Participei de uma mesa na 22ª. Convenção de Livrarias, sobre políticas públicas para o livro e leitura. Estava com a prof. Antonieta Cunha, que é a Diretora de Livro e Leitura da FBN, Tuchaua Rodrigues e Gerson Ramos, que se ocupam do programa do Livro Popular e da Livraria Popular, da Biblioteca Nacional. Presto uma consultoria ao programa, mas não ocupo nele nenhuma posição executiva.
O Programa do Livro Popular, que mudou o paradigma de compras de acervos para bibliotecas públicas, abrindo espaço para que as própias bibliotecas escolham o que desejam e recebam os recursos para adquirir os acervos através das redes de livrarias, já apresenta números muito interessantes, e a Ministra da Cultura, Ana de Holanda, e o Presidente da FBN, Galeno Amorim, anunciarão nesta quinta-feira, dia 9, na Bienal do Livro de S. Paulo, sua segunda etapa.
Como todo programa inovador, que rompe com paradigmas anteriores, o Programa do Livro Popular, ou livro de baixo custo, apresentou vários problemas em sua execução. Era inevitável. É impossível prever todas as contingências. O importante é manter os canais de comunicação abertos, avaliar o desempenho a cada momento e corrigir os rumos. Isso está sendo feito e a resposta de bibliotecas e livrarias é muito boa.
Mas não falei especificamente sobre o assunto naquela mesa. Outro dia comentarei os números e o desempenho do programa.
O que tentei abordar na minha intervenção foram algumas características de políticas públicas que dessem à plateia de livreiros e editores um marco em torno do qual pudesse ser feita uma discussão produtiva sobre o tema.
Quando falo de políticas públicas, não me refiro exclusivamente às empreeendidas por órgãos governamentais. Na verdade, todas as instituições que desenvolvem ações que impactam na sociedade também estão desenvolvendo políticas públicas. As entidades do livro, todas elas – CBL, ANL, SNEL e todo o resto da sopa de letrinhas – também desenvolvem políticas de caráter público. Focadas nos interesses de seus constituintes, nem por isso deixam de ter responsabilidades sociais, estão sujeitas ao escrutínio do público e da sociedade – para além do seu corpo de associados – e deveriam estar atentas a algumas questões.
Do que tratei?
Em primeiro lugar, da importância da continuidade das ações. Não é possível ficar saltando de uma proposta para outra à trouxe-mouxe. As ações devem ter um tempo de amadurecimento, sem o qual não se estabelece essa continuidade e segurança nas políticas públicas.
O exemplo que citei foi o do PNLD. No seu formato atual, o PNLD teve início em 1985. Marco Maciel, então Ministro da Educação, eliminou o processo de escolha dos livros didáticos, anteriormente feito por comissões ad-hoc, por um catálogo de livros disponíveis para escolha pelos próprios professores.
O processo de implementação e aperfeiçoamento dessa ideia levou mais de dez anos. Alguns devem se lembrar dos problemas que ocorriam, com as transportadores jogando livros fora, os atrasos na chegada dos livros nas escolas, as acusações de falta de qualidade nos livros oferecidos, e a pressão das editoras junto aos professores para adoção de coleções, além da usurpação da escolha pelos professores por instâncias das secretarias de educação.
O amadurecimento do programa foi progressivamente eliminando os problemas. Foi instituído um processo de avaliação dos livros – e que foi aperfeiçoado depois de intensas críticas de autores e editores sobre os bias de avaliadores vinculados a determinadas correntes pedagógicas -, assim como o processo de escolha, cada vez mais informatizado e com senhas para identificar os professores que escolhiam os livros. O problema logístico foi resolvido com um cronograma planejado e a incorporação dos Correios no processo.
Para o MEC, hoje, o programa está afinado e cumpre com suas finalidades. Eu acho que ainda tem uma grande falha, que é a não incorporação das livrarias no programa.
Mas o que importa ressaltar aqui é que estamos vendo um processo que já conta com vinte e sete anos de execução, avaliação e aperfeiçoamento.
A avaliação permanente é fundamental. O maior risco que a continuidade provoca é o da estagnação. Chega-se a um momento em que se instala uma certa conformidade com o que está sendo feito, a avaliação fica apenas no ajuste fino e perde-se a perspectiva dos problemas que ainda estão na frente. Mais uma vez, na minha perspectiva, digo: o PNLD precisa de uma sacudida para incorporar toda a cadeia do livro na sua execução.
No âmbito do Ministério da Cultura, e das aquisições de livros por parte da Biblioteca Nacional, um processo havia se consolidado. Mais burocrático e centralizador: eram comissões de “especialistas” que decidiam as listas de livros que seriam enviadas às bibliotecas do Monte Caburaí, em Roraima, ao Arroio Chuí, no Rio Grande do Sul, e da nascente do Moa, no Acre, à Ponta do Seixas, na Paraíba. Em todo território nacional, em suma. (Sou da época em que se ensinava que o extremo norte era a foz do Oiapoque, fui corrigido nessa mesa redonda por um orgulhoso roraimense… vivendo e aprendendo).
Essas listas dos especialistas eram licitadas diretamente junto às editoras, que entregavam a carga nos depósitos da BN, e aí se iniciava um complexo processamento logístico. Conferir, separar, empacotar, fazer licitação para o transporte, entregar isso tudo pelas bibliotecas. Processo que demorava, às vezes, quase um ano. E que consumia parte considerável dos recursos do programa que, em vez de comprar livros, eram usados para pagar depósito, pessoal e transporte.
Tudo funcionava direitinho. Ninguém podia contestar a qualidade dos livros, escolhidos por comissões de notáveis. Mas as bibliotecas e seus usuários não tinham a menor participação nesse processo e recebiam esses pacotes como uma dádiva dos céus, ou melhor, dádiva dos sábios, que, em sua infinita sabedoria, sabiam o que o povão deveria ler para ser melhor…
As livrarias, obviamente, também ficavam de fora.
É nessa hora que se coloca outro componente na definição e aplicação de políticas públicas: a coragem para mudar. A simples continuidade acaba levando à estagnação.
As reclamações contra o sistema usado pela BN se acumulavam. Os livros não atendiam às necessidades e prioridades dos leitores, deixando de cumprir um dos papeis fundamentais das bibliotecas públicas. Como serviço público, essas devem atender às demandas de seus usuários, e não fingir que os obrigam a ler os edificantes livros “de qualidade” escolhidos pelos sábios. Assim fazendo, confundia-se a importância de ter bons mediadores para ajudar na escolha feita pelos leitores com a imposição da oferta, que só incluía o que caía no goto dos sábios..
Parêntese. Já sofri dessa doença. Quando adolescente, em Manaus, eu e um grupo de amigos, cinéfilos e devotos do Cinema Novo, convencemos o dono de um dos cinemas da cidade a programar Deus e o Diabo na Terra do Sol como primeiro filme da sessão dupla das 20 horas, antes do mega-sucesso mexicano da época, La Novia. Bem, quase depredaram o cinema na primeira e única vez que se tentou fazer isso. Os espectadores queriam ver “linda y radiante, va la novia” e não engulir o que nós, na nossa juvenil arrogância, achávamos que era fundamental para sua cultura cinematográfica e política e queríamos enfiar-lhes goela abaixo. Mas, comentávamos, “reclamaram mas viram o filme do Gláuber”, o que talvez não se possa dizer que tenham sido lidos alguns livros sabiamente selecionados por comissões.
Pois bem, a Fundação Biblioteca Nacional, sob a direção do Galeno Amorim, teve a coragem de mudar.
O programa do Livro Popular e o novo programa de acervo para as bibliotecas públicas se estrutura na disponibilização das ofertas das editoras de títulos com preço de capa até R$ 10, a ser adquiridos por livre escolha das bibliotecas cadastradas e vendidos através da rede de livrarias também cadastrada.
Nas discussões para a formatação do programa, sabíamos perfeitamente que haveria problemas em sua execução. Havia um risco implícito em uma mudança tão radical no que se fazia antes. Mas era uma exigência que se tornava cada vez mais audível: as bibliotecas queriam ser ouvidas, e foi considerado importante incluir esse elo da cadeia do livro, as livrarias, no processo.
A inclusão das livrarias, e o uso dos mecanismos de distribuição já praticados pelo mercado editorial eliminavam um problema: a logística que tinha que ser adquirida e aplicada pela BN. O que o mercado já sabia fazer, capilariamente, seria usado para levar os livros até as bibliotecas.
Bem, o programa foi aplicado, é um sucesso.
Como previsto, erros aconteceram, dificuldades foram aparecendo, algumas superadas, outras não. Agora o que é necessário é aperfeiçoar esse novo sistema para que funcione com um grau de satisfação adequado para todos os envolvidos: Biblioteca Nacional, cadeia de distribuição e bibliotecas. E que possa ser verificada sua eficiência em atingir o resultado fundamental para todo o esforço: aumentar a disponibilidade de livros acessíveis para a população.
Desdobrar o programa, para induzir a oferta, por parte de editoras, de mais títulos a preço acessível – e não apenas para as bilbiotecas, mas para toda a população que deseje adquirí-los, são apenas alguns dos desafios que se colocam daqui em diante. A iniciativa dessa política pública demanda tempo para sua consolidação e aperfeiçoamento.
Continuidade, em uma palavra.
E, também, paciência. Diante dos enormes problemas que o país enfrenta, a demanda por soluções rápidas é angustiante. Os cidadãos querem respostas imediatas, o poder público anseia por atender a essas demandas, pelas mais variadas razões, que vão desde cumprir o papel de serviço público até o pedestre mas democraticamente fundamental resultado de transformar o sucesso em votos nas eleições.
Mas, se a angústia pelos resultados rápidos não for controlada, volta o risco de se perder a continuidade, a avaliação e o aperfeiçoamento, na frenética busca de resultados imediatos.
Bem, mais adiante comentarei os números, os problemas, as dificuldades, as soluções encontradas e os impasses ainda pendentes ness programa.