Neste final de ano foram publicadas duas matérias sobre livrarias que me chamaram muita atenção. As duas tratavam de ambientes das lojas e sobre seu estoque, vistas de maneiras muito, mas muito distintas.
A primeira, publicada na Folha de S. Paulo, no dia 29 de dezembro, tinha a manchete “Concorrência inflaciona aluguel de espaços nas livrarias e reduz variedades de estoques”. Era assinada pela Raquel Cozer, que cobre a área para o jornal paulista e mantém também um blog, o “Biblioteca de Raquel”.
A segunda matéria, publicada no último dia do ano n’O Globo, era assinada por Priscila Guilayn, correspondente do jornal na Espanha, tinha como manchete “Em Madri, um novo palácio para a literatura” e tratava da inauguração de uma grande livraria anexa ao Museu Reyna Sofia, com uma área de 1.200 m2, a 500 metros de distância da Puerta del Sol, um dos pontos de maior movimentação da capital espanhola.
A matéria da Raquel Cozer destacava como os espaços de exposição em cadeias de livrarias eram objeto de concorrência cada vez mais acirrada entre as editoras, na busca de destaque para os livros que consideravam como seus candidatos a best-sellers para as vendas de Natal. Na verdade, “candidatos” é um termo enganador. Os investimentos das editoras nesses títulos os levavam quase que inexoravelmente para as listas dos mais vendidos e isso, vice-versa, aumentava a sua demanda nas lojas.
“As livrarias estão se profissionalizando. Além do espaço físico para comercializar o livro, como antigamente, ela hoje precisa se rentabilizar. Sem isso, a conta não fecha”, diz Rodrigo Castro, diretor comercial da Cultura. A rede da família Herz cobra até R$ 5.000 por 15 dias de exposição na vitrine, com adesivagem, e R$ 2.000 pelos “cubos”, caixas de madeira afastadas das gôndolas”, dizia a reportagem da FSP.
Algumas redes afirmam – e eu, na minha modesta experiência de mercado me permito duvidar – que possuem espaços não sujeitos a negociações. Mas, deixemos isso de lado. O fato é que existem espaços nos quais, em nome da rentabilidade, as livrarias desistem do seu papel definidor do que apresentam – e, por conseguinte, na constituição da “cara” da livraria” – em troca de uma remuneração imediata, seja em dinheiro, seja em produtos, dada pelas editoras. Essas, então, passam a “administrar” parcelas cada vez mais substanciais do espaço das lojas de livros.
A matéria sobre a “La Central”, a nova livraria madrilena, enfatizava outros aspectos muito distintos. Destacava a fila que se criou na inauguração da livraria, e a audácia da rede – já tem duas lojas em Barcelona e outra em Madri, desde 2005 – em ir contra a corrente da crise econômica, promovendo essa expansão em um momento em que várias livrarias e pequenas cadeias fechavam na Espanha.
A matéria sobre “La Central” destacava outros aspectos: a ampla variedade do estoque, inclusive de literatura estrangeira. Carmen Villarino, professora de Literatura Portuguesa em Santiago de Compostela, me escreveu dizendo que a seleção de livros de literatura do Brasil na livraria era, sem dúvida, a melhor e mais extensa que ela conhecia. A matéria destacava, também, que “a livraria oferece trajetórias temáticas através de livros que abordam, cada um à sua maneira, o mesmo assunto: eles ficam pendurados em um aramado instalado em uma parede de tijolo aparente”.
Uma busca pela Internet revela a admiração de centenas de frequentadores para com a “La Central”, tanto pelo ambiente quanto pelo estoque e a facilidade de encontrar os livros desejados. A livraria, que funcionada anexa ao segundo maior museu de arte da capital espanhola, apresenta também uma vasta e bem escolhida seção de livros de arte. Livros geralmente muito mais caros que as brochuras de literatura.
Obviamente os proprietários da “La Central” estão preocupados com a rentabilidade da loja. Ali estão instalados um bistrô e um bar, com rentabilidade certamente maior que os simples cafés que encontramos em algumas livrarias por aqui.
Permitam-me aqui fazer uma citação de um dos livros que marcam minha percepção do mercado editorial, antes das minhas conclusões sobre as duas matérias. São dois parágrafos tirados das páginas 82 e 83 de “Livros Demais! Sobre ler, escrever e publicar”, de Gabriel Zaid, que traduzi e foi publicado pela Summus.
“Uma boa livraria de interesse geral que tenha trinta mil títulos não contem nem 1% de todos livros disponíveis. Supondo que a demanda fosse a mesma para cada título, a possibilidade de a loja não ter um seria de 99%. Se, nessas circunstâncias, um estranho chegasse com uma venda nos olhos para tomar conta da loja e respondesse: “Não temos esse livro” a qualquer pedido, estaria certo 99% das vezes. Na prática, o serviço falha numa porcentagem menor de casos, porque a demanda não é tão ampla (não é a mesma para todos os títulos, e concentra-se em determinados títulos), e porque o livreiro a antecipa com um grau de sucesso e também a molda dando à sua loja certa identidade (grifo meu, FJL) e, finalmente, porque os leitores ajustam sua expectativa ao tipo de loja na qual compram. O ajuste é recíproco: o livreiro imagina a constelação de livros que se adequarão perfeitamente a seus leitores e cria o tipo de loja que atrai clientes com expectativas similares. […] Em uma boa livraria, a oferta e a demanda são fortuitas, mas não caóticas: têm uma fisionomia e uma identidade reconhecível, como constelações. A probabilidade de encontrar um livro em particular aumenta em relação à clareza do foco da loja, à diligência e esperteza do livreiro e o tamanho do empreendimento. […] O importante é a maneira como o todo é moldado com respeito a certos assuntos, critérios, locais e clientela.”
As livrarias brasileiras – e em particular as grandes redes, e até mesmo redes que antes eram conhecidas pela seleção de livros de qualidade, como a Cultura – estão abdicando cada vez mais desse papel de curadoria e criação de comunidades de leitores, aqueles clientes fieis que confiam naquele tipo de livraria para buscar o tipo de livro que gostam – ou precisam – ler.
A raiz dessa história já mencionei em outros posts: as grande editoras oferecem descontos maiores e vantagens desproporcionais para essas cadeias, para empurrar o que já definiram como seus candidatos a best-sellers. Isso não é feito impunemente: para dar maiores descontos e vantagens, o preço de capa “nominal” é aumentado. As pequenas livrarias – que não recebem essas “vantagens” das editoras – não têm condições de concorrer no preço de venda ao público desses best-sellers.
Evidentemente cada um tem o direito de estabelecer as estratégias de sobrevivência, de “rentabilidade”, que lhes pareça melhor para seu negócio. Mas vender o espaço – na verdade, a “alma” da livraria, que é sua feição global – para que outros definam essa cara, pode ter consequências desastrosas para o futuro das próprias redes.
Nenhuma rede pode competir em preço e variedade com o comércio eletrônico. Não é preciso o exemplo da Amazon para se demonstrar isso. A revitalização dos fundos de listas das editoras, e do catálogo das editoras de ensaios, que aconteceu com o advento da Internet já é prova suficiente. Hoje em dia várias editoras de menor porte já estão com uma parcela muito significativa de suas vendas feitas através do comércio eletrônico, apesar da precariedade que é o uso de metadados no Brasil, tanto pelas editoras quanto pelas livrarias.
A “empurroterapia” de best-sellers – para tomar emprestado o nome dessa “técnica” das farmácias – pode ser muito mais eficiente se feita através da Internet. E poderá ser feita diretamente pelas editoras, que poderão vender seus títulos, sem DRM (para leitura em qualquer aparelho) a preços muito mais competitivos que os de qualquer rede – ou livraria independente. Ou entregar o exemplar impresso na casa do cliente.
As primeiras baixas nessa transformação que se delineia para o mercado de livros serão, certamente, as livrarias independentes que não conseguirem se articular para fazer vendas online de modo eficiente.
Mas as grandes redes, ainda enfatuadas com seu atual poder de barganha pelo volume de compras, podem se preparar. Sobreviverão as que conseguirem aliar o bom serviço com a formação de comunidades de leitores que confiem nos livreiros também para as indicações, em livrarias que sejam também pequenos centros de cultura e convivência de leitores.
Esse contexto não tem a ver também com o fato do número de leitores estar em queda no Brasil, forçando as grandes redes a rever sua forma de atuação junto ao público?
Certamente. Mas existem sempre alternativas e métodos diferenciados de comercialização. Eu, por exemplo, fico sempre com uma sensação de “empurro”, e cada vez menos entro numa livraria – mesmo nas grandes – para folhear livros e ver as novidades. Só aparecem as “novidades” das grandes editoras e, mesmo dessas, só as escolhidas para malhar.