VIAGEM PARA DENTRO

“A leitura de livros está crescendo aritmeticamente; a escrita de livros está crescendo exponencialmente. Se nossa paixão por escrever não for controlada, no futuro próximo haverá mais pessoas escrevendo livros que lendo”( Zaid, Gabriel: Livros Demais! Sobre ler, escrever e publicar, S. Paulo, Summus Editorial, 2004)

Blague?! Sim e não. O Gabriel Zaid escreveu, sim, um livro cheio de paradoxos, ou aparentes paradoxos como este da citação.

O fato é que se escreve cada vez mais. E há uma razão básica para isso: como o mundo do livro reflete o mundo real, e este é multifacetado, há espaço para a multiplicidade de “abordagens” da realidade. No limite, os “blogs” levam ao público o que antes se escrevia como objeto de reflexão estritamente pessoal, diários e cartas para amigos, colegas de trabalho ou outros cúmplices.
A Internet, a impressão sob demanda e outros meios técnicos possibilitaram, nos últimos anos, que a publicação desses escritos pessoais se tornasse viável. O narcisismo pós-qualquer coisa se aproveita disso e o resultado é essa avalanche de escritos que nos inunda.

Como, nesse ambiente, sobrevive a escrita literária? Como ainda se pode distinguir os escritores em contraposição aos meros escrevinhadores narcísicos que se pavoneiam pelos mais diferentes meios de “publicação”?

Ora, esse tal reflexo do mundo real que abre esse espaço produz, de fato, uma cacofonia monumental, tão ininteligível e fugaz quanto as imagens desordenadas que passam pela janela de um carro em movimento. O que interessa não é esse simples reflexo, mas a sua ordenação, a sua explicação, a sua formalização. A escrita criativa é aquela que, ao escolher uma ordem e uma forma de exposição, proporciona uma maneira nova de perceber esse mundo desordenado, fugindo do simples reflexo e oferecendo ao leitor significados estética ou conceitualmente relevantes.

Essa percepção vale tanto para a ficção quanto para o ensaio. E também para a exposição de teorias de física, química ou geologia. A escrita tem significado quando nos liberta da cacofonia da realidade e se apresenta no terreno da forma e da inteligibilidade. Nesse momento podemos começar a eliminar a palha da repetição, do lugar comum, da reinvenção da roda e do parafuso para começar a perceber o escrito que eventualmente nos ilumina, que nos permite um outro nível de percepção dessa realidade externa à escritura.

Na verdade, esse processo sempre existiu. O que acontece hoje é que ele se torna mais visível, com o uso e o abuso das facilidades técnicas para publicação. A permanência do texto literário (ou ensaisticamente relevante) sempre dependeu da prova do tempo. Sempre tivemos “literatura” descartável, ensaios irrelevantes e devaneios simplesmente delirantes (no mau sentido da palavra) sendo oferecidos ao público. A maioria desses escritos, depois de seu momento inicial, só serve para alimentar estatísticas – essas estatísticas que afligem o Zaid, ao revelar o aumento exponencial dos livros publicados.

A questão que permanece é a de fazer que cada tipo de livro encontre seu conjunto de leitores. Porque, mesmo que sejam relevantes e inovadores, ainda resta outro filtro: podem ser relevantes e inovadores para alguns – que talvez sejam até poucos – e incompreensíveis ou irrelevantes para outros – que muitas vezes são a maioria. E fazer chegar os livros às mãos de seus leitores é uma das tarefas mais árduas do mundo editorial, tarefa cada vez mais difícil diante da grafomania imperante.

É nessa etapa que a questão de políticas públicas para o livro e a leitura adquirem sua importância. Se deixados ao sabor dos ventos e marés, os livros sofrem diretamente com a péssima estrutura de distribuição do país, com a falta de informação sobre o que é publicado e com as questões de renda que dificultam a compra pelas pessoas que desejem lê-los.

As três questões estão interligadas. A precariedade da distribuição – ausência de uma rede de livrarias que se estenda por todo o território nacional – é também o resultado dos problemas de distribuição de renda do nosso país.

Agravava-se ainda mais pela política de compras centralizadas de livros que até pouco era praticada pela Biblioteca Nacional e ainda é executada por todos os governos estaduais e municipais: os usuários finais, os leitores, não têm voz na escolha dos livros escolares e muito menos na escolha dos livros adquiridos pelas bibliotecas públicas.

Essa política centralizadora, que deixa a escolha dos títulos nas mãos de “comissões de especialistas” para as compras de bibliotecas, elimina a fastidiosa necessidade de informar os possíveis leitores sobre a ampla disponibilidade de oferta. No caso dos livros escolares, apesar de formalmente ser exigida a participação dos professores na seleção dos livros didáticos, são inúmeros os casos em que as secretarias de educação, tanto as estaduais quanto as municipais, restringem e manipulam o direito dos mestres de escolher os livros que querem usar.

Pior ainda é o que acontece depois que os jovens deixam a escola. Ali, pelo menos, havia a possibilidade de acesso. Depois que saem, enfrentam um sistema de bibliotecas que é simplesmente vergonhoso. Bibliotecas abandonadas, acervos defasados, poucas compras de livros novos (e estes decididos pelas famosas comissões) fazem que o público se aliene da biblioteca, não a reconhecendo como o local importante de aquisição de informação, lazer e cultura, e exercício de cidadania que deve ser. O contrário disso, se me perdoam o pleonasmo, é a excepcional exceção de bibliotecas com acervos atualizados, informação para os usuários e sua participação na administração desse centro de cidadania. O panorama, felizmente, começa paulatinamente a mudar, com a adoção de novas políticas de compra de acervos pela Biblioteca Nacional. Mas ainda está muito loge de funcionar bem.
A exigência de uma política pública para o livro e a leitura, com acesso à informação por parte dos usuários das bibliotecas, e com maior fluidez, autonomia e participação das sociedades de amigos e usuários das bibliotecas é, portanto, um elemento essencial para que o acesso ao livro se realize.

O livro relevante lido por alguém que estabelece com ele um diálogo é um fenômeno, uma experiência que, felizmente, leva à repetição. Leva à busca de outros diálogos relevantes e importantes para aquele leitor, naquele momento de sua vida, no contexto social, econômico e político em que está vivendo. Como diz Zaid, no mesmo livro: “A liberdade e a felicidade experimentadas com a leitura viciam, e a força da tradição repousa nessa experiência que, no final das contas, leva todas as inovações a intensificá-la. (…) A singularidade de cada leitor, refletida na natureza particular de sua biblioteca pessoal (seu genoma intelectual), floresce na diversidade. E a conversação continua, entre os excessos da grafomania e os do comércio, entre a expansão do caos e a concentração do mercado”.

A experiência da leitura, com a junção dessas duas singularidades – o leitor e o texto – sintetiza o paradoxo final: a viagem para dentro, a conversa entre o leitor e o livro é, na verdade, um pedaço da leitura do mundo. Leitura essa cujo significado pode variar com cada leitor, a cada momento, em todas as sociedades. Desde que aconteça esse encontro singular entre o leitor e o livro que ele precisa ler, o paradoxo dos livros demais se esvai. Esse encontro, tão improvável e indeterminável quanto o da partícula quântica, termina provocando as reações que vão, aos poucos, se cristalizando nas expressões reconhecidas pela época como a da boa literatura, do bom ensaio. Da boa leitura, enfim!

Essa viagem para dentro da escrita é que revela, no decantar do tempo, a boa literatura.

Demócrito
Epicuro
Lucrécio
PS – Terminava de revisar este post e simultaneamente termei a leitura de “A Virada – O nascimento do mundo moderno”, de Stephen Greenblat (Companhia das Letras), por indicação do meu amigo Márcio Souza.

É um livro que exemplifica bem o que tentei descrever acima. O poema “De Rerum Natura”, de Lucrécio, esteve perdido por quase mil anos, escondido do público em alguma biblioteca monacal, quando foi redescoberto por Poggio Bracciolini, um calígrafo e humanista que foi secretário de vários papas. Esse poema de Lucrécio é uma exposição das ideias atomiostas levantadas pela primeira vez por Demócrito, enriquecida por Epicuro e é uma abertura fantástica para a superação do pensamento escolástico e dogmático. A volta à circulação do poema – primeiro em cópias manuscritas, e depois em inúmeras impressões – foi adquirindo cada vez maior importância no debate sobre a natureza do universo, até abrir caminho para as conclusões científicas baseadas na observação e na experimentação. O livro era famoso na Roma clássica, desapareceu e ressurgiu, com força cada vez maior, ajudado também por sua beleza poética na tranmissão de ideias filosóficas.

Marx dizia que Demócrito (de quem Epicuto foi discípulo) foi um dos maiores filósofos da Antiguidade. Greenblatt mostra como essa genealogia – Demócrito, Epicuro e Lucrécio, entre outros – teve grande importância no desenvolvimento do mundo moderno. “A Virada” faz justiça à essa trajetória.

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