem de terras, em particular por estrangeiros, no norte de Goiás e no Pará. O presidente da CPI era o deputado e ex-brigadeiro Veloso, o notório golpista que tentou derrubar o governo JK. Pois bem, o Veloso simplesmente requereu um DC-4 da FAB para visitar in loco essas regiões. No DC-4 estavam três jornalistas: dois nomes reconhecidos no jornalismo político de Brasília, o Scartezini pelo JB, Rubem de Azevedo Lima, da Folha e este foca pelo Estadão. Além do Veloso, mais uns dois ou três deputados, dos quais não lembro o nome, e um delegado e um escrivão da PF, que também conduzia um inquérito sobre o assunto. E lá fomos, nós em um pinga-pinga pelo norte de Goiás até chegar a Belém. Vimos de tudo, de roubo de livros de igrejas, onde se registravam, além dos nascimentos, as transações imobiliárias das paróquias e outras trapalhadas de grileiros nacionais e estrangeiros. Todos nós publicamos matérias na volta, e a minha extensa matéria saiu em (se não me engano) três edições do Estadão, assinadas, como as dos dois colegas nos respectivos jornais. Mas o episódio mais hilário, de certa forma, foi em Porto Nacional, onde pernoitamos, os três no mesmo quarto. O problema é que morríamos de medo de sermos picados por barbeiros, um inseto que infestava a região e provocava uma doença cardíaca séria. Resultado, nos revezamos, cada um ficando algumas horas acordados, de luz acesa, procurando ver se aparecia algum barbeiro. Não apareceu. Passamos vários anos sem nos ver. Militância clandestina, prisão, torturas, Presídio Tiradentes (eu) e trabalho político clandestino no ABC (Maria José) e depois exílio no Peru. De volta ao Brasil, em 1980, Maria José, eu e depois o Márcio Souza, fundamos a editora Marco Zero. Dezoito anos de aventura editorial, período no qual publicamos dois livros do Scartezini.
Segredos de Médici – 1983
O primeiro, “Segredos de Médici”, foi o resultado de uma difícil entrevista do Scarta com o ex-Ditador, publicado em 1983. Para contrabalançar problemas, Scarta pediu duas introduções: Jarbas Passarinho (ex-ministro do Médici) e Paulo Brossard, senador, um dos próceres do então MDB “autêntico”. O Médici não queria falar de modo algum, mas a persistência do Scarta rendeu uma das raríssimas entrevistas do ditador. Em um momento, ele diz que não falava “porque era o passado, o arbítrio” e que não queria ter sido presidente, “ao contrário dos Geisel, que se prepararam a vida inteira para isso”. O livro, um documento significativo de uma das épocas mais sombrias da ditadura, só pode ser encontrado em sebos.
Mais trade, já em 1993, publicamos “Dr. Ulysses – uma biografia”, no qual Scarta trabalhou o material que recolhia há anos, além de entrevistas com o biografado. Também só nos sebos.
Da última vez que estivemos em Brasília, quando Maria José lançou seu romance mais recente, “Aqui. Neste Lugar”, Scartezini, que havia sido convidado, mandou e-mail para a autora lamentando não poder ir “porque não estava bem”. Mas que compraria o livro e comentaria, como fez com todos os seus livros.
Scartezini esteve mais de cinquenta anos casado com Virgínia, mãe de seu único filho, Bernardo, também jornalista.
Um passo muito importante na construção de um mercado de livros foi a inauguração na “Cidade do Livro” de Sarjah de uma instalação da Lighting Source, a subsidiária de impressão sob demanda da maior distribuidora de livros dos EUA.
A Lighting Source, pela minha infoirmação que certamente está desatualizada, guarda nos seus servidores mais de trinta milhões de arquivos de livros, de várias editoras, não apenas dos EUA, mas do mundo todo, e pode imprimir desde apenas um exemplar até centenas ou milhares de cópias de um livro DEPOIS de sua venda.
Já escrevi sobre a impressão sob demanda aqui e o PublishNews já foi convidado para ir à inauguração da Cidade do Livro em Sarjah, que pretende ser um hub de distribuição de livros no Oriente Médio.
A atual presidente da IPA – International Publishers Association, a Sheica Bodour Al Qasimi (Kalimat Group, United Arab Emirates), e que também foi fundadora da Associação de Editores do Emirato, já esteve várias vezes no Brasil e é extremamente ativa no desenvolvimento do mercado editorial na conturbada região do Oriente Médio.
A newsletter Publishing Perspectives publicou uma extensa matéria no dia 27 de abril, a partir de conversa com o dirigente da Cidade do Livro, Ahmed Al Ameri e com o vice-presidente senior da Ingram, na qual se enfatizou a entrada da Lighting Source com um importante passo para alcançar os objetivos da Cidade do Livro. Leia aqui, em inglês.
Fiz amigos nestas décadas que levo nas costas de envolvimento com o mercado editorial. Muitos conhecidos, colegas de trabalho, e alguns amigos. Categoria na qual não classifico alguém à ligeira. Pessoas com as quais se pode contar e que se respeita.
Hoje perdi um deles. Depois de quinze anos batalhando contra um câncer, uma leucemia galopante levou Raul Wassermann.
Raul foi um grande editor. Quando fundou a Summus, abriu uma editora eclética com publicações em várias áreas. Ainda tenho hoje um exemplar do “Alice no País das Maravilhas” editada por ele. Tive também uma coletânea de cinco contos que retrabalhavam “A Missa do Galo”, do Machado de Assis. Um dos contos foi escrito pela Lygia Fagundes Telles. Esse se perdeu em alguma mudança (ou empréstimo, quem sabe…). Mais tarde a Summus focou muito em publicações nas áreas de psicologia, embora o desejo do Raul de explorar outras áreas nunca tenha cedido. Criou selos temáticos, como o Selo Negro e Edições GLS, foi dos primeiros a se propor editar de forma extensa e aprofundada livros sobre as questões de raça e gênero. Outros selos publicavam mais extensamente sobre áreas específicas do fazer terapêutico. Publicou também livros sobre cinema (foi um cinéfilo militante e algumas das primeiras publicações sobre formatos hoje em desuso, como Super 8, foram editadas pela Summus), gastronomia (quatro livros escritos por José Albano Amarante – “Segredos do Vinho para Iniciantes e Iniciados”, “Segredos do Gim”, “Queijos do Brasil e do Mundo para Iniciantes e Apreciadores” e “Vinhos do Brasil e do Mundo para Conhecer e Beber”) estão entre os melhores escritos por autores brasileiros sobre o tema. A “Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana” do Nei Lopes é um trabalho pioneiro e extenso sobre a presença africana no Brasil, e “A África na Sala de Aula”, da Leila Hernández, é uma resposta integrada à iniciativa de ensino da História da África no currículo das escolas brasileiras.
A lista é extensa, e os livros estão aí como testemunho de uma visão editorial ampla, diversificada e respeitosa da intelectualidade brasileira e internacional.
Uma das áreas mais notáveis de atuação do Raul foi como dirigente da Câmara Brasileira do Livro, quando demonstrou uma visão moderna e abrangente dos problemas e questões do mercado editorial brasileiro, da defesa do direito autoral e da busca de soluções para que fosse ampliado o acesso ao livro em nosso país. Raul Wassermann compreendia – e agia de acordo – que a questão da leitura não se resumia às questões do preço dos livros e dos problemas de distribuição, gravíssimos por si só. Tinha uma visão clara de que o acesso aos livros por parte da população era fundamental. Para isso as bibliotecas públicas eram fundamentais, já que acesso não é sinônimo de compra. Tinha uma visão clara de que as feiras regionais, menores e mais dinâmicas que as Bienais, poderiam e teriam que ter um papel de destaque. O apoio da CBL à Feira de Ribeirão Preto e, depois, a iniciativa do Circuito Paulista do Livro (com o apoio da Imprensa Oficial, na época presidida pelo Sérgio Kobayashi) deram dinamismo ao uso de “cheques-livros” para estudantes e professores, abriram espaço para editoras locais e autores.
Outra área de atuação do Raul Wassermann que foi, e é, de imensa importância na defesa dos direitos autorais no Brasil foi a primeira iniciativa de organizar sistemas de licenciamento de trechos de obras. Hoje é coisa do passado, mas a praga do xerox nas “pastas dos professores” nas universidades era algo terrível. As péssimas bibliotecas universitárias, defasadas e com acervo reduzido, não tinham os livros necessários para os estudantes. Os professores então emprestavam seus livros para que fossem feitas cópias reprográficas de capítulos. E cada faculdade e universidade tinha sua biboca xeroqueira (a Xerox odiava a apropriação da marca para isso), um dreno de recursos dos livreiros e editores. E quantos alunos se graduavam sem nunca haver lido um livro completo? Só os pedaços das tais pastas.
Vale a pena lembrar que a pesquisa de Produção e Vendas do Mercado Editorial nasceu de uma reunião de técnicos em informações e produções de dados estatísticos, organizada pelo CERLALC e feita na Bienal do Livro de S. Paulo de 1990. A iniciativa de propor a reunião no contexto da Bienal foi do Alfredo Weiszflog, ex-presidente da CBL e diretor da entidade na época. Para a reunião vieram colegas de vários países da América Latina, além do secretário geral do CERLALC na época (o nome me escapa) e um representante do Census Bureau dos EUA.
Antes mesmo da reunião, Alfredo já havia me convocado para participar da equipe de dois (ele e eu), que deveria pensar modos de recolher informações do mercado editorial brasileira. Já havia consenso majoritário na diretoria da CBL (não unanimidade) de que informações confiáveis sobre o mercado eram componente essencial para duas áreas, além de acabar com o chutômetro até então imperante: 1) para detectar tendências; 2) para ter força em negociações com governo, outras entidades e o público em geral, mostrando o tamanho e a importância do mercado editorial.
Foi uma trajetória longa que se iniciou ali, e bem que mal completa este ano sua trigésima edição. A CBL montou uma “Comissão de Pesquisa”, entre representantes de seus associados, que supervisionava e discutia perspectivas e resultados. Até quando permaneci na CBL, em 2002, a participação e interesse dos membros da Comissão de Pesquisa era intensa, e desde o início, dentre outros princípios, foi decidido que os dados seriam divulgados mesmo que apresentassem números desfavoráveis ao mercado. Era uma época também quando listas de bestsellers, divulgação do número de tiragens pelos editores, quantidade de pessoas presentes nas feiras e bienais costumava ser fantasmagórica. Tudo aumentava…
Desde o início da pesquisa havia a preparação de um relatório de divulgação para a imprensa e o público em geral, mas havia também um relatório bem mais detalhado dos dados, que era enviado aos sócios. Como não sou sócio nem da CBL nem do SNEL, há anos que não leio o relatório completo, que suponho continue sendo produzido.
Assim, com base no divulgado e na apresentação feita hoje, meus pitacos (dúvidas e aplausos).
A coordenadora informou que a amostragem incluiu “61%” do mercado. Mais adiante qualificou o assunto explicitou que os livros digitais não entraram, e que estão sendo objeto de outra pesquisa.
Mas eu me pergunto: como se chegou a essa porcentagem da amostra?
Explico. As empresas participantes são divididas em categorias pelo faturamento: grandes, médias, pequenas, além do setor ou subsetor. Para projetar a produção total e o faturamento, uma amostra que inclua, por exemplo, 90% das didáticas (bem possível), mais um tanto das grandes de livros em geral, é mais que suficiente. As editoras pequenas pouco contribuem para o cálculo do volume de produção, e isso pode ser projetado. Entretanto, as editoras pequenas e médias têm um papel importante para a detectar a bibliodiversidade da produção editorial. Autores novos (nacionais e estrangeiros), ou pouco conhecidos (mas de reconhecida qualidade) e eventualmente de prestígio (mas poucas vendas) são publicados principalmente pelas pequenas e médias, que arriscam mais, seja por princípio, seja por necessidade (os adiantamentos são menores, é claro).
Assim, dizer que a amostra abarca 61% do mercado suscita a pergunta: de produção de exemplares ou de títulos? Qual a diversidade e abrangência dos temas editados no Brasil? Pode-se desenhar uma tendência a partir da série histórica? A estrutura da amostra é crucial para se entender isso. Anteriormente os temas eram listados a partir de uma tabela do ISBN, simplificada. Provavelmente hoje seja mais fácil ampliar isso com outros códigos de metadados.
Pode ser que essa informação esteja no relatório completo. Quem só acompanha a divulgação está manco.
Preço médio. Logo no começo, a Mariana Bueno reconheceu que são muitos os fatores que condicionam o que se poderia chamar de preço médio: tamanho, acabamento, número de páginas. Certíssimo.
Mas, logo adiante, revelou: o cálculo é feito simplesmente pela divisão do faturamento – líquido, é claro – pela quantidade de exemplares vendidos. Assim, um livro para crianças que custe R$ 20,00 é somado com os livros CTP que podem custar mais de R$ 100,00. Qual a média disso? Sem mencionar como se descobre o desconto médio…
O Marcos da Veiga Pereira mencionou um fato real, e que a maioria dos livros tem o preço (de capa) fixado hoje por razões mercadológicas em categorias (geralmente com os famosos 90 centavos finais, porque não sei quem décadas atrás descobriu que era mais fácil vender qualquer coisa sem o número redondo…). E essa definição de preços está, em grande medida, influenciada por formatos. As editoras não informariam, qual o preço de capa de cada livro, mas se quisermos mesmo usar esse conceito de preço médio, dessa maneira é que não se chega a nada significativo. Já discuti esse assunto em 2011, e remeto para o post. O que não dá é somar o peso de laranja, mamão, morango e melancia e dividir pelo total das frutas para achar um ficcional e inútil “peso médio” da frutaria. Há que imaginar outras maneiras.
Além desse ponto dos formatos, o faturamento é influenciado também pelos diferentes níveis de desconto. As grandes redes têm mais poder de barganha e, portanto, descontos maiores. Há uma espécie de subproblema embutido nisso: para ter sua remuneração mínima, a editora deve calcular o preço considerando principalmente o maior nível de descontos para que o recebido por cada exemplar possa efetivamente recuperar o investimento, os direitos autorais e a margem da editora (inclusive a rotação do estoque, que é um problema à parte). A consequência: isso influi no preço de capa (que é nominal, mas é a base do pagamento de D.A.s) já que, para maior nível, de descontos maior tem que ser esse preço nominal. Os ingressos das vendas estão sempre em descompasso com as despesas correntes e os investimentos da editora.
O resultado é que a bicicleta tem sempre que correr e planejar (ou torcer) para os best-sellers ou os livros da moda (felizes anos do pornô-chic dos “50 tons de cinza” e similares e dos livros de desenhar…) compensarem tudo isso.
Mariana Bueno tem toda razão ao afirmar que a metodologia da pesquisa não mudou, todos esses anos. Não mudou no essencial, o que é fundamental para as comparações (e houve uma quebra da série histórica quando se fez uma reavaliação do universo das editoras pesquisadas). Não mudou no essencial, mas foi sendo aperfeiçoada no decorrer doa anos, e acredito (sem ter acesso aos relatórios completos) que possa ser ainda mais.
Um último ponto no que diz respeito aos dados de produção e vendas. Acredito que seja urgente unificar o recolhimento dos dados das vendas de conteúdos digitais, incluindo os audiobooks (ainda poucos por aqui, mas melhor incluí-los enquanto são poucos), para que se tenha uma dimensão mais realista do mercado editorial brasileiro, sua dimensão e seus problemas.
Um aperfeiçoamento positivo, sem dúvida, foi a especificação da porcentagem de livros vendidos nas chamadas livrarias “exclusivamente digitais”. A Nielsen tem os dados de venda direto de algumas dessas livrarias (os magazines digitais como Submarino, Americanas e congêneres), mas depende das informações das editoras para ter os dados da Amazon, que é opaca e só divulga os dados de venda diretamente aos fornecedores. Só que a Amazon também vende de outras pequenas editoras, autores independentes e pelo KDP. Mas esse é um problema geral da varejista, que vem sendo enfrentado de várias maneiras no exterior.
Marcos da Veiga Pereira fez uma observação muito pertinente: os livros digitais não criam leitores, crescem na medida em que já exista uma grande base de leitores. Mas colocaria um pouco de sal nessa observação. Considerando os problemas de logística que enfrentamos (um livro pode levar um mês pelo correio para chegar no interior do Amazonas, por exemplo), explorar a potencialidade de entrega do livro digital é importante. O mesmo vale para os milhões de brasileiros que vivem no exterior. Possivelmente o índice de leitores entre eles seja ainda menor que o da população geral, mas nunca é desprezível.
A pesquisa detectou um ainda pequeno, mas significativo, sinal de recuperação das vendas das editoras em 2018. Foi o ano em que estourou de vez as crises da Saraiva e da Cultura, de modo que essa recuperação de fato revela uma resiliência do mercado editorial em diversificar os canais de venda. Mariana Bueno atribui a recuperação do valor total de faturamento a uma recuperação dos preços “médio”. Recuperação, de fato, houve. Duas interrogações ficam para este ano: foi o tal “preço médio” ou a diversificação? E será que essa recuperação deu fôlego suficiente para enfrentar a pandemia? Pelas informações jornalísticas mais recentes, inclusive o número de demissões, isso provoca dúvidas.
Só que esses problemas fogem da questão dos dados e do recolhimento de informações. Mas sempre tenho em mente um dos lemas que ouvi de um distribuidor de porta-a-porta: vamos buscar e entregar o livro donde quer que o cliente esteja…
O Petra Belas Artes irá apresentar uma retrospectiva de
filmes do grande Luis Buñuel. Todos devem ser assistidos.
Além de assistir os filmes, podem ler também um romance
inspirado pelo grande anarco-surrealista espanhol: O FANTASMA DE LUÍS BUÑUEL,
de Maria José Silveira.
O romance parte de uma confissão do Buñuel em sua
autobiografia (escrita pelo Carrière…). Diz ele, já no final, que não se
importa em morrer, mas que gostaria de, a cada dez anos, sair do túmulo, i até
a banca de jornais mais próxima para tomar conhecimento de como andava a
miséria do mundo.
Pois bem, um grupo de cinco alunos da Universidade de
Brasília, em 1968, amavam a Revolução e o cinema de Buñuel. Assim, o romance se
estrutura em torno dos encontros dessem jovens, a cada dez anos, que narram,
expõem seus dilemas e desentranham suas vidas nos dez anos passados. Até que,
em um final buñuelesco, tudo explode no final, como em seu último filme.
E aproveitem para comprar e ler também o último romance da autora, “Maria Altamira”, que narra duas tragédias na natureza. A primeira, “natural”, começa com um terremoto que destruiu uma cidade de 22.000 habitantes noa Andes Peruanos; a segunda, provocada pelos humanos, que ameaça destruir o Xingu com a construção da Usina de Belo Monte.
E mais…
“Pauliceia de Mil Dentes”, um “romance de multidão” sobre a metrópole.
“Felizes Poucos” – coletânea de contos sobre a militância contra a ditadura.
“A Mãe da Mãe de Sua Mãe e Suas Filhas”, a saga de uma genealogia feminina pela história do Brasil, já traduzida para o inglês, francês e italiano.
A CBL
anunciou recentemente a assinatura de convênio com a Fundação Biblioteca
Nacional e a Agência Internacional do ISBN, para assumir o papel de Agência
Nacional do ISBN – International Standard Boook Number, o identificador unívoco
de cada edição comercial de livros.
O que
deveria ser visto e entendido como um aperfeiçoamento do processo de
comercialização de livros – pois é disso que trata o ISBN – foi entendido por
alguns como uma “perda financeira” para a FBN, que teria abdicado de uma fonte
importante de renda para seu funcionamento.
Devo dizer
que há anos, quando trabalhei na CBL (entre o final dos anos 1980 e 2002), sempre
defendi e busquei achar modo de que a CBL (ou o SNEL, ou uma associação entre
as duas entidades) passasse a ser a Agência Nacional do ISBN, o que sempre foi
recusado, inclusive com a justificativa dos ganhos financeiros que a emissão do
registro proporcionava.
A questão
de fundo, porém, nunca foi exatamente essa. A posição dos então dirigentes da
FBN se encorava, no meu entender, em um equívoco básico. Percebiam o ISBN como
um instrumento anexo à catalogação e ao depósito legal. Ou seja, como informação
bibliográfica. Como responsáveis legais pela publicação do catálogo
bibliográfico – o que não é feito há décadas, aliás – e pelo depósito legal,
consideravam o ISBN, no fundo, como um suplemento para suprir as deficiências
na execução dessas duas funções. Infelizmente existem editoras (de vários
portes, aliás) que não cumprem a exigência do Depósito Legal, e ainda assim,
pelo que transpira, a catalogação dos livros recebidos esteve muitas vezes em
descompasso com os livros amontoados sem catalogação e registro. Do mesmo modo,
o repasse de informações sobre o acervo bibliográfico para instituições
internacionais esteve quase sempre em atraso.
Um dos
fatos que testemunhei foi o atraso no envio de informações sobre obras
traduzidas para o português, que deveriam ser anualmente enviadas à UNESCO,
para consolidação do Index Translationum. Em 2015, quando estive em Paris para
o Salon du Livre e pretendia visitar a UNESCO, verifiquei que o envio de
informações pela BN estava atrasado vários anos, e pedi que atualizassem os
dados, o que fizeram. Infelizmente a UNESCO, em crise financeira, descontinuou
esse projeto que ocupava três pessoas e era um inestimável mapa do movimento
internacional de traduções.
Mas esses
são detalhes.
Para
chegar às raízes do ISBN, vale um pouco de história, inclusive de como a BN
virou Agência Brasileira do ISBN.
Há décadas
se constatava um problema radicado basicamente no comércio de livros. A
identificação unívoca de uma determinada edição se tornava cada vez problemática.
Cada editora, importadora, distribuidora e livraria usava códigos próprios,
totalmente arbitrários, para identificar os livros em seus estoques ou de sua
edição. Em 1965, um grupo de livreiros e distribuidores da Grã-Bretanha,
liderados pela rede WHSmith encomendou a elaboração de um sistema comum. O
professor de estatística Gordon Foster bolou então um sistema de nove dígitos,
o SBN – Standard Book Number que, no ano seguinte, evoluiu para ISBN por
iniciativa do editor, importador e distribuidor David Whitaker, o “pai do
ISBN”. No ano seguinte a R.R. Bowker, dos EUA, adotou o sistema. Em 1970, a
International Standard Organization (ISO), também adotou o sistema e organizou a
Agência Internacional do ISBN (assumida pela Alemanha), que passou a atribuir
os prefixos para as Agências Nacionais. Em 2007 o ISBN passou a ter 13 dígitos
para se adaptar à estrutura do código de barras da AEAN.
A difusão
do ISBN, impulsionada pelos mercados do EUA e da Grã-Bretanha, se expandiu de
forma rápida pela Europa, mas demorou muito a ser adotada nos demais
continentes. No final dos anos 1970, o CERLALC – Centro Regional para o Livro
na América Latina e Caribe -, órgão da UNESCO, tomou a iniciativa da difusão e
usou como tática convencer as bibliotecas nacionais dos respectivos países a se
tornarem Agências Nacionais.
Foi assim
que, de iniciativa nascida e destinada ao âmbito da comercialização de livros o
ISBN acabou parando nas mãos da BN no Brasil e em outras bibliotecas nacionais
dos países da região.
O ISBN, como identificador das edições comerciais é atribuído a cada edição e variação de um título (salvo reimpressões). Assim, edições de capa dura, capa mole, livros de bolso, edições eletrônicas, etc, recebem diferentes ISBNs.
ENTRAM OS METADADOS
Os livros têm outras informações que facilitam sua
identificação, como o título, o nome do autor e os dados da catalogação feitos
pelas bibliotecas nacionais. Mas o conceito de Metadado, que se desenvolve com
mais vigor a partir da ampliação do comércio eletrônico, sistematiza e amplia
os processos de identificação e busca dos livros em um número que cresce
geometricamente, inclusive com o surgimento e crescimento das auto publicações.
É o caso dos códigos BISAC e os padrões de identificação estabelecidos com o ONIX
e, mais recentemente, com o THEMA.
A
integração desses dados – que dependem, aliás, dos editores entenderem sua
importância e desenvolverem identificadores amplos e corretos – sempre foi e
continua sendo um empreendimento diretamente vinculado ao COMÉRCIO de livros. Preso
dentro de uma estrutura burocrática como a da Biblioteca Nacional, sempre foi
difícil ter a agilidade necessária para que essas informações prestem serviços
a editores, livreiros e, em última instância, aos leitores.
Isso tudo
tem custo, e não é pequeno. Dizer que a BN perdeu “x” milhões de reais é uma
falácia. Aliás, muito comum quando se fala em orçamentos e gastos de órgãos
públicos. O “bolso” da entrada é considerado e se esquecem dos vários “bolsos”
de saída, que vão desde os salários até os sistemas, passando pelas
atualizações tecnológicas, protocolos de integração, etc. Com dizer que a BN
até hoje não tem sistemas que permitam o diálogo da catalogação com outras
bibliotecas, nacionais e universitárias, que possibilitem sistemas de catalogação
cooperativa é uma boa síntese do problema.
Por isso mesmo, a transferência das responsabilidades do ISBN para a CBL e para o braço operacional Metabooks é uma excelente notícia para editores, livreiros, distribuidores e leitores e também para a BN, quer deixa de estar obrigada a uma tarefa que não era a sua. Esperemos que cumpram essa expectativa. E que, em algum momento, a administração pública proporcione não apenas à Biblioteca Nacional como aos demais órgãos da cultura em nosso país os recursos para que cumpram com as respectivas missões. O que, diante da política de desmonte, terraplanismo, ignorância e obscurantismo que estamos sofrendo, vai depender de muito esforço de todos os setores culturais.
Já tratei desse tipo de questões várias vezes aqui neste blog. Para ilustram, os links de dois posts aqui e aqui . Além de outros posts sobre metadados em geral.
Rodrigo Montoya é um dos mais importantes antropólogos peruanos. Mais que isso, é um pensados, à esquerda, que procura unir a tradições indígenas andinas e da Amazônia à luta pela democracia e pelo socialismo.
Tivemos, eu e a Maria José Slveira, a grande oportunidade de estudar Antropologia na Universidad Nacional Mayor de San Marcos – a mais antiga das Américas – entre 1976 e 1979. E mais, a pesquisa que fizemos sob orientação do Rodrigo Montoya em Puquio, no Departamento de Andahuaylas, se transformou e um livro publicado pela editora Mosca Azul, em Lima, assinado pelos três.
Desde o momento do golpe boliviano entrei em contato com Rodrigo Montoya para saber da sua interpretação dos fatos e as perspectivas que se abriam (ou fechavam), para o povo boliviano.
Logo depois do golpe boliviano publiquei também um post no FB, reproduzindo um pequeno trecho do romance “Com esse Ódio e com Esse Amor”, da maria José Silveira, que transcrevo aqui novamente:
LOS AYMARA No romance “Com esse ódio e esse amor”, Maria José Silveira conta uma história dupla. Uma engenheira brasileira viaja para a Colômbia para trabalhar na construção de uma ponte e acaba prisioneira das FARC. A história paralela é o roteiro de um filme que conta a rebelião de Túpac Amaru, a grande revolta dos povos andinos contra a dominação espanhola, ainda no Século XVIII. Na região que hoje está na Bolívia, a rebelião é liderada por Tupac Catari, que tem uma irmã, Gregória, conhecida como La Carnicera. Um trecho do romance: “Naquele momento único em que se dão conta que venceram, que os inimigos fugiram ou tombaram, o momento esfuziante em que a euforia da adrenalina dá lugar à sensação e um alívio extraordinário e ao cansaço extenuante da luta vencida contra a morte. Andrés, em seu cavalo, passa lento entre os mortos. É então que vê Gregória caminhando por cima dos corpos estendidos no chão, pisando-os, uma figura como que possessa, chicoteando de um lado para o outro. O ziiip de seu chicote andino fustiga o ar e os corpos tombados entre a lama, os restos, o sangue. Andrés pula de seu cavalo e segura seu pulso no alto: – Basta! Eles estão mortos. Gregória se vira para avançar sobre quem teve a ousadia de deter sua mão. Ao ver quem é, vacila. A força de Andrés controle seu pulso; com um arranco, ela o solta e se afasta. – Agora entendo por que os espanhóis te chamam de Carniceira – ele diz. Ela vira para ele os olhos incendiados, para e cospe no corpo morto do realista a seu lado.” São os Aymara. Para vocês sentirem como pode ser a reação dos que descem do El Alto para La Paz, onde a usurpadora disse que eles não cabem.
Espero que lhes seja útil como informação e reflexão sobre os acontecimentos na Bolívia.
A Colômbia publicou anúncio na Publishing Perspectives convocando interessados em se candidatar a bolsas de apoio à tradução de autores colombianos.
O programa é administrado conjuntamente pelo Ministério da Cultura
(lá continua existindo), através de seu “Grupo de Emprendimento”, a Biblioteca
Nacional e a Câmara Colombiana do Livro. O anúncio não especifica o quanto será
outorgado para a tradução de cada livro.
Uma novidade não muito comum em programas de apoio à
tradução é a seleção prévia dos títulos que serão apoiados. Foram selecionados
50 títulos, feita por uma comissão es de especialistas, entre 240 títulos
apresentados por mais de 40 editoras colombianas, que incluiu desde grandes
casas, como PenguinRandomHouse Colombia, Panamericana e Planeta a editoras
menores.
Segundo o anúncio, a primeira edição do programa, em 2018, distribuiu
doze bolsas para apoiar a tradução em seis idiomas nos mercados do Canadá, Dinamarca,
Egito, Estados Unidos e Turquia. Para esta segunda edição não foi especificada
q quantidade de bolsas disponíveis e o edital também não especifica idiomas
alvos específicos.
O programa de apoio à tradução de livros brasileiros
continua ativo na Biblioteca Nacional, com verba cada vez menor, e não
seleciona antecipadamente os títulos que serão apoiados.
A tragédia (uma de tantas, infelizmente), completa um ano.
Na segunda-feira, dia 2 de setembro, completa um ano do incêndio do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista. Já muito se comentou sobre a perda de coleções, incluindo aí os frágeis artefatos de arte plumária. E o esforço para recuperação do que sobreviveu às chamas está sendo feito com muito rigor e dedicação pela equipe do Museu e funcionários da empresa encarregada de limpar o sítio e criar as condições para o restauro do prédio.
Pouco se tem dito, porém, de outro tipo de perda
fundamental: a das bibliotecas instaladas no Museu Nacional. A Biblioteca
Histórica e o Centro de Línguas Indígenas foram destruídas. E destaco a perda da
Biblioteca Francisca Keller, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, e do material de pesquisa acumulado nas salas dos professores.
Ressalto, particularmente, os espaços ocupados pelo NuAP – Núcleo de
Antropologia Política.
Fui aluno do PPGAS no final da década de 70 e começo dos
anos 80. Lá fiz meu mestrado, orientado por Afrânio Garcia, e participei de
várias atividades do que então era informalmente uma espécie de núcleo de
estudos de economia camponesa, coordenado pelo Moacir Palmeira, com a
participação da Lygia Sigaud e dos já doutore e professores do PPGAS – Afrânio
Garcia, José Sérgio Leite Lopes, Beatriz Herédia, Rosilene Alvim e outros
mestres em Antropologia Social que já desenvolviam atividades profissionais
fora do MN. Outros grupos também desenvolviam linhas de pesquisa em várias
áreas. Otávio Velho também estudava sociedades camponesas; João Pacheco,
sociedades indígenas. Roberto da Matta, Luiz de Castro Farias e muitos outros
integraram o grupo discente do PPGAS e fiz cursos com vários deles.
Na época, os cursos do PPGAS se estruturavam principalmente
como seminários temáticos, com uma severa carga de leitura e participação nas
discussões. As leituras eram muito variadas, desde os clássicos da Antropologia
Social até pesquisas recém terminadas, além de textos ainda não publicados de
professores e colegas antropólogos.
Esse regime de estudos impunha o uso extensivo e intensivo
da Biblioteca do PPGAS, naqueles anos ainda relativamente modesta (e, ouso
dizer, com muitas cópias reprográficas de textos inacessíveis), mas muito
significativa na área. Foi crescendo, e antes do incêndio já contava com mais
de 37.000 itens. Os cursos realmente exigiam uma carga intensa de leituras.
Embora não houvesse uma cobrança explícita, coitado de quem era alvo de um dos
olhares da Lygia Sigaud, por exemplo, quando percebia que alguém não havia lido
– e refletido a respeito – do texto em discussão.
A vida nos levou – a mim e à Maria José Silveira, que fez o Mestrado em Ciências Políticas na USP e vários cursos no PPGAS – para outros caminhos. Mas a ligação com o Museu Nacional, por tão profunda, marcou a ambos. Quando vou ao Rio de Janeiro, procuro meios de encontrar antigos colegas e professores. Fui até membro de uma banca de mestrado, convidado pelo Moacir Palmeira, na discussão da dissertação de uma aluna peruana que trabalhou sobre o movimento sindical camponês daquele país. Quando exilados – por conta da ditadura que, segundo o sujeito que está lá no Planalto, nunca existiu – havíamos feito a graduação em Antropologia Social na Universidad Nacional Mayor de San Marcos. Fizemos um estudo em comunidades andina e fomos coautores, com o prof. Rodrigo Montoya, do livro com a pesquisa em uma dessas comunidades.
O espaço do NuAP, em um rincão do terceiro andar, era cheio
de arquivos com materiais de pesquisa – cadernos de campo, fotografias,
gravações, textos em andamento – tudo, enfim, que resultava de um trabalho
cientifico, coletivo e individual, do mais alto nível, com diversas
publicações, livros, coletâneas e artigos nas revistas especializadas.
Confesso que, quando aluno, ao passar pelas salas de
exibição e às vezes vagar pelo Museu Nacional, sempre ficava receoso ao
constatar a precariedade das instalações, principalmente em relação a
incêndios. Os alunos sabiam das demandas constantes, de todas as áreas do
Museu, por recursos para reforma e manutenção das instalações, assim como do
teto e de outros aspectos da edificação, visivelmente deterioradas. Com as
janelas fechadas quando não era horário de visita – às vezes tinha uma
impressão fantasmagórica, ao passar pelas múmias, pelo esqueleto do dinossauro
e outras salas de exposição.
Além da Biblioteca do PPGAS, a Biblioteca principal do MN
era um monumento. A enorme coleção de materiais bibliográficos, que incluía
relatórios de viagem de naturalistas e outros cientistas que vieram ao Brasil,
principalmente na segunda metade do Século XIX, fotografias e documentos
cruciais para o estudo do Brasil, estava lá. Com o passar dos anos e o
crescimento da coleção, o piso do terceiro andar ameaçava colapsar e,
felizmente, uma boa parte da Biblioteca do MN foi transferida para o prédio
anexo no Horto. Mas o Arquivo Histórico e o material de estudos de línguas
indígenas (CELIN) permaneceram no prédio principal.
Há alguns anos, quando nossa biblioteca particular exigia
uma seleção de descarte (brinco sempre que, para quem trabalha na área
editorial, livros se reproduzem em ninhadas…), o natural foi selecionar as
obras de Antropologia e Ciências Sociais, fazer uma lista e perguntar para a
Biblioteca do PPGAS o que lhes interessava. Quase tudo, menos os livros mais
comuns, editados no Brasil, dos quais havia várias cópias no acervo. E mandaram
uma Kombi que levou várias caixas de livros para o Rio de Janeiro.
Dito seja que sou contra políticas de acervo de bibliotecas que dependem de doações. Já vi muito lixo retirado de casas e deixado na porta de bibliotecas, onde bibliotecários não dispõem nem de luvas e máscaras para manusear e separar o lixo do que ainda pode ser aproveitado. Nossos livros, entretanto, eram – e são – muito bem cuidados, e as eventuais doações geralmente são antecedidas pelo envio de lista, de modo que os responsáveis possam escolher o que desejam. O mesmo já fizemos aqui em S. Paulo algumas vezes com o Sistema Municipal de Bibliotecas Públicas.
A perda desse acervo bibliográfico e documental das
bibliotecas do MN não tem sido muito comentada. Alguns podem pensar que, diante
da tragédia do incêndio dos artefatos e do prédio, essa seria uma parte
secundária.
Só que não é.
As bibliotecas, particularmente as acadêmicas, são vivas. Os
livros e documentos são constantemente revisitados, reestudados e reelaborados.
Os documentos de campo do Malinowski, um dos pioneiros da Antropologia
Cultural, por exemplo, já foram reexaminados tanto para verificação da acuidade
dos registros como para rediscussão de métodos de pesquisa e registro, assim
como os de muitos outros antropólogos. É também assim que a ciência progride
No caso da Biblioteca do PPGAS, o incêndio do acervo do prof. Luis de Castro Farias, incorporado na Biblioteca do PPGAS, foi uma perda enorme. Castro Farias acompanhou a expedição do Lévi-Strauss no Brasil Central, além de outras empreendidas por sertanistas e antropólogos, e todo o material havia sido doado à biblioteca.
E nem falemos da extensa documentação de viajantes,
naturalistas, que faziam parte do Arquivo Histórico.
Logo depois do incêndio ainda pensei que pelo menos parte da
documentação de pesquisa do NuAP, guardada em arquivos de aço, pudesse ter sido
salva. Essa ilusão foi dissipada em conversa com o prof. Moacir Palmeira. O
teto daquele segmento do terceiro andar havia sido parcialmente reformado, com laje
(a continuação desse trabalho, aliás, foi interditada pelo IPHAN), mas o piso
cedeu no incêndio e tudo aquilo desabou por dois andares, além de ter sido
incendiada, possivelmente pelo calor, se não diretamente pelas chamas. Moacir
tinha manuscritos e anotações não digitalizadas que estavam em sua mesa para
servir em uma reunião de trabalho que aconteceria na terça-feira. Domingo, 2 de
setembro de 2018, a tragédia bateu.
Quero destacar também, para os estudiosos e interessados em
Antropologia, que o PPGAS edita, desde 2002, uma importante revista com
trabalhos de alunos, ex-alunos e pesquisadores, a MANA https://www.revistamana.org/ com conceito
1A do Qualis Capes e indexação no ISI Web of Science. Não é para qualquer um.
Aliás, o PPGAS, desde seu o início, recebe a nota máxima na avaliação que a
CAPES faz dos programas de pós-graduação.
Dulce Paes de Carvalho, a biblioteca-chefe da BFK, explica
que a meta é recompor e ampliar o acervo até alcançar 40.000 exemplares. Já
foram recebidos aproximadamente 10.500 livros, com mais 8.000 exemplares a
caminho. De todo o mundo. De outras bibliotecas científicas, que enviam
duplicatas, editoras acadêmicas e instituições variadas.
Nós mesmo, outra vez, ao mudar de casa, selecionamos tudo o
que não tinha um valor emocional ou pessoal, encaixotamos e mandamos para a
recuperação do acervo da Biblioteca Francisca Keller, do PPGAS.
É pouquíssimo, comparado com a perda e até mesmo com a
quantidade que havíamos enviado antes, mas é a contribuição mínima que pudemos
fazer.
A Biblioteca Francisca Keller foi reinstalada no prédio do Horto para onde já havia sido transferida parte da Biblioteca do Museu Nacional. As instalações ainda são provisórias e a equipe se dedica hoje a receber e processar as doações recebidas, além de atender, na medida do possível, às demandas de professores e alunos do PPGAS, altamente prejudicadas, como se pode imaginar. A Biblioteca Francisca Keller estava digitalizando teses e trabalhos anteriores a 2006, ano em que passou a receber esse material em PDF e que estão a salvo, digitalizados. Os anteriores, entretanto, foram em grande parte perdidos no incêndio. A BFK está fazendo um chamamento a fim de recuperar esses trabalhos, anteriores a 2006, com a ajuda de todos os pesquisadores que já passaram pelo Programa, solicitando que enviem os arquivos que não aparecem em texto completo na Base Minerva (banco de dados do sistema de bibliotecas da UFRJ). O PPGAS tem uma página no FaceBook, noticiando as várias campanhas para o reerguimento da Biblioteca. Veja aqui .
O antigo site da Biblioteca Francisca Keller, acessível aqui ainda dá informações sobre as antigas instalações e o acervo da biblioteca.
O novo projeto arquitetônico já foi elaborado por professores e alunos da FAU/UFRJ, que pode ser visto aqui.
O mais importante, entretanto, é que todos podemos ajudar. Biblioteca Francisca Keller tem aberta uma campanha na Benfeitoria, com meta de arrecadar R$ 129.000,00 para compra de móveis, computadores e outros equipamentos. Já recolheu R$ 105.990,00 até hoje, e as doações podem ser feitas a partir de R$ 20,00. Mas, apressem-se, pois a campanha será encerrada no dia 12 de setembro próximo. Contribua aqui.
O Museu Nacional é um centro de resistência, democracia e
ciência. Não pode e não vai morrer.
Políticas públicas para o livro e o mercado editorial