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A abertura da feira – discursos

Em 1994, quando o Brasil foi pela primeira vez convidado de honra da Feira de Frankfurt, uma das críticas feitas foi a de que o orador oficial teve um péssimo desempenho. Foi Josué Montello, então presidente da ABL. Escolhido exatamente por ser uma alternativa institucional, para evitar polêmicas sobre que nome representaria melhor nosso país na ocasião.

Na verdade, foi uma escolha infeliz da Comissão Organizadora de então. Montello passou o tempo falando de suas leituras de Goethe e de como amava a cultura alemã.

Peter Weidhaas, que inventou esse formato atual da Feira de Frankfurt, no qual, a cada ano, um país ou um tema servia de pretexto para centralizar discussões, debater problemas, apontar rumos para a cultura, deixou claro em seu livro sobre a história da feira, “See you in Frankfurt”, que a escolha não fora adequada.

Este ano tivemos dois discursos excelentes de autores e uma palhaçada do Vice-Presidente Michel Temer.

Devo dizer aqui que sempre me sinto insultado quando brasileiros se apresentam com o discurso do país vira-lata, como dizia Nelson Rodrigues. Essa síndrome acomete personagens de todas as estirpes: políticos, jornalistas e também escritores, é claro. Mas me sinto igualmente ofendido e irritado com o discurso ufanista. Vade retro, Afonso Celso e epígonos.

Escrevo isso porque ecoam, na Internet e nos corredores da feira, até por quem não é ufanista, críticas ao discurso do Rufatto na abertura. Enquanto o escritor era ovacionado depois do discurso, já o Ziraldo se levantava gritando que não era para aplaudir, e que se ele, Rufatto, não gostasse do Brasil, que se mudasse.

Foi um discurso tão forte que o Michel Temer tentou responder no ato, deixando transparecer uma ameaça velada, ao comentar sobre a liberdade de expressão garantida em nosso país desde a redemocratização em um tom que queria assinalar que havia limites para isso.

Mas, o que disse o romancista?

Fundamental é lembrar a pergunta retórica inicial da fala: “o que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem não é uma metáfora?”

Essa a questão fundamental levantada pelo escritor e cidadão Luis Rufatto. Diz respeito a todos nós. O que significa ser cidadão em um país tão selvagem?

Em várias matérias publicadas por ocasião das comemorações dos 25 anos da Constituição de 1988 transpareceu, de modo evidente, que a cidadania não é usufruída plenamente por todos os brasileiros. Que direitos são negados. Que injustiças são cometidas cotidianamente. Que temos, em uma palavra, muito pela frente até podermos nos considerar um país minimamente justo. Rufatto nada mais fez que reafirmar isso. E foi importante que o fizesse. Não para desmerecer ou definir o Brasil. Muito pelo contrário. No caso, não fez mais que se integrar a uma honrosa tradição da nossa literatura, que é a de pensar o Brasil enquanto se está olhando de longe.

A história de 500 anos de iniquidade começa a se modificar, com todas as dores do parto. “A maior vitória da minha geração – diz ele no discurso – foi o estabelecimento da democracia. – são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do período mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história do Brasil. Com a estabilidade política e econômica, vimos acumulando conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a mais significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria: um número impressionante de 42 milhões de pessoas ascenderam socialmente na ultima década. Inegável, ainda, a importância da implementação de mecanismos de transferência de renda, como as bolsas-família, ou de inclusão, como as cotas raciais para o ingresso nas universidades públicas.”

Rufatto tem uma história pessoal admirável. Nascido em família pobre, foi de pipoqueiro a operário antes de virar jornalista e escritor. E sua obra procura desvendar nosso país e o mundo ao seu redor a partir dessa inserção. Não está, ao contrário de tantos, à procura de seu próprio umbigo.

Diz ele: “Acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. […] Tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade. Em nossos tempos de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso nos deveria despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro – seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual – como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à sólidas e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso, escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de una utopia, eu sei, más me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora.”

Considerar esse discurso como sendo “contra o Brasil”, me desculpem, é não saber ler. Ou preferir ser do tipo de escritor que se alimenta do próprio umbigo.

Sou mais Rufatto.

O discurso da Ana Maria Machado, em tom muito diferente, condicionado também por sua posição oficial, não deixou de apontar as questões que deveriam afligir todos os escritores e todos os brasileiros. Diz ela aos ouvintes: “estejam certos que vão encontrar o reverberar dos problemas brasileiros nas obras de vários autores de percepção aguda. A sociedade e a política brasileira estão sempre nos rondando, por perto, por baixo do que se publica entre nós. Esse substrato político na escrita é uma dês nossas marcas. Em seu conjunto, nossos livros levantam indagações, reflexões, diálogos críticos com o real, hipóteses do imaginário, a partir de fatos do nosso cotidiano e de sabores por eles despertados em cada um de nós.”

Infelizmente, há também os que pretendem, ou fingem, escrever em um mundo imaginário que tem como única referência o próprio umbigo. Boa companhia lhes fará Paulo Coelho e outros do imaginado Parnaso da autoindulgencia.

A nota de rodapé patética foi o discurso do Temer. Coitado. Não merece mais que isso.

Felizmente para honra de nossa participação como Convidados de Honra da Feira de Livros de Frankfurt, os dois escritores fizeram uma bela homenagem à literatura e seu poder transformador.