D’O CAPITAL AO LIVRO DIGITAL (PASSANDO PELO CINEMA)

Dias atrás enfrentei uma maratona de 492 minutos para assistir as três partes do filme “Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital”, do cineasta alemão Alexander Kluge. Sem querer entrar na seara do colega colunista aqui do Publish News, Pedro Almeida, e sua coluna “Veja antes de ler”, quero aproveitar o filme para fazer algumas considerações sobre livro e cinema. Não entro na seara dele porque não se trata de “ver antes de ler”. Muito pelo contrário. O que eu quero falar é sobre a especificidade do ler e, portanto, da irredutibilidade do livro.
As notícias sobre o filme vendiam uma coisa e, na verdade, o esforço do cineasta era outro. As matérias falavam de “um filme sobre O Capital” e até insinuavam que se tratava de uma tentativa de filmar a obra fundamental de Marx.

De fato, o filme discutia um projeto do Eisenstein, o cineasta russo, diretor de O Encouraçado Potenkim, Alexandre Nevsky e Outubro, que queria, ele sim, filmar O Capital. Note-se, não se tratava de fazer um filme sobre O Capital, mas sim de efetivamente filmar o próprio. E mais, fazer esse filme como se fosse uma filmagem de um dia na vida de alguém como o Leopold Bloom, do Ulisses do James Joyce, e que esse dia fossa a história d’O Capital como o Ulisses era um resumo da história da humanidade. Não era pouca coisa esse projeto do Eisenstein.
Para os não cinéfilos é bom lembrar que o cineasta russo foi um dos fundadores da linguagem cinematográfica. Foi um momento na história do cinema em que se considerava que aquela nova forma de arte podia expressar qualquer coisa. Inclusive o pensamento teórico e abstrato. Para Eisenstein – e outros cineastas da época, como o americano D. W. Griffith, por exemplo – as possibilidades abertas pelo cinema eram infinitas.
Sergei Eisenstein não conseguiu passar da etapa de anotações e esboços sobre esse projeto ambiciosíssimo. E o filme de Kluge é um documentário sobre o projeto do Eisenstein e, de quebra, um seminário sobre O Capital. Como todo seminário, com alguns palestrantes excelentes e outros nem tanto. Para quem se interessa pela obra do Marx e sua permanência, trata-se de um filme importante. Como vai ser lançado em DVD, dá para espaçar e organizar o tempo para ver tudo.
Mas a questão de fundo, do projeto do Eisenstein e da própria tentativa do Kluge, é a questão de se é possível transformar (ou seja, mudar a forma) de uma obra teórica, escrita, em um desfile de imagens, ou seja, em uma expressão cinematográfica.
Um dos entrevistados no seminário põe exatamente o dedo na ferida. Pergunta o que acrescentaria se fosse feito um filme mostrando crianças trabalhando quinze horas por dia em fábricas de tecidos, subnutridas e obrigadas a fazer isso até praticamente morrerem? (E olhem que essas coisas continuam acontecendo hoje em dia, inclusive aqui em S. Paulo, onde imigrantes sul-americanos e coreanos vivem praticamente escravizados em sweatshops lá pelo Pari, Brás e Bom Retiro). Nada, responde o entrevistado. Porque o livro de Marx não é uma demonstração gráfica da exploração do trabalho. O que Marx quer demonstrar é a estrutura conceitual do que faz esse trabalho se transformar em mais-valia e como isso explica o regime capitalista. Não há imagem que consiga mostrar esse raciocínio.
Isso porque a palavra escrita permite descrições, digressões e explicitação de raciocínios teóricos que não têm nada a ver com imagens. São construções cerebrais que não param na descrição, nem nas metáforas. Vão muito além, constroem uma explicação (ou, pelo menos, uma tentativa de explicação) para o que, eventualmente, aquelas imagens evocam, ou exemplificam.
O mesmo vale para a literatura. Muita gente conhece o trecho do primeiro volume de A Busca do Tempo Perdido em que o personagem (Proust) “sente o cheiro da madeleine” e isso o leva a evocar os acontecimentos da toda sua vida (e a imaginar o que não viveu). Já se fez tentativa de mostrar isso cinematograficamente: o rosto do menino, o corte para o biscoitinho, o olhar evocador, etc. etc. Substitui o texto? Nem de longe.
Ou, melhor dizendo, produz outra coisa. Talvez o núcleo de uma história parecida, que deve ser mostrada de modo bem sintético. Mas que não substitui a experiência da leitura. Uma panorâmica por um caminho florido não substitui a evocação na memória do personagem sobre o que significava andar por esse caminho na direção da casa do senhor Swann.
A palavra escrita tem especificidades, qualidades (e defeitos, claro) que não se transportam para outras formas de expressão. E nem vice-versa. Um romance sobre um compositor, como é o caso do Jean Christophe do Romain Roland, narra as aventuras, desventuras e os problemas enfrentados por um compositor, mas não é música. É literatura. A partir dele não se pode “ouvir” nenhuma música imaginariamente composta pelo personagem, como também não se pode construir a história de Beethoven ouvindo uma de suas sinfonias.
Para onde isso tudo pode nos levar?
Todas as discussões recentes sobre livro eletrônico versus livro impresso no papel têm esquecido essa questão da singularidade do ato de ler. Ler para acompanhar a construção de uma teoria. Ler para desfrutar do modo como escritores moldam essa realidade infinita em formas literárias. Ler para aprender. Ler para desfrutar esteticamente do conteúdo do livro. Ou as duas coisas juntas.
Isso é que faz a permanência do livro. Pouco importa se está em formato eletrônico ou impresso em papel. O que o livro transmite é irredutível a outras formas de expressão. Não importa que esteja no papel ou dentro de um Kindle. Importa que seja um livro.

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